“É como se a empresa estivesse caminhando por uma rodovia e a GRI permitisse que ela faça uma curvinha em direção à economia verde, regenerativa, e, assim, fuja do precipício, que é o atual modelo econômico“, explica Glaucia Terreo, uma das principais especialistas no país em relatórios de sustentabilidade.
Desde 2007, Glaucia comanda no Brasil as atividades da GRI (Global Reporting Initiative), uma entidade sem fins lucrativos com sede na Holanda que fornece instrumentos para a construção de relatórios de sustentabilidade com base em normas e princípios universais.
O foco de ação da GRI é simples: fazer com que uma empresa compreenda os impactos socioambientais que ela gera e, a partir daí, passe a monitorá-los para ampliar as ações positivas e mitigar as negativas. O relatório de sustentabilidade é, então, o objeto que reúne e dá transparência a esse processo, e que passa a orientar stakeholders e a própria empresa nas tomadas de decisão.
Nos últimos anos, o maior engajamento de CEOs e o olhar atento de investidores têm fortalecido o debate em torno da necessidade de dar transparência a esses dados. Hoje, cerca de 500 grandes empresas adotam os princípios definidos pela GRI para elaborar seus relatórios integrados ou de sustentabilidade, e bancos como o BNDES já levam em conta se a empesa segue esse modelo para definir taxas mais baixas de juros. Também há uma pressão, segundo Glaucia, para normatizar a auditoria de resultados ESG junto do relatório financeiro da companhia, integrando as duas esferas.
6 princípios para assegurar a qualidade do relatório, segundo a GRI:
Leia a seguir os principais trechos da conversa de NetZero com Glaucia Terreo:
NETZERO: O Brasil foi o primeiro hub regional do GRI, e você coordena esse trabalho desde 2007. Como a ascensão da agenda ESG tem impactado as empresas? As lideranças estão mais engajadas?
GLAUCIA TERREO: Tem mais engajamento, sim. Basta ver a Black Rock falando do assunto ou o BNDES avaliando relatórios GRI nas empresas para conceder juros mais baixos, assim como o Santander. Hoje vemos instrumentos como sustainability-liked bonds, green bonds, há fundos voltados para isso. Aliás, quando um fundo como Vinci Partners convida a Sonia [Favaretto, chair do conselho consultivo do GRI] para ser conselheira de administração, vemos que tem algo acontecendo que não é superficial. É um investidor chamando alguém da área de sustentabilidade para ocupar uma cadeira no conselho e ser a chair do comitê de sustentabilidade. Então, há uma mudança. Alguns CEOs estão prestando mais atenção nessas questões e o tema ganhou uma velocidade como a gente nunca viu.
E que momento vivemos hoje?
Estamos dando um segundo mergulho no ESG. O primeiro foi depois da Rio-92, e o que importava era volume. Se olharmos a partir da criação da GRI, em 1997, a gente via que o objetivo de uma empresa era falar “Eu tenho relatório GRI”. Isso não é absolutamente nada hoje. Porque GRI é um instrumento que dá à empresa a possibilidade de fazer um diagnóstico –o que ela faz com esse diagnóstico e como avança essa agenda é o mais importante.
Algumas empresas como Natura, Sulamerica, Suzano, Renner, só para citar algumas, estão na liderança.
GRI é um frame que estruturou a entrada da sustentabilidade nessas empresas, é um organizador da agenda da empresa. A partir daí, eles vão em busca de inovações, para seguir ou se preparar para a transição para a economia verde. O que a GRI quer é que a empresa promova essa transição. É como se a empresa estivesse caminhando por uma rodovia e a GRI permitisse que ela possa fazer uma curvinha em direção à economia verde, regenerativa, e, assim, fugir do precipício, que é o atual modelo econômico.
Há muitos desafios pela frente, não basta fazer essa curva. A empresa depende também de regulações e mudança de modelo econômico. No curto prazo, esse modelo atual é o que funciona para determinada empresa, e tem investidor que não se importa.
Até 2018, falo por mim, o foco era aumentar o número de empresas, fazendo com que elas entendessem que era preciso começarem a transição. O fato é que de 2007 até 2018, a gente viu muita empresa repetir ano após ano o mesmo relatório em vez de fazer o trabalho de mudança de gestão. Se ela tem um conjunto de informações sobre resíduos, é preciso olhar para a economia circular ou começar a pensar no design de seus produtos, por exemplo. Mas ainda são poucas as empresas que fazem esse processo; e o investidor sempre teve dificuldade de avaliar essas medidas.
A partir do momento em que o World Economic Forum começa a falar sobre o tema e os empresários percebem o limite da biodiversidade, veem que isso já está afetando os negócios. Se pegarmos o último mapa do World Economic Forum, veremos que a maioria dos riscos hoje são relacionados a questões de sustentabilidade. Por isso se chegou a um Green Deal e se começa a discutir como informações ESG podem fortalecer o relatório financeiro de uma empresa.
E como acontece esse fortalecimento? Algumas empresas passaram a unificar esses relatórios, incluindo as questões ESG no relatório financeiro. Isso é positivo?
Sim, mas há entraves. Se a empresa faz um relatório anual com informações socioambientais, quando o auditor fiscal vai analisar, ele não consegue fazer a conexão e manda tirar tudo. O que acontece hoje é uma pressão [para que seja possível unificar]. O “business case” da sustentabilidade já está aprovado, se há um bom trabalho com pessoas e com gestão ambiental, a empresa diminui a provisões para ações trabalhistas e para ações ambientais. Isso tem relação com o valor financeiro da instituição. A pressão é para que se encontre um modo para auditar isso.
Mas não há regulação, não tem norma contábil para, por exemplo, mudanças climáticas ou para saúde e segurança no trabalho –que são questões importantíssimas. É uma responsabilidade que a empresa tem com o emprego e com o acionista, influencia na boa reputação. Mas é bom também para a sociedade: um trabalhador acidentado vai para o INSS, uma instituição tripartite: é paga pelo governo, pelo empregador e pelo trabalhador. Quando uma empresa tem muito acidente, influencia a operação e impacta o INSS.
O escrutínio aumentou. Se todo mundo estivesse pagando seus impostos e cumprindo suas obrigações, talvez a gente tivesse uma realidade um pouquinho diferente. Mas ainda temos uma cultura patrimonialista, tanto na esfera governamental (os eleitos) como do Estado (a estrutura).
Precisamos falar de ESG também nessas esferas?
Precisamos muito. A lei 13.303, de 2016, também obriga as empresas a fazerem relatórios de sustentabilidade. As estatais, salvo as muito grandes, têm um gap de conhecimento, não têm ideia de como isso deve ser trabalhado. Aqui no Brasil temos duas regulações: além da 13.303, há a Aneel. Não à toa, no ISE há várias empresas do setor elétrico, fruto sobretudo do Instituto Ethos.
Em termos de adesão, como foi a evolução do uso de indicadores GRI no Brasil?
Temos cerca de 500 empresas fazendo relatórios no padrão GRI no Brasil, entre abertas e fechadas. Cerca de 35% das que estão listadas na Bolsa fazem relatório no padrão GRI.
O GRI permite que a empresa escolha o conjunto de normas para guiar seus relatórios. Em geral elas aderem mais aos princípios fundamentais, aos específicos ou elas têm dificuldades em relação à escolha?
É antes disso. As empresas têm dificuldades em relação aos princípios da GRI, então não é bem uma escolha. Elas precisam fazer uma análise da materialidade dos temas e o foco da GRI é fazer a empresa entender seu próprio impacto. Ela tem que fazer a seguinte avaliação: qual é o meu negócio e qual é o meu impacto na cadeia de valor? Pode ser que intramuros esteja tudo certinho, mas é preciso olhar também para a cadeia.
O relatório é um documento que tem que servir antes de tudo para a tomada de decisão. Um relatório traz muitas informações, mas papel aceita tudo. Você tem que entender o posicionamento da empresa primeiro para depois saber se aquela informação do papel é fidedigna. Como você vê isso? É preciso olhar se o conselho da empresa, as lideranças, estão envolvidos e se eles têm um papel na elaboração do relato.
Materialidade é olhar para o seu negócio e identificar quais são seus impactos positivos e negativos. O problema é que nos relatórios ou o impacto negativo fica esquecido ou vira uma nota de rodapé bem pequenininha.
Qual é a melhor forma de apresentar os impactos negativos em um relatório?
Na completude, a gente espera que, além dos compromissos, sejam mostrados indicadores de acompanhamento para a maioria dos temas materiais da companhia. Ou seja, isso indica que ela identificou a materialidade e está trabalhando em processos para melhorar esses assuntos materiais.
Fizemos em 2021 um trabalho chamado Observatório da Transparência, avaliando relatórios com base nos princípios do GRI. Demos nota zero quando a empresa não presta contas sobre acidentes ou escândalos que tenham sido amplamente divulgados ao longo do ano.
Ao trabalhar a materialidade, há empresas que omitem o impacto principal do setor em que atuam. Por quê?
Estamos falando de transparência e não é só para investidor. Se o investidor observar, é ótimo, ele é uma mola mestra. Mas o ideal é que a sociedade seja mais incisiva, porque todos nós pagamos pelo impacto. Quando pensamos no que aconteceu no sul da Bahia em relação às precipitações, questionamos: ali tem emissões de gases de efeito estufa? Se tiver, é mínimo. Mas outras regiões têm, como os grandes centros.
Por isso que temos hoje um movimento grande de “litigância climática”, em que se discute que empresas ou regiões tenham que pagar por estragos em locais que não têm [atividades poluente]. É o caso de Moçambique, por exemplo, ou Tuvalu. Talvez seja uma característica do modelo de transição econômica, porque não é certo uma população que não emite quase nada sofrer por isso.
A GRI é a principal matriz para guiar os relatórios, mas muitas empresas também buscam parâmetros para discutir pontos específicos da realidade brasileira. Faltam esses indicadores na GRI?
Eu acho que GRI é um instrumento completo. A GRI não inventa os assuntos, mas parte de iniciativas universais.
Se olharmos na Constituição brasileira, vamos ver que tem tudo ali e que se as empresas respeitassem a Constituição talvez não precisasse de relatório, não precisasse de nada.
Por exemplo, existe direito constitucional de igualdade salarial. O Brasil ainda está no nada honroso 93º lugar, e perdemos para países como o Casaquistão em termos de igualdade salarial.
Vejo GRI como uma oportunidade para as empresas mostrarem que, apesar de toda essa bagunça, elas estão fazendo o esforço delas. Podemos estar com essa imagem negativa em relação ao país, mas o relatório GRI ou ESG é uma forma de se desvencilhar e se diferenciar dessa bagunça que o governo está fazendo.
É uma oportunidade que só depende da própria empresa, começar a mudar e fazer seu trabalho bem-feito.
Dentro disso tudo, quais são os desafios de seu trabalho e como dar mais relevância à necessidade de prestar contas sobre sustentabilidade em um relatório anual?
Acho que o desafio ainda é sobre o tema, sobre para que ele serve. Todas as vezes em que faço workshops, pergunto para que a empresa quer fazer o relatório. Isso tem que estar muito claro para ela: pode ser para exportar, pode ser por vários motivos. Mas tem que ter estratégia.
Tem empresa que diz que quer os ODS, como o net zero, por exemplo. Mas tem recurso, tem cronograma de trabalho, tem planejamento estratégico para chegar ao net zero na data prevista? Não tem. Talvez, para chegar ao net zero a empresa tenha que mudar todo o seu modelo de negócio, e, sem planejamento, vai continuar tudo como está. Infelizmente ainda tem muito disso.
Muitos falam da ODS 5, da igualdade de gênero, e eu digo: ‘Gente, a primeira norma da OIT [Organização Internacional do Trabalho] a falar disso é de 1951’, além de artigos da CLT. Mas apesar disso, a diferença [salarial] ainda existe. É triste ver. Sobre essas pessoas que ficam falando de tropicalizar [os indicadores], é uma questão de falta de conhecimento, porque todas as normas da GRI estão ancoradas em normas internacionais. A GRI organiza isso e trabalha com indicadores para facilitar inserção deles na gestão. Estamos num momento urgente de transformação, precisamos ver mais coisas sendo feitas.
Você é otimista em relação a esse avanço?
Eu sou. Acho que de 2019, quando aconteceu o Business Roundtable, para cá houve um avanço. Foi um evento importante em que se falou de propósito, não só de lucro. Claro, se não tiver capital financeiro, também não tem sustentabilidade.
Em 2019 tivemos acontecimentos horríveis no Brasil, como o acidente da Vale [em Brumadinho, MG, que deixou mais de 270 mortos]. Naquele momento, eu pensei: não quero mais trabalhar com isso. Minha preocupação maior era com a equipe de sustentabilidade, que eu sabia que era séria. Como isso foi acontecer?
Mas daí vamos nos informando mais e aprendendo. Fizemos uma pesquisa em 2019 para ver qual é o fluxo de informação entre quem discute a materialidade, que é a área de sustentabilidade, e o conselho. Muitas vezes, não tem nenhuma comunicação.
O greenwashing começa dentro da própria empresa e precisamos saber como acontece. Será que é porque os coordenadores não gostam de ouvir problema? E o chefe do coordenador também não gosta? Num mundo que vivemos hoje, tão complexo, o novo tipo de chefe tem que ouvir e ajudar os funcionários a encontrar soluções.
É uma série de coisas que precisam mudar na mentalidade das pessoas, sobretudo nas lideranças. Seria tão bom se tivéssemos um modelo econômico em que as pessoas pudessem ter um mínimo [de renda]. Nosso modelo precisa ser revisto.
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