Por uma maquiagem mais inclusiva: o Grupo Boticário e a Mercur se uniram para facilitar o uso de cosméticos por pessoas com deficiência

Aline Scherer - 25 abr 2024
A modelo Isadora Damasio do Nascimento, que tem amputação parcial dos dedos das mãos, faz uso do engrossador (foto: divulgação).
Aline Scherer - 25 abr 2024
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Quando se fala em soluções de acessibilidade, é natural que a maioria das pessoas pense que isso não é para elas. Menos de 10% da população brasileira têm algum tipo de deficiência, segundo o IBGE. Fato é que não se sabe sobre o futuro: se você não tem alguma limitação hoje, não quer dizer que nunca terá.

Pensar assim pode ajudar pessoas de negócios a criar soluções mais inclusivas, seja qual for sua área de atuação. Nas empresas em que Diversidade, Equidade e Inclusão são valores importantes, o desenvolvimento de produtos e serviços precisa considerar aspectos de acessibilidade. É o caso do Grupo Boticário, de cosméticos e perfumes, e da Mercur, de produtos de saúde, bem-estar e papelaria.

As duas empresas lançaram em conjunto dois acessórios para tornar a utilização de produtos de beleza mais inclusiva: um tapete de tração e um engrossador. Nesse primeiro momento, entendido como uma fase de MVP, os acessórios foram distribuídos gratuitamente (entre fevereiro e março deste ano), mediante inscrição prévia no site, a pessoas físicas com deficiência e/ou limitação motora em algumas lojas de O Boticário e Quem Disse, Berenice? em cinco capitais: Belém, Brasília, Curitiba, Salvador e São Paulo.

O histórico da Mercur com o desenvolvimento de produtos para pessoas com deficiência data de 2008, quando a empresa hoje centenária decidiu rever seus valores e fazer uma profunda transformação — que contamos nesta outra matéria. No Grupo Boticário, os estudos sobre acessibilidade ocorrem desde 2017, e desde 2019 a empresa possui uma estrutura dedicada.

Rony Santos, Gerente Sênior de Diversidade e Inclusão do Grupo Boticário.

“Quando me perguntam quantas pessoas tem no meu time, eu costumo dizer que não são 20, mas 20 mil, que é o número total de colaboradores do Grupo”, diz Rony Santos, Gerente Sênior de Diversidade e Inclusão do Grupo Boticário. “Todos têm que pensar na diversidade e entender que essa é a nossa forma de fazer negócio.” 

Além da atuação na empresa de cosméticos, Rony é professor de gestão de diversidade nas organizações na pós-graduação da PUC Minas, onde leciona online. Da fábrica do Grupo em São José dos Pinhais, que fica próximo a Curitiba onde mora com o marido, ele falou com o Draft

 

Como surgiu o projeto dos acessórios e a parceria com a Mercur?
A Mercur é um fornecedor do Grupo Boticário há bastante tempo e a gente trata os nossos fornecedores como parceiros – o que significa sempre olhar o que a gente pode inovar, como se aproximar para entender os consumidores de uma forma diferente. 

Dentro desse espírito compartilhado, temos um ambiente muito propício para novas ideias, tendo o consumidor como foco do negócio. A gente identificou no mercado de beleza uma ausência de consumidores de grupos minorizados como parte do processo de codesenvolvimento dos produtos.

Por isso, a gente criou há dois anos a Comunidade Beleza Livre, que tem mais de mil consumidores em todas as regiões do Brasil de diferentes grupos minorizados, por exemplo, pessoas com deficiência, pessoas negras, pessoas 45+, comunidade LGBTQIAPN+ e também mulheres 

Fizemos parceria com alguns institutos de pesquisa para selecionar essas pessoas que hoje têm acesso a uma plataforma específica onde a gente mantém um relacionamento contínuo. 

Elas têm acesso a treinamentos, lives e conversas com influenciadores, e estão conectadas com os nossos times de desenvolvimento de produtos para participar das diferentes etapas do desenvolvimento. Também recebem produtos. 

A cada 12 ou 15 meses a gente faz um refresh da base para entender se todos os consumidores que estão nela querem continuar, e também para trazer novos grupos de diversidade.

Dentro desse contexto, das conversas que a gente já tinha com a Mercur e ouvindo consumidores com deficiência, identificamos desafios de acessibilidade no uso de produtos de beleza. 

Os desafios são gerais, desde a hora que a pessoa sai de casa para ir ao banco ou usar algum serviço público, ou se locomover, ou em momentos de entretenimento e também em momentos de consumo

Foi um processo de escuta ativa, também de comentários de redes sociais, acompanhamento de grupos de discussão, de eventos temáticos. Muitos consumidores, na falta de uma solução oferecida pelas empresas, faziam as suas soluções caseiras. 

Por exemplo, o nosso tapete de tração tinha consumidores que simulavam com adesivo, com toalha. Os engrossadores eram feitos com outros tecidos. 

Então, por que não oferecer uma solução aprimorada, uma inovação a partir de soluções caseiras para que esses consumidores pudessem ter um processo de uso mais inclusivo?

O que são esses acessórios? Já existia alguma coisa do tipo no mercado brasileiro?
A gente não identificou nenhum acessório semelhante. Eles são inéditos no mercado brasileiro. Nessa primeira leva, são dois acessórios: um tapete de tração e um engrossador. 

O tapete de tração serve como uma base que, uma vez fixada em uma mesa, uma penteadeira ou alguma outra base, absorve parte da força que a pessoa teria que fazer para abrir o produto. Ele garante também que a embalagem não saia rolando, principalmente potes de creme que tendem a ser cilíndricos e facilmente podem rolar

O engrossador facilita para pessoas que tenham alguma deficiência nos membros superiores, ou fraqueza muscular, ou episódios de incapacidade muscular por artrite reumatoide, por exemplo, de abrir batom, rímel e outros utensílios que sejam cilindricamente pequenos — também fazendo com que a pega fique mais facilitada porque a tampa é acoplada nesse engrossador, e diminuindo a força necessária de ser feita. 

Os dois são feitos de borracha certificada da Mercur, proveniente de fazendas no interior de São Paulo, atendendo todas as normas e exigências legais, e todo o processo é acompanhado pelo time de sustentabilidade do Grupo Boticário. 

Por que vocês decidiram fazer a distribuição gratuita somente em cinco cidades? E por que os acessórios não estão à venda online, por exemplo?
A gente lançou esses utensílios como um MVP inicialmente para entender qual vai ser a aderência, e escolheu cinco cidades – uma em cada região do Brasil, onde há uma concentração de pessoas com essas deficiências. 

A entrega é agendada para que na loja a pessoa receba uma orientação de um terapeuta ocupacional sobre a melhor forma de utilizar o acessório inclusivo. Nessa primeira etapa, ao longo de seis meses, a gente quer entender como a experiência acontece e está estudando como oferecer para mais cidades de maneira presencial, ou de maneira online futuramente, incluindo a parte do terapeuta ocupacional, que é importante. 

O projeto foi lançado no comecinho de fevereiro, a gente está colhendo os primeiros resultados. Tem uma recepção muito positiva dos consumidores, relatando que é a primeira vez que eles se sentiram incluídos numa determinada lógica de consumo, ou como que isso permitiu uma independência maior para eles

Tem alguns relatos bem sensíveis e emocionantes que nos apontam que a gente está na direção correta. A gente fez o envio para alguns influenciadores também e eles têm sido bastante emotivos ao narrar como receberam os acessórios e como isso tem o potencial de impactar a vida deles. 

É um produto que precisa ser usado no longo prazo para que a gente entenda também eventuais limitações, oportunidades de aprimoramento e novos usos. Verificar se a etapa consultiva com terapeutas pode ser feita de maneira online em todo o mundo, e até questões relacionadas à regulamentação de cada uma dessas profissões.

No ano passado, o Boticário quase dobrou de tamanho em vendas nos outros canais – farmácias e supermercados –, e a Mercur já vende nesses espaços. Esse potencial de distribuição poderá ser aproveitado para colocar os acessórios à venda?
Sobre pagar pelo acessório, a gente não tem previsão. Nesse momento, entendemos que comercializar o produto talvez não fosse aquilo que é melhor para a nossa estratégia de diversidade, os nossos valores e a nossa proposta de inclusão. 

No Grupo Boticário, já demos alguns cursos gratuitos de maquiagem para pessoas cegas, porque se existe alguma limitação, pode existir algum processo de acessibilidade, ferramentas e treinamentos. 

A gente está desenvolvendo uma máquina chamada batom inteligente, que vai permitir que pessoas que, mesmo passando por treinamento, não conseguiram desenvolver esse know-how de se automaquiar possam utilizar essa ferramenta – que, na prática, passa o batom, a manteiga de cacau, o gloss na boca da pessoa.

A divulgação dos acessórios está direcionada a pessoas que têm limitações nos membros superiores, e vocês já descobriram que pessoas com deficiência visual também estão utilizando. O que mais vocês já identificaram nos resultados iniciais?
Quando a gente fala de soluções de acessibilidade, as pessoas tendem a pensar que se elas não têm determinada deficiência, a solução não é pra elas. Ou: se não têm uma deficiência hoje, não vão adquirir ao longo da vida. Ou: se não têm uma indicação de uso para uma ação de acessibilidade hoje, não terá no futuro. E isso pode não ser verdade. 

Toda solução de acessibilidade é boa para a sociedade como um todo. Por exemplo, uma rampa de acesso que um cadeirante pode usar, será útil para uma pessoa que está com um monte de sacolas, uma mulher grávida, uma pessoa que quebrou o pé e temporariamente está usando muleta. 

Esse é um paradigma que a gente traz no desenvolvimento dos produtos e que a comunidade reforçou ao longo do processo de cocriação 

Identificamos outros usos. Pessoas que não têm antebraço conseguem utilizar os acessórios com o braço, ou o ombro. Pessoas cegas ou com deficiência visual, se estão usando um rímel cilíndrico e o rímel cair, ele vai rolar e elas vão ter muita dificuldade de identificar para onde ele foi, pode ir para debaixo de um móvel. 

O engrossador é uma base estrelada, então por mais que o rímel caia, ele não vai rolar para longe. Além disso, as pessoas estão relatando o quanto que os acessórios têm sido úteis para outros fins: em talheres e para abrir potes em geral. Esse uso expandido nos deixa muito felizes.

Vocês têm profissionais que dedicam 100% do tempo de trabalho para desenvolver produtos pensando na inclusão, com um orçamento específico?
Nós temos 30% do time de diversidade, que é um time composto por mais de 20 profissionais, dedicados para o pilar de produtos – que é um dos cinco pilares da estratégia de diversidade do grupo, com recurso e iniciativas próprias. Os outros pilares são pessoas, comunicação, impacto social e cadeia de valor.

Algo que sempre comento com os meus alunos, estudiosos da diversidade: existe uma curva de maturidade das organizações na atuação em diversidade, que começa com iniciativas voltadas para recursos humanos, trazer profissionais diversos e garantir que eles estejam encontrando um ambiente acolhedor e inclusivo. 

O próximo passo dessa curva de maturidade – e isso não é necessariamente um atrás do outro, podem se misturar um pouco – são as ações de comunicação, trazer representatividade para as campanhas, começar a fazer eventos de engajamento para as temáticas 

Os estágios mais avançados são quando a diversidade é olhada dentro do fazer negócios, como um impulsionador da estratégia de produtos, e também para a sua cadeia de valor, olhando para seus fornecedores, distribuidores e todo o seu ecossistema.

No Grupo Boticário, temos ações voltadas para a profissionalização dos times de P&D nas temáticas de diversidade. A gente mede os nossos produtos com relação a atributos de diversidade e acessibilidade, o formato, a ergonomia, e inclui a escrita em Braille.

Na história do Grupo Boticário, teve algum outro lançamento com bastante impacto?
Lançamos o movimento Diversa Beleza, que a cada ano tem uma bandeira. Em 2024 é o anti etarismo. 

A gente estuda termos que são potencialmente discriminatórios ou pouco inclusivos, e identificando esses termos, a gente assume um compromisso público de não mais utilizá-los, repassa isso para os nossos times de P&D e constrói em conjunto alternativas aos termos. Por enquanto, ainda não podemos abrir, mas muito em breve vamos anunciar novos termos. 

A gente não usa mais termos como “normal”, “perfeito” e “clareamento”, que do ponto de vista da diversidade não fazem sentido. Quando você diz que tal produto é para pele normal, cabelo normal, pressupõe que algum outro tipo não seja normal. Quando você vende um atributo perfeito, isso vem de um ideal inalcançável – o que é perfeição e como chegar nesse lugar? 

Mesmo que os consumidores talvez não parem para pensar nisso, esses termos provocam impacto na autoestima, no processo de aceitação e empoderamento. Então, olhamos com bastante atenção para o pilar de produtos porque é muito importante do ponto de vista de seniorização de uma estratégia de diversidade.

Além disso, identificamos que existe uma escassez de pessoas diversas em bancos de imagem e que gerar imagens de pessoas diversas acabava se tornando mais caro, porque a gente tinha poucos profissionais à disposição. 

Por isso, lançamos um banco de imagens público e gratuito para qualquer agência do Brasil com mulheres diversas, por meio do movimento Diversa Beleza, e nesse ano vamos lançar mais uma etapa focada em mulheres 45+

A gente lançou recentemente os pincéis acessíveis da marca Quem Disse, Berenice?. São 11 pincéis de maquiagem que foram desenvolvidos com pessoas que têm deficiência visual. Além da performance e tecnologia, inclui alterações no formato para garantir que a pega seja facilitada, para identificar qual é cada tipo de pincel e para que eles não rolem. 

Outro grande impacto foi a linha Orgulho de O Boticário, com o perfume Insensatez e alguns outros produtos com um layout diferente nas cores da bandeira LGBTQIPN e com um percentual das vendas desses produtos direcionados para esta comunidade por meio de parcerias com ONGs. 

Isso é muito importante para que a gente exclua qualquer possibilidade de diversity washing, por exemplo. Ou seja, se estão utilizando o claim de LGBTQIPN, [então é fundamental] que gerem benefícios para essa comunidade 

Na época, optamos por focar em ONGs que atuavam com a população de pessoas trans e travestis, que dentro da comunidade LGBTQIPN é a que tem desafios extremamente importantes, inclusive de expectativa de vida. 

Temos investido muito em desenvolvimento de produtos para os diferentes tipos de cabelo dos brasileiros e das brasileiras, e há pouco mais de dois meses foi lançada a primeira linha 100% aderente a todas as curvaturas de fios. Também é um produto cocriado com a comunidade Beleza Livre. 

A maior parte dos cabelos de brasileiros e brasileiras é ondulado, cacheado e crespo. Então, não é a forma mais inteligente entender esses cabelos como nicho de mercado – mas sim como o mercado 

Tom de pele, também: a gente acompanha todos os desenvolvimentos de produtos para garantir a oferta do maior número possível de tons de pele para refletir a realidade da população brasileira.

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