Quando a primeira tentativa de relação sexual não deu certo, ela descobriu uma síndrome rara que compromete o útero e o canal vaginal

Claudia Melotti - 25 mar 2022
Claudia Melotti, cofundadora do Instituto Roki.
Claudia Melotti - 25 mar 2022
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Fui uma criança feliz, com planos de crescer, namorar, estudar, casar e ter filhos como a maioria das meninas da minha época.

Aos 13 anos, no entanto, minha trajetória começou a mudar. Descobri ter a Síndrome de Rokitansky (ou MRKH, como é conhecida internacionalmente) de forma fragmentada.

Minha mãe, atenta à ausência da menstruação, me levou a um ginecologista e lá descobrimos que eu não tinha útero.

Apesar de ainda menina, foi um choque entender que a maternidade seria um desafio quando eu ainda brincava de boneca

O diagnóstico completo ocorreu aos 19 anos. Após a primeira tentativa de relação sexual, notei que havia algo estranho. Em consulta ginecológica — dessa vez sozinha — fui diagnosticada com a síndrome com comprometimento não somente do útero, mas também do canal vaginal, coluna e rins.

Foi um segundo choque assimilar tantas informações no mesmo dia.

O QUE, AFINAL DE CONTAS, É A SÍNDROME DE ROKITANSKY?

Lembro de me sentir desnorteada. Literalmente, não sabia para onde ir e como seguir, pois as informações eram escassas e a síndrome — cujo nome é homenagem a um dos médicos que a descreveu –, pouco estudada.

Hoje, nas trocas feitas com as mulheres e familiares em contato com o Instituto Roki (organização cofundada por mim e da qual falo mais adiante neste artigo), sabemos que esse é um sentimento comum.

A Síndrome de Rokitansky pode ocorrer de duas formas: a primeira compromete isoladamente o desenvolvimento do útero e do canal vaginal, chamada tipo 1, acometendo uma em cada 5 mil mulheres no mundo. Já o segundo tipo, mais raro, além de afetar o útero e o canal vaginal, também se estende para outros órgãos (rins, ossos, coração)

Meninas com Rokitansky têm a genitália externa normal. A parte que enxergamos, chamada vulva — que inclui clitóris, uretra (canal urinário), pequenos e grandes lábios e hímen e ânus –, é desenvolvida, assim como os ovários e as trompas de falópio. A formação alterada ocorre apenas no útero e no canal vaginal.

Naquela época, em 1990, os exames de imagens para o diagnóstico não eram precisos e os protocolos de tratamento, pouco definidos. Mas, por estudar medicina, consegui ter acesso a informações preciosas e iniciei o tratamento de dilatação, atualmente consagrado como a primeira opção nos Estados Unidos e na Europa.

A FALTA DE INFORMAÇÕES E A SOLIDÃO TORNAM O PROCESSO AINDA MAIS DOLOROSO

O sentimento inicial é de solidão, principalmente por não ter outras histórias em comum para se identificar e compartilhar as angústias e medos.

É neste momento que se faz importante ter o apoio dos familiares e amigos, além de profissionais familiarizados com a síndrome para trazer segurança e conforto às pacientes.

A falta de informação pode se tornar um fator de risco. Existem casos de mulheres que, seguindo uma orientação inadequada, acabaram se ferindo ao tentar abrir o canal vaginal sem o dispositivo correto. Ou foram encaminhadas ao tratamento cirúrgico precocemente, sofrendo complicações

Eu tive a sorte de encontrar uma rede de apoio entre meus familiares e meu namorado na época, que me auxiliaram a passar pelo primeiro grande desafio: a reconstrução do meu canal vaginal. Foi com a ajuda de um molde acrílico importado e relações com meu namorado que consegui reconstruí-lo.

CONHECER OUTRA PESSOA COM A MESMA SÍNDROME FOI O PONTAPÉ PARA CRIAR O INSTITUTO ROKI

Mesmo com todas as dores e memórias colecionadas, tive sucesso nesta trajetória. Aos poucos, voltei a viver normalmente, me permitindo construir novas histórias e embarcar em novos relacionamentos.

Apesar de nunca ter conhecido outras mulheres com o mesmo diagnóstico, sempre soube da importância de levar a um número maior de pessoas as informações sobre a Síndrome de Rokitansky.

Foi depois de conhecer Luciana Leite e Isabella Barros que essa necessidade de espalhar o conhecimento sobre e síndrome se tornou realidade. Na verdade, tudo começou durante uma consulta dermatológica em meu consultório, enquanto tratava uma querida paciente

Ela me contou sobre uma menina com uma síndrome rara e tive o impulso de contar que eu tinha a mesma e que gostaria de conhecê-la. Nunca havia dividido minha história com meus pacientes, mas acreditava que havia chegado o momento — e que esse encontro seria especial.

Assim conheci Luciana, uma mãe sempre em busca de informações para o melhor tratamento da filha, a Isabella. A identificação entre nós foi à primeira vista! Elas passaram por mais de 27 profissionais de saúde no Brasil e nos Estados Unidos, ao longo de mais de cinco anos, para começar a descobrir o que era o tratamento mais assertivo.

Ouvir suas histórias me levou a uma viagem no tempo. Como fruto daquele encontro nasceu, em 2020, o Instituto Roki, com o objetivo de acolher mulheres diagnosticadas com a síndrome e os seus familiares.

ALÉM DE APOIAR MENINAS, MULHERES E FAMILIARES, DAMOS SUPORTE A PROFISISONAIS DE SAÚDE

A construção do canal vaginal é o primeiro passo no tratamento e uma forma de empoderamento da mulher com Rokitansky. Mas os desafios vão muito além de cuidar da anatomia adequada para uma relação sexual saudável.

Dentro dessa jornada existem outros dilemas, como a maternidade e questões ligadas à autoestima e ao feminino

No início do Instituto, achamos importante trabalhar duas frentes: uma focada nos familiares, meninas e mulheres com Rokitansky; e outra direcionada a profissionais de saúde.

Produzimos cartilhas informativas para funcionar como um guia de orientações e dúvidas sobre a síndrome. E, no decorrer dos primeiros meses, já percebemos que tão importante quanto fazer um exercício informativo era disponibilizar suporte psicológico às meninas e familiares.

Assim nasceu o grupo de saúde mental do Instituto Roki. Em parceria com psicólogas e psicanalistas de excelência, oferecemos terapia online em grupo para mulheres e familiares em todo o Brasil.

Fechamos 2021 com quase 100 mulheres e pais atendidos nos grupos de terapia, um grande marco.

QUEREMOS MOSTRAR A ESSAS MULHERES QUE A MATERNIDADE É POSSÍVEL

Nessas sessões, recebemos depoimentos emocionantes de como muitas delas conseguiram superar a vitimização e encontraram forças para traçar melhores caminhos, construíram belos relacionamentos e começaram a pensar sobre a maternagem de maneira clara e segura.

As opções de maternidade passam pela adoção, barriga solidária e, recentemente, ainda em caráter experimental, o transplante uterino.

O Instituto Roki está envolvido e atento às demandas presentes e futuras desse sonho tão importante para algumas mulheres. Principalmente, por entender que os caminhos da maternidade não fisiológica, muitas vezes, são tortuosos e trabalhosos.

A consciência e o conhecimento de todas as possibilidades também é necessário para mulheres como eu, que optaram por não ser mães. Essa decisão deve ser clara e não fruto de impossibilidades ou medos

Outra frente importantíssima no nosso trabalho é a disponibilização de dilatadores adequados (uma opção antes da necessidade de cirurgia) que não são encontrados comercialmente no Brasil.

Em parceria com instituições públicas e privadas, adquirimos dilatadores produzidos em impressoras 3D e encaminhamos aos médicos ginecologistas responsáveis pelo atendimento de cada menina os kits de tratamento e materiais informativos produzidos por nós e outros parceiros.

ESTAMOS LEVANDO ADIANTE A MENSAGEM E FORTALECENDO MULHERES COM A SÍNDROME TAMBÉM NA ÁFRICA

A fundação do Instituto Roki foi inspirada na Beautiful You MRKH, iniciativa ligada ao Boston Children’s Hospital, na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Agora, replicamos a passagem de nossa experiência a profissionais de saúde de Moçambique, na África. Construímos assim uma importante corrente do bem do terceiro setor, nas ações de saúde e assistenciais à população

Com o Instituto Roki, ressignifiquei o meu passado e estou certa de que construo um presente melhor para mim e para toda a causa, levando informações e auxiliando um número cada vez maior de mulheres com a Síndrome de Rokitansky!

 

Claudia Melotti é médica dermatologista, com mestrado e doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), fellowship pelo Memorial Sloan Kettering Cancer Center (New York USA), estágios na Universidade Hospital 12 de Octubre em Madri e University College London (UCL). Fundadora e coordenadora da Coriumdermatologia, clínica dermatológica, desde 2005. Diagnosticada com Síndrome de Rokitansky, é fundadora do Instituto Roki, ao lado de Isabella Barros. 

 

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