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“A partir da leitura, comecei a separar o que era uma violência contra mim e o meu jeito de ser — e o que era uma violência contra a minha cor”

Anna Oliveira - 31 jan 2025
A jornalista e consultora Monique dos Anjos.
Anna Oliveira - 31 jan 2025
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Em 2012, Monique dos Anjos começou duas jornadas: a da maternidade e a do letramento racial. 

Ambas, na verdade, estavam interconectadas e iriam levar a paulistana — que, até então, atuava exclusivamente como jornalista — para novos caminhos acadêmicos e profissionais. 

“Nas minhas palestras, sempre conto que a principal motivação para que eu começasse o meu letramento e conscientização racial foi a minha primeira gestação”, diz Monique, que hoje é mãe de três crianças (nascidas entre 2013 e 2020) e atua, desde 2017, como consultora em letramento em diversidade e inclusão. 

Naquele momento, enquanto gestava sua primeira filha, Monique começou a se questionar sobre um duplo desafio: como ela explicaria a existência de algo tão horrível para uma criança; e como, ao mesmo tempo, poderia criar uma redoma para protegê-la de ser vítima desse crime.

“O meu objetivo não era me informar para criar uma ‘pequena bebê militante’ e, juntas, combatermos o racismo. Eu precisava entender o significado do racismo para conseguir explicá-lo, precisava saber como responder a determinadas perguntas, como orientar”

Na época, Monique e o marido viviam como expatriados na Cidade do Panamá. Administrador, ele havia sido transferido para lá pela empresa, uma multinacional alemã de equipamentos médicos. Ela, por sua vez, trabalhava como jornalista freelancer.

A mudança de país acabou reforçando os receios de Monique. É que, diferentemente do que ela imaginara, a realidade no Panamá se mostrou um bocado problemática.

NUMA SOCIEDADE PERMEADA POR CONFLITOS RACIAIS, MONIQUE DEVOROU A LITERATURA ANTIRRACISTA DE GRANDES AUTORAS NEGRAS

Quando o casal chegou ao Panamá, em 2012, Monique esperava encontrar, em suas palavras, “um país caribenho quente, negro e envolvente”. 

Em vez disso, ela se deparou com uma realidade diferente, que esconde uma série de conflitos raciais. 

“Não é que não existam panamenhos maravilhosos, o ponto é que eu não tinha ideia de que as pessoas lá poderiam ser preconceituosas e racistas, uma vez que, a meu ver, elas têm uma pele muito mais próxima da negritude do que da ‘pele europeia’…”

Diante desse choque e grávida de sua primogênita, a jornalista enveredou por um processo comum a profissionais da área: mergulhar de cabeça em um assunto. No caso, o pensamento antirracista produzido por autoras negras – de Grada Kilomba a Lélia Gonzalez, de Neusa Santos Souza a Sueli Carneiro, Monique foi devorando as obras em sequência. 

“Foi a leitura que me trouxe para o entendimento do que significava a minha pele. Antes, eu só estava nesse corpo e sofria as consequências dele; mas, a partir da leitura, comecei a separar o que era uma violência contra mim e o meu jeito de ser e o que era uma violência contra a minha cor — e, na maioria das vezes, era a segunda opção”

Ainda no Panamá, Monique começou um canal no YouTube para falar sobre negritude. Era uma coisa pequena, que não chegou a ser monetizada, mas que deixou raízes importantes para o futuro. “A ideia do canal era ser ouvida. E ele acabou sendo o início para o que seria a consultoria.”

Em 2017, Monique e a família retornaram ao Brasil, depois que o marido recebeu uma nova proposta de emprego. Cada vez mais interessada e apaixonada pelo tema do letramento racial, ela conheceu uma pessoa que se tornou uma amiga e a inseriu no meio acadêmico. 

Foi assim que, em 2019, começou a participar do Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC), da Universidade de São Paulo (USP), e, em 2022, iniciou o mestrado em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

Tudo para ampliar seu repertório e ajudá-la nessa missão de não só traduzir conhecimento, mas de criar pontes.

PARA PASSAR ADIANTE A MENSAGEM DO LETRAMENTO RACIAL, NÃO BASTA CONVENCER, É PRECISO ENCANTAR AS PESSOAS

Criar pontes é algo que ela tem feito nos mais diversos ambientes nos últimos anos. 

Só para citar alguns trabalhos, em 2024 a especialista conduziu um curso a pedido do Hospital Albert Einstein sobre Diversidade e Inclusão na cadeia de fornecimento; fez uma palestra sobre protagonismo negro na Cushman & Wakefield, empresa de serviços imobiliários corporativos; e falou sobre prática antirracista no ambiente escolar para a equipe de docentes, assistentes sociais, educadores, psicólogos e demais profissionais da do Sesi e do SENAI de Goiás.

Apesar de se dirigir a públicos variados e promover o letramento em espaços diferentes, Monique afirma sempre utilizar a mesma abordagem em sua comunicação: a do encantamento. 

“Eu brinco dizendo que não trabalho com convencimento, mas com encantamento porque todo mundo já conhece os números, é só olhar o jornal e ver as estatísticas. A questão é como que eu conto boas histórias sem me expor de forma exagerada, porém trazendo um contexto mais cativante do que uma ‘simples’ estatística”

Para manter esse equilíbrio, Monique se vale de um conceito desenvolvido pela escritora brasileira Conceição Evaristo, o da “escrevivência”. 

“Ela fala que as nossas experiências, por mais particulares que sejam, costumam remeter a um todo que é coletivo. Por isso, gosto de compartilhar histórias que trago do dia a dia, situações que observei e que geram boas discussões com as pessoas.”

O objetivo é, além de sensibilizar, desenvolver um senso de responsabilidade sobre aquilo que fazemos e falamos. Um exemplo é a reflexão que Monique costuma levar para os ambientes educacionais sobre a forma como a história das pessoas negras é retratada em sala de aula — normalmente única e exclusivamente centrada na escravidão. 

“É importante que os educadores entendam o quão difícil é para uma criança negra abrir um livro de história e ficar ouvindo sobre a escravatura, vendo corpos parecidos com o dela tratados como animais sem direitos… A escravidão é parte do que compõem a nossa história – mas nós não somos só isso.”

COMO JORNALISTA, ELA APRENDEU UM ENSINAMENTO VALIOSO SOBRE A RESPONSABILIDADE DE SE TRANSMITIR UMA INFORMAÇÃO

Esse cuidado na forma como passamos mensagens é algo que Monique carrega do seu tempo de redação jornalística. Na Editora Abril, a profissional escreveu para diferentes revistas e sites, e a experiência em um deles a marcou profundamente a ponto dela citar o episódio em alguns cursos que ministra. 

Foi assim: certa vez, uma reportagem sobre câncer publicada na revista Superinteressante recebeu uma crítica severa de um leitor cujo pai enfrentava a doença. Ele tinha considerado a abordagem do texto extremamente insensível, pois parecia sentenciar pacientes à morte certa. 

Em vez de tratar essa queixa como um exagero, um melindre, o diretor da revista se organizou para descobrir o endereço do leitor e enviar um buquê de flores com uma carta em nome da redação. 

“Eu nunca me esqueci disso e carrego comigo até hoje esse ensinamento de que precisamos sempre lembrar dessa responsabilidade que temos com quem está recebendo tudo aquilo que passamos como informação”

Tal cuidado passa também por outro conceito utilizado pela especialista, mas que foi um tanto quanto deturpado no debate contemporâneo: o do lugar de fala. “Eu gosto muito desse termo, mas é preciso explicar que ele tem sido confundido com protagonismo.”

É que, se de um lado, o lugar de fala diz respeito a uma série de marcadores sociais e culturais que, somados, influenciam a forma como cada indivíduo se entende e se coloca no mundo; do outro o protagonismo tem a ver com ocupar o espaço central em uma narrativa ou debate, trazendo vivências e perspectivas diretamente ligadas ao tema em questão. 

“Se eu estou numa roda sobre masculinidades, e cercada de homens, mesmo que eu tenha a minha percepção sobre os malefícios da masculinidade, talvez aquele não seja o meu espaço para ter a vez e a voz.”

HOJE, MONIQUE SE DIVIDE ENTRE O TRABALHO COMO CONSULTORA E A ESCRITA DE CONTOS ERÓTICOS

Recentemente, Monique celebrou mais uma conquista: “Acabo de me tornar uma das conselheiras nacionais do Nação Valquírias, organização que impacta a vida de milhares de meninas e mulheres. Particularmente, estou mega honrada!”

Para além do seu trabalho como consultora em letramento em diversidade e inclusão, ela aplica esses conceitos em outra de suas facetas, que talvez possa soar surpreendente para algumas pessoas: escritora de contos eróticos. 

Tudo começou lá atrás, quando a jornalista cobria o universo feminino para diferentes publicações, dentre elas na revista Nova — hoje, Cosmopolitan. Na época, Monique escrevia sobre assuntos que iam desde carreira e finanças até sexualidade e relacionamentos. 

“Eu me dei muito bem produzindo esses textos porque me sinto confortável fazendo essas perguntas para as pessoas, gosto de escrever sobre sexualidade e ouvir as pessoas falarem sobre isso”

Em 2020, ela escreveu um primeiro conto erótico, despretensiosamente, e mandou para um amigo. O feedback foi muito positivo e, animada, Monique começou a produzir mais textos e enviar a pessoas próximas até que, com um volume já grande de contos, resolveu entrar em contato com a editoria do UOL voltada para o universo feminino. 

A ideia era divulgar esse trabalho. Deu certo – tanto que, depois de aparecer em outros veículos, uma produtora entrou em contato para transformar um dos seus contos em animação para uma série em streaming. 

Esse projeto ainda está em andamento, assim como a publicação de uma coletânea com seus contos em 2025, mas outro já foi lançado no final do ano passado: o documentário sobre sexualidade feminina Biografias Íntimas.

Trata-se de uma produção da GNT em parceria com a Grifa Filmes que aborda a diversidade de desejos de mulheres com vivências e preferências bastante distintas, mas normalmente subrepresentadas em produções culturais sobre sexo — a questão da falta de protagonismo. “O objetivo era falar um pouco desse meu processo criativo para escrita e sobre o que que me inspirava”, diz Monique.

Nesse bate-papo registrado pelo documentário, surgiu a questão sobre a hipersexualização da mulher negra e o questionamento se Monique não tinha receio de, ao torná-las protagonistas das suas histórias, reforçar essa visão estereotipada. Ela rebate essa ideia:

“Eu explico que é muito pelo contrário. Eu quero tomar as rédeas da forma como essa história sobre o meu corpo, sobre mim, vai ser contada” 

De fato, é isso que a jornalista, escritora e consultora faz em suas diversas atividades: tomar as rédeas, contar a sua história, encantar diferentes públicos – e abrir espaços para que a diversidade tenha voz e protagonismo.

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