“Eu sou o Hermes, fiz 60 anos em junho. Estou desfrutando de um tempo muito especial como avô, como esposo, como pai… E na minha trajetória profissional eu estou atuando nessa comunidade há 24 anos.”
É assim que o cearense Hermes de Souza, fundador do Instituto NUA – e “pHD em favelês”, como ele se identifica em seu LinkedIn –, começou a sua conversa com o Draft.
Esse momento de vida mais suave destoa das turbulências do passado. Em 1990, o Plano Collor confiscou as economias de toda a população brasileira. “Vi meu pai perder tudo, morrer depois de trabalhar 80 anos – e ficar sem nada”, relembra Hermes.
Sua vida, a partir daí, deu uma “despirocada”: ele entrou para o crime e se viciou no crack.
“Foi um abismo atrás do outro: dez anos de prisão, dez anos de dependência química… Quando eu saí da prisão, em 2000, foi a comunidade que me recebeu. Só que era a segunda mais violenta de São Paulo”
A comunidade era São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo. Foi ali que Hermes e a esposa resolveram fincar raízes quando ele deixou a cadeia. E foi ali que se iniciou a sua nova vida, de ativista social e líder comunitário.
Hoje, Hermes está à frente de uma nova empreitada. Ao lado de Aziz Camali Constantino e Karina Imoto, entre outros, ele toca a Escola de desNegócio, que vem impulsionando pequenos empreendedores daquela região.
ANTES DA ESCOLA HOUVE UM PODCAST
Aziz é um cara inquieto, além de um velho conhecido do Draft. Em 2019, por exemplo, ele assinou aqui um Lifehackers falando sobre sua trajetória de vida e de negócios, como empreendedor da DZN e da SKEP.
No ano seguinte, quando a pandemia de Covid-19 começou a devastar o Brasil (não custa lembrar: juntos, o coronavírus e o negacionismo sanitário mataram mais de 700 mil brasileiros), Aziz arregaçou as mangas e criou o Orgânico Solidário, uma plataforma de distribuição de comida em favelas:
“O Orgânico Solidário veio na minha vida para eu me conectar com a quebrada e entender esse lugar a que eu não tinha acesso… A partir daí, conheci líderes comunitários pelo Brasil todo”
Mais ou menos por essa mesma época, Aziz chamou um amigo – David Kato, que tinha sido executivo do iFood – para criarem juntos um podcast, o desNegócio.
“O podcast nasceu de uma vontade legítima de aprender a partir de uma escuta empática, atenta com pessoas que escolheram empreender”, afirma.
Aziz explica o porquê do nome, desnegócio:
“O ‘des’ vem primeiro da negação, do questionamento de que alguma coisa está muito errada, de que a gente falhou. E também vai como uma desconstrução do negativo, para outro lugar, do ‘desenrolar’ – que é o lugar da gambiarra, do jeitão brasileiro”
Em episódios de cerca de 1h30, eles ouviam “gente que está querendo impactar dentro das suas microrrevoluções”. Em contrapartida, enquanto dava voz a empreendedores de impacto, Aziz desenvolvia um olhar mais crítico às ONGs:
“O terceiro setor se vê como excluído, separado do rolê. O mundo 2.0 está virando 2.5 — e o mundo 3.0 não está virando 2.5, então tem um déficit aí. O terceiro setor precisa se profissionalizar como cultura, como modelo, organização…”
No Spotify, o podcast desNegócio tem 90 episódios. Aziz diz que, no inconsciente, aquele repertório de conversas já estava aos poucos consolidando uma ideia de metodologia de aprendizagem.
O marco de mudança de escola para podcast foi quando, em maio de 2023, ele convidou Hermes para participar.
“O Hermes falou: ‘esse negócio é da hora, hein? Pô, eu vou pegar e passar isso pra molecada [de São Miguel Paulista] ouvir’. Eu falei: faz todo sentido, Hermes, manda sim, vamos ver se eles se identificam”
Hermes diz que ficou fascinado com o nome, desNegócio. A garotada da comunidade, segundo ele, também aprovou o conteúdo: “E aí, quando surge o edital, eu dou uma provocada no Aziz pra gente criar a Escola de desNegócio”.
O tal edital era uma iniciativa do Aipê – Aliança pela Inclusão Produtiva, que inclui a Fundação Tide Setubal, a Fundação Heineken e o Instituto Votorantim, entre outras. Aziz relembra:
“Eu falei: olha lá, 400 mil reais pra montar uma escola de desenvolvimento empreendedor dentro das periferias… É uma oportunidade para transformar isso em realidade”
David Kato deixou o projeto, seguiu seu próprio caminho. No lugar dele, ao lado de Aziz e Hermes, chegou Karina Imoto, ex-diretora de inovação da agência Africa que já atuava com filantropia no território de São Miguel Paulista.
“Ela entra com uma terceira força para materializar, criar uma metodologia, desenhar um modelo”, diz Aziz. “E de, sei lá, setecentas iniciativas, a gente foi uma das seis que ganharam o edital.”
A conquista do edital se deu em novembro de 2023, por meio do Instituto NUA, fundado por Hermes. “O NUA é a organização social central do Hermes, que já tem uma credibilidade gigante no mundo do terceiro setor”, diz Aziz.
O recurso de 400 mil reais caiu na conta do Instituto e permitiu rodar o primeiro programa, que começou em janeiro deste ano.
“A gente brinca que é quase como se fosse um ‘Startse da quebrada’. Só que em vez de ter que pagar [pelo curso], é de graça. E em vez de ganhar de brinde um squeeze, uma mochila, você ganha 10 mil reais em dinheiro como investimento adubo”
No fim, segundo Aziz, os(as) empreendedores(as) ainda têm a oportunidade de se tornarem sócios(as) do projeto, colocando dinheiro em um “fundo local de base comunitária” destinado a ajudar a fomentar a independência econômica da escola.
Mesmo com a oferta atraente, chegar a 100 inscritos foi um parto. Na hora de prospectar inscritos, foi preciso superar a desconfiança da galera:
“A gente ouvia: mano, é mentira, o que esse cara tá fazendo aqui? Quem são essas pessoas? Por que eles escolheram a gente? E o Hermes falando: é real, moleque, pode vir, vai acontecer…”
Dos 100 inscritos, foram selecionados 35 privilegiando o seguinte filtro: gente que amava muito o que fazia; tinha uma proposta de valor alta; e que deixava claro que não estava lá só pelo dinheiro, mas também pelo aprendizado.
O programa tem dez módulos, cada um com um mês de duração e uma pegada temática, que vai além do manual típico de educação empreendedora. Aliás, evitar o vocabulário farialimer é crucial na hora de transmitir os conteúdos.
“A cultura das startups vem com um código tropicalizado americano que não tem nada a ver com o nosso contexto de origem”, diz Aziz. “E aí fica ‘executivo’, vira um linguajar que exclui.”
No primeiro mês, o tema do módulo é “autoestima”. No segundo, “coragem”, e por aí vai.
“Temos as oficinas, as vivências [no Cubo, por exemplo]… é um aprendizado muito experiencial, a gente cria atividades de interação para eles irem em missão. E pluga em cada módulo um convidado, um embaixador”
Os embaixadores são recrutados a partir, principalmente, de participações anteriores no podcast desNegócios. É gente como Ana Fontes, da Rede Mulher Empreendedora, e Amit Eisler, da Zissou, startup de colchões inteligentes.
O público de empreendedores e empreendedoras, por sua vez, é composto em sua maioria por pessoas pretas – mulheres, principalmente. “Enquanto nas startups as mulheres founders são minoria, na quebrada o empreendedorismo é um tema majoritariamente feminino”, diz Aziz.
Uma dessas empreendedoras é Aparecida dos Santos, 58, dona da Sidoka Doces Gourmet. Aziz resume o impacto que a escola vem tendo em seu negócio:
“A Sidoka já está com dois fornos, já está alugando um espaço – saindo da cozinha da casa dela, porque atrapalha pra caramba –, pegando dois sobrinhos e colocando pra vender, ela está automatizando o chatbot no whatsapp, montando um programa de fidelidade…”
Outro exemplo é Maxleide Nascimento Castro, 38, do Empório Natu Maris. Aziz conta que ela trabalhava com alimentos saudáveis devido a uma doença da irmã. Diante das margens de lucro baixas, Max resolveu criar blends de chá:
“Ela começa vendendo 50, 100 chás. Montou cinco blends, hoje está vendendo 4 mil chás online, bombando com um produto incrível.”
O cofundador da Escola de desNegócio exalta a baixa curva de desistência. Segundo ele, apenas duas pessoas das 35 deixaram o programa. “A gente está com um nível de qualidade, de presença e de coletivo muito forte”, afirma.
Aziz celebra também a clareza no uso do investimento adubo (depositado em duas parcelas, no quinto e no último mês): “Não é um investimento que eles precisam vender o pitch, tipo: ‘deixa eu ver se eu aprovo…’. A gente dá contorno, mas eles têm a autonomia de como usar”. E prossegue:
“Inclusive, falamos [internamente]: ‘e se alguém chega e diz: ‘eu vou usar isso pra pagar a escola do meu filho’, a gente vai poder falar ‘não’? Não… Mas foi muito legal porque todos trouxeram objetivos muito claros”
Na hora de avaliar o desempenho dos empreendedores, mais do que inserir números em planilhas, o que a escola leva em conta são ativos quase intangíveis:
“O crescimento que a gente mensura é do indivíduo com ele mesmo: a qualidade e o empoderamento de empreender. Então, tem esse lugar do autocuidado”, diz Aziz. “E das relações, a gente metrifica: como eu consegui expandir minhas relações? Trazer as pessoas que convivem comigo pro negócio? Expandir o território?”
Há duas décadas transformando a comunidade de São Miguel Paulista, Hermes de Souza festeja o impacto trazido pelo seu empreendimento:
“A Escola de desNegócio está se tornando um centro modelo de empreendedorismo regenerativo. A gente tem toda essa base de regenerar o sonho – e também de regenerar essa confiança no território.”
A ideia da Escola de desNegócio, afirma Aziz, é escalar numa relação simbiótica com as Organizações da Sociedade Civil (OSCs), contratando pessoas locais para serem os próximos replicadores de conteúdos.
“A nossa tese é a gente crescer empoderando as OSCs de diferentes regiões do país como as nossas franquias – e criar uma estrutura para passar de uma escola para cinco, e de cinco para cinquenta. Essa é a dança da combinação do econômico junto com o social”
Uma inspiração foi a Água Camelo, que já tinha participado do podcast desNegócio: “É uma empresa do terceiro setor que faz um trabalho bem bonito de pegar territórios vulneráveis, sem água tratada, e implantar programas de saneamento básico muito bem feitos”.
O momento agora é de planejar rodadas de captação para entender como dar esse salto.
“Essa é a nossa grande dúvida: como fazer com que isso se perpetue como um modelo sólido, uma referência de educação, que traga um negócio originalmente brasileiro”, diz Aziz. “A tese é não ficar só com um projeto utópico pontual, e sim ser de fato a principal plataforma de regeneração do empreender com a periferia do país.”
Em 2023, para cada real de lucro, a MOL Impacto destinou 5 reais a organizações sociais. Roberta Faria fala sobre a cultura de doação no Brasil e como sua empresa engaja consumidores através do varejo para ajudar a construir um mundo melhor.
Contra o negacionismo climático, é preciso ensinar as crianças desde cedo. Em um dos municípios menos populosos do Rio de Janeiro, a Recickla vem transformando hábitos (e trazendo dinheiro aos cofres públicos) por meio da educação ambiental.
O chef Edson Leite e a educadora Adélia Rodrigues tocam o Da Quebrada, um restaurante-escola na Vila Madalena que serve receitas veganas com orgânicos de pequenos produtores e capacita mulheres da periferia para trabalhar na gastronomia.