“Quero levar dignidade a quem já disputou pedaços de pizza com ratos”: Ricardo Frugoli alimenta 1 500 pessoas por dia em São Paulo

Paulo Vieira - 13 mar 2024
Ricardo Frugoli, chef, pesquisador, fundador do IPCB e criador do projeto Pão do Povo da Rua.
Paulo Vieira - 13 mar 2024
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Ainda falta uma hora para o almoço ser servido, mas os comensais já disputam espaço na calçada. Alguns parecem viver ali mesmo, e dormem aparentemente indiferentes ao sol agressivo das 11 horas de uma manhã de fevereiro. 

Não há exigência de dress code para adentrar à casa assobradada em que a comida os espera, a sede do projeto Pão do Povo da Rua. Regatas, tatuagens, bombetas e camisas abertas, contudo, predominam. 

Todo munícipe de São Paulo é bem-vindo no almoço, que é gratuito, mas são os moradores do “território” – os arredores da estação da Luz – que verdadeiramente enfrentam a muvuca das filas e batem ponto no Pão. Boa parte deles sem trabalho regular, ou mesmo sem qualquer trabalho, vivendo da mão para a boca, como se diz. Muitos entram e saem do fluxo da cracolândia, ali ao lado. 

O prato – e especialmente sua apresentação – é agradável, muito mais do que se espera de uma “cozinha solidária”. Naquela segunda-feira, 400 PFs de arroz, feijão, refogado de legumes, polenta e ovo cozido, para seguir o protocolo da “segunda-feira sem carne” proposto pela prefeitura de São Paulo, foram servidos. De sobremesa, manjar branco. 

Tudo na temperatura adequada e com os alimentos dispostos simétrica e harmonicamente. Os frequentadores do famoso bandejão da USP morreriam de inveja do prato oferecido por esse integrante da chamada Rede Cozinha Escola da prefeitura paulistana, que congrega cerca de 60 organizações sociais.

A UTOPIA DE UM CHEF E PESQUISADOR DA ALIMENTAÇÃO NO BRASIL: COMPARTILHAR SEU PRAZER À MESA COM O POVO QUE PASSA FOME

O capricho do serviço se inscreve no que o paulistano Ricardo Frugoli, fundador do Instituto de Pesquisa da Cozinha e da Cultura Brasileiras (IPCB), entidade que mantém o projeto Pão do Povo da Rua, chama de “dignidade alimentar”. 

Faz sentido: Ricardo é chef de cozinha e pesquisador de alimentação do Brasil, numa tradição que passa por Câmara Cascudo e, mais contemporaneamente, por Carlos Alberto Dória. 

Suas pesquisas sobre a comida brasileira já o levaram para diversos lugares. Nos países da África lusófona descobriu que o dendê tão marcante da cozinha baiana é uma invenção nossa, não do continente negro.

Ao longo dos anos, o IPCB notabilizou-se por sua ação social, promovendo desde 2015 ceias solidárias de Natal nas ruas de capitais brasileiras como Salvador, Belém, São Paulo e Fortaleza. 

O prazer que Ricardo diz ter à mesa ele quer compartilhar com os muitos deserdados que passam fome, como os da Luz. Essa é sua primeira utopia.

“Quero levar dignidade alimentar para pessoas que até outro dia recolhiam restos de comida do lixo ou, pior, tinham que disputar pedaços de pizza com ratos”

A entrada do IPCB na Rede Cozinha Escola veio no final de 2023. À prefeitura compete fornecer os recursos necessários para que o instituto ofereça as 400 refeições diárias gratuitas, além de prover capacitação e manter sete funcionários dedicados em regime de CLT.

O PÃO É UM ALIMENTO INCLUSIVO: PODE SER CONSUMIDO ATÉ POR QUEM  NÃO TEM DENTES PARA MASTIGAR

Para que o IPCB pudesse se credenciar na Rede contou muito a criação do projeto Pão do Povo da Rua, que provê café da manhã reforçado para 1 500 pessoas diariamente em pontos distintos do centro paulistano. 

O café inclui um copo de chocolate quente e o tal pão, que, reforçado com cacau, é quatro vezes mais nutritivo do que os similares, segundo Ricardo. Ele vem embalado em plástico, permitindo sua conservação por algum tempo. 

Essa embalagem também propicia o aproveitamento do produto, caso ele seja desperdiçado ou jogado na rua. Além do pão, Ricardo e sua equipe produzem quatro bolinhos de sabores diferentes – laranja, banana, cenoura e fubá –, igualmente distribuídos. 

O pão é um alimento macio, e isso é um “ativo”, já que muitos comensais têm dificuldades de mastigação por não possuírem dentes suficientes – ou não os possuírem absolutamente. 

Mas não acaba aí. Se a primeira utopia de Ricardo é levar dignidade alimentar para o povo da rua, a segunda é oferecer alguma reinserção social aos seus acolhidos. 

INSPIRADO NUMA CONFEITARIA NOVA-IORQUINA, RICARDO VÊ O PROJETO COMO CAMINHO DE REINSERÇÃO SOCIAL E NO MERCADO DE TRABALHO

Ricardo revelou ao Draft que essa dimensão transformadora tem inspiração explícita na Greyston Bakery, confeitaria nova-iorquina especializada em brownies (fornecidos, por exemplo, para a famosa sorveteria Ben & Jerry’s). 

Conforme Raj Sisodia e Michael J. Gelb contam em seu livro Empresas que Curam, o empreendedor estadunidense Bernie Glassman queria criar uma empresa lucrativa que servisse como âncora para outras entidades, estas voltadas à reinserção de pessoas alijadas do mercado de trabalho – como, por exemplo, ex-presidiários. Ricardo disse ao Draft:

“Entendo as coisas mais ou menos como as entendia o Glassman, ao menos da maneira como esse entendimento é destacado no livro. Ele dizia: ‘Não contratamos pessoas para fazer brownies. Fazemos brownies para contratar pessoas’”

 Todos os atuais 30 funcionários do Pão do Povo da Rua são pessoas que estavam em situação de vulnerabilidade social. Em alguns casos, ainda estão. Trata-se de um pré-requisito para contratação. 

Quem entra para o projeto recebe um programa de capacitação em panificação, além de auxílio para alojamento e acompanhamentos médico, odontológico, psicológico e de assistência social. 

No Pão, os funcionários têm um plano de carreira mínimo e, de tempos em tempos, frequentam juntos restaurantes e fazem algumas viagens. Ricardo também não consegue negar a muitos que o acessam pequenas doações em dinheiro ou material de higiene pessoal. 

Não é incomum que, mesmo assim, essas pessoas desapareçam subitamente. Liderar o departamento de RH do projeto deve ser um desafio raramente visto nas organizações brasileiras.

O gerente-geral do Pão, Ricardo Mendes, por exemplo, deixou São Carlos, no interior paulista, onde era paisagista, para, na capital, parar no fluxo da cracolândia. Depois de ser acolhido pelo projeto, teve altos e baixos, e conhece perfeitamente a situação pela qual também passam as pessoas hoje sob seu comando. 

Episódios de violência, por exemplo, não são incomuns, especialmente entre aqueles diagnosticados com esquizofrenia.

NAS TERRÍVEIS PRIMEIRAS SEMANAS DA PANDEMIA, O APELO DE UM EX-ALUNO LEVOU O CHEF A CRIAR O PÃO DO POVO DA RUA

É de se perguntar o que leva alguém a enfiar mãos e pés em tal vespeiro. Especialmente uma pessoa que tem na agulha um projeto de pesquisa estruturado, e, mais, uma instituição de ensino parceira em Brasília pronta a recebê-lo e desenvolvê-lo. 

O chef quer recolher receitas e usos da alimentação brasileira que, julga, sobrevivem apenas na tradição oral e, por isso, correm risco de extinção. O campo de pesquisa é o Brasil inteiro. A inspiração vem, entre outros, do livro Os parceiros do Rio Bonito, do sociólogo (e crítico literário) Antonio Candido.

À pergunta retórica feita acima, cabe uma resposta nada retórica: o que levou Ricardo a um dia montar o Pão do Povo da Rua foi o apelo de um ex-aluno, instando o antigo professor a se engajar de alguma forma naquelas terríveis primeiras semanas da pandemia de Covid-19.

“Tenho diabetes, por isso eu estava totalmente isolado, mas esse meu ex-aluno me escreveu para perguntar: ‘Você não vai fazer nada?’ As pessoas estavam morrendo, eu havia perdido na pandemia 35 amigos e conhecidos, todas pessoas que chegaram a comer na minha casa, e fiquei sensibilizado pelas cenas que via, pessoas disputando o lixo na rua. Decidi fazer alguma coisa”

Ricardo passou a produzir marmitas que distribuía sem contato físico com o mundo exterior. Filas de até 90 pessoas se formavam à frente de sua casa, na rua Frei Caneca, na área central de São Paulo. Fazia tudo a fundo perdido. Ele calcula ter gastado 15 mil reais por mês com isso. 

Por conta desse trabalho, em 2021 o pesquisador recebeu, por meio de doação de um colega, equipamento industrial de panificação. 

Nascia assim o Pão do Povo da Rua.

ELEITOR DA ESQUERDA, ELE SE DECEPCIONOU COM A FALTA DE APOIO DE POLÍTICOS QUE FORAM CONHECER O PROJETO E NÃO VOLTARAM

Recentemente, Ricardo foi agraciado, junto com outras 15 pessoas, com o prêmio Cidade de São Paulo, oferecido a quem, segundo o site da prefeitura de São Paulo, contribui para tornar a cidade “mais justa, bonita e solidária”. 

O capitão do penta, Cafu, os políticos José Serra e Eduardo Jorge, além de empresários e lideranças sociais também receberam a comenda.

É curioso que, eleitor de partidos de esquerda, Ricardo tenha encontrado acolhida no prefeito de São Paulo, um político de centro-direita que flerta sem cerimônia com o bolsonarismo.

“Voto na esquerda, mas vereadores e políticos que conheceram o projeto, gostaram e disseram que nos ajudariam jamais voltaram… Foi o prefeito Ricardo Nunes, de centro-direita, que um dia mandou um ‘oi’ e me chamou para conversar”

A ação política parece ter derivado para a amizade, a julgar pelas fotos do aniversário de 55 anos de Ricardo, no fim de fevereiro, cuja festa foi prestigiada pelo prefeito.

A crítica à esquerda não é total. A deputada federal Luiza Erundina (Psol), ex-prefeita de São Paulo, apresentou emendas que poderiam beneficiar o Pão, mas o aporte não chegou, segundo o chef. 

DRIBLANDO A TENTAÇÃO DA DESISTÊNCIA: O PRÓXIMO PASSO É VENDER SONHOS (SIM, OS DE PADARIA) EM PONTOS ESTRATÉGICOS DA CIDADE

Ainda falta um chão para o Pão do Povo da Rua atingir a sonhada sustentabilidade de sua inspiradora, a Greyston Bakery. Enquanto isso, não são poucas as vezes em que o pesquisador, volta e meia esgotado psíquica e fisicamente, imagina viver seus últimos dias à frente da organização. 

Reportagens, como esta mesma do Draft, disse ele, têm o condão de fazê-lo recuperar um pouco da estamina ao lembrá-lo de que um enorme passo já foi dado.

Mas a tentação da desistência é permanente. O atendimento a demandas sociais tão básicas e prementes passa necessariamente por políticas públicas – e Ricardo sabe disso. Ações da sociedade civil, ainda que necessárias, muitas vezes servem para enxugar gelo.

(Ou, para alguns beneméritos, como maneira de equilibrar certa culpa de origem judaico-cristã com a manutenção dos próprios privilégios.)

O chef agora aposta numa ideia que pretende implementar e parece espelhada nos brownies da Greyston nova-iorquina. Seus padeiros passarão a assar sonhos – sim, os de padaria –, que serão vendidos por 10 reais em pontos estratégicos de São Paulo.

Embora não seja o produto mais fácil de produzir e esteja longe de garantir uma margem de lucro generosa, a dimensão afetiva contou na escolha do sonho (e não, digamos, de um cannoli ou de um pastel de belém). Ricardo diz que hoje é muito difícil encontrar um sonho inteiramente artesanal, mesmo nas padarias mais old school da cidade.

Mas o principal argumento não é esse. É que nenhum outro doce se chama sonho. E, ainda que isso pareça tautológico, é de sonho de que são feitos os sonhos.

 

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