Precisamos muito de contracultura. Sem transgressão criativa, nos tornamos idiotas 

Adriano Silva - 30 out 2020
Malcolm McDowell como Alex, o protagonista de "Laranja Mecânica" (1971), de Stanley Kubrick.
Adriano Silva - 30 out 2020
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Esses dias uma amiga postou uma foto do cartaz de Betty Blue, filme de Jean-Jacques Beineix. (37°2 le matin, no charmoso original em francês.) O filme, de 1986, chegou por aqui dois anos depois de lançado, como era comum naquela época. E fez algum sucesso no circuito de filmes de arte. A trilha, composta por Gabriel Yared, também foi bem cultuada entre a galera da minha geração – e arredores.

Minha amiga – Eliane Jover – e eu entramos na faculdade de Comunicação em 1988. E, aos 17 ou 18 anos (desculpa, querida, revelar assim sua idade), nos deparamos com um novo mundo. Adulto. Pós-moderno. E fin de siècle

Esse era o ambiente, filosófico e estético, que encontramos ali. O fim dos anos 80 carregou muito mais o sentimento soturno do apagar das luzes do século 20 do que propriamente o fim dos anos 90, que foi bastante festivo, na celebração à chegada do século 21.

Havia muita informação interessante à nossa disposição. A semiótica de Roland Barthes. As vanguardas artísticas – do dadaísmo à body art. As performances de Laurie Anderson. Gente interessante cruzava pelos corredores lendo Duna, ouvindo Miles Davis e discutindo Blade Runner e Laranja Mecânica

Eliane e eu, além de alguns outros bons amigos, mergulhamos naquela toca do coelho de Alice, cheia de referências pop que nos arrancavam a fórceps da adolescência e nos jogavam num mundo novo, ilustrado por obras e ideias que nos abriam a cabeça

Se fôssemos fazer um documentário daquele finzinho de década, talvez a trilha tivesse que ser o synth pop de New Order e Depeche Mode. E talvez a cinematografia tivesse que expressar a cultura gay, que começava a sair de vez do armário e a emprestar um pouco mais de sofisticação e ousadia e bom humor ao mundo.

Éramos meninos e meninas – nós, os calouros entre eles – que sonhavam em escrever e dirigir longas metragens e filmes comerciais, em publicar livros e reportagens e poesias, em trabalhar em TV ou como diretores de Arte. Muitos expressavam essa sanha criativa no jeito de vestir, de cortar os cabelos, de escolher acessórios. Era bacana – e provocador – circular por ali.

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O cinema foi um dos principais territórios que ressignificávamos com aquela imersão dupla – numa escola de Comunicação e na maioridade (intelectual, inclusive).

Havia as sessões da meia-noite no cine ABC. Assisti ali a O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante, de Peter Greenaway. Sexo, Mentiras e Videotape, de Steven Soderbergh. E Bagdad Café, de Percy Adlon.

Na Casa de Cultura Mario Quintana assisti a Manon des Sources, de Claude Berri. O Castelo de Minha Mãe, de Yves Robert. O Declínio do Império Americano, de Denys Arcand.

No Cine Sesc assisti a O Ilusionista, de Jos Stelling. Delicatessen, de Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro. E Minha Adorável Lavanderia, de Stephen Frears.

No meio de uma tarde qualquer assisti, na companhia de Luis Fernando Verissimo e sua mulher, numa sala praticamente vazia, a Barton Fink, dos Irmãos Coen. E todo mundo falava em Daunbailó, de Jim Jarmusch.

Esses filmes não são necessariamente os melhores que assisti na vida. Mas todos eles alteraram de algum modo a minha sensibilidade, me ensinaram a ver e a sentir coisas novas – ou a ver e a sentir coisas que eu já julgava conhecer, só que de um jeito diferente.

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Eis o que me pergunto: ainda existem estudantes de Comunicação – ou de Humanas, em geral – interessados em filmes de Arte?

Ou será que todo mundo está matriculado em cursos funcionais que possam c0nduzir a uma carreira dinheirista numa startup de tecnologia?

Ainda existem meninas e meninos encantados em descobrir os cânones e as obras malditas, os artistas clássicos e os underdogs também, ou tudo virou pastiche efêmero no Instagram e no TikTok?

Ainda há gente disposta a trocar o conforto da própria ignorância pela dor e pela delícia de aprender coisas novas? Ou todo mundo já nasceu sabendo tudo – e sem curiosidade alguma? 

Ainda existem sessões da meia-noite em cinemas alternativos em bairros boêmios?

Ou não é mais possível assistir a um filme fora de um shopping center, numa experiência artística que seja mais do que o mero desfecho comercial de um jantar fast-food na praça de alimentação?

Ainda se produzem filmes de autor?

Ou nada que não tenha sido concebido em computação gráfica e tenha alguma chance de virar blockbuster está sendo produzido ou exibido por esses dias?

A Netflix, a Amazon e outros quetais nos salvam dessa areia movediça – ou nos empurram ainda mais para o fundo do poço? (Tente encontrar hoje um filme de Akira Kurosawa ou Alan Parker ou Ingmar Bergman no seu serviço de streaming…)

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Em suma: ainda existe algum tipo de contracultura?

Nas Artes, nos negócios, nos jeitos que escolhemos para viver, trabalhar, fruir – existe algum espaço alternativo em nossas vidas, um ambiente para experimentação e descoberta?

Ou tudo virou mainstream? Ou cada um, com todo o empoderamento que nos foi permitido pela revolução digital, virou uma versão conservadora e acomodada de si mesmo?

É muito importante que nossas obras de culto não coincidam sempre com o best-seller, com o top chart, com o que aparece travestido de número 1 nas paradas de sucesso ou nas listas de bilheteria. 

A que revolução em curso hoje você se filia? 

(Os algoritmos não representam mais a rebeldia. Eles se tornaram o novo regime, o padrão que oprime.)

Ou você só consegue apontar as convenções que lhe formam como pessoa e as tradições a que se filia?

Qual foi a última vez que você mudou de ideia porque uma nova compreensão aposentou a convicção que você nutria antes? 

Sinto uma falta danada de mais transgressão criativa em nossas vidas. 

De uma voz dentro da cabeça que nos desassossegue. De um retumbar dentro do peito que nos empurre adiante.

E você?

 

(Artigo publicado também na ótima newsletter Parêntese, editada por Luís Augusto Fischer. Conheça. Assine.)

 

Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft, Founder do Draft Inc. e Chief Creative Officer (CCO) do Draft Canada. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV A República dos Editores.

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