“Seria possível retratar as mulheres negras brasileiras reais? Mostrá-las em situações não estereotipadas?”

Joana Mendes - 20 set 2019 Joana Mendes - 20 set 2019
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por Joana Mendes

Para e pensa comigo, quantas mulheres negras tem ao seu redor? Quantas trabalham com você? Têm cargos de chefia? Quantas você tem algum tipo de relacionamento amoroso: desde amizade até um relacionamento romântico mesmo (não vale aquela: eu tive uma babá negra e chamava de mãe, mas isso eu falo em outro texto)? Quantas você vê em campanhas publicitárias em papéis não estereotipados?  

Se você faz parte da classe média brasileira, a resposta deve ir de 0 até 1 ou 2. Mas, vou voltar um pouco e me apresentar. Me chamo Joana Mendes, tenho 33 anos, sou negra, mulher, nortista. Nasci e cresci em Porto Velho, Rondônia, um lugar que muita gente confunde com Roraima. Sou neta de uma empregada doméstica e filha de uma doutora em saúde pública.

Havia poucas mulheres negras ao meu redor, na minha escola, na minha cidade. E isso fez com que eu sofresse um sem número de racismos, e sonhasse em ser branca, como as mulheres loiras,  apresentadoras dos programas infantis da minha infância. Por que eu entendi que ser branca era ser bonita

Me formei em Publicidade na minha cidade, me mudei para o Rio, para uma pós e acabei ficando por lá por seis anos. Em 2012, fui selecionada pelo Festival de Cannes para fazer parte do primeiro Young Lions Creative Academy e, depois disso, decidi me mudar pra São Paulo. 

A minha mudança para coincidiu com a quarta onda feminista e, foi só aí que comecei a perceber o racismo, machismo e homofobia das agências de publicidade. Eu era a única negra da criação na maioria das agências que passei. Os comentários racistas, machistas, homofóbicos e classistas aconteciam, comigo ali ou não.  

Comecei a notar que, na hora de fazer um casting (escolher fotos em banco de imagens), acaba-se escolhendo perpetuar o que sempre foi visto e feito: pessoas brancas, magras, com um padrão eurocêntrico de beleza. Bem longe do que as estatísticas mostram que é a população brasileira: 54% se autodeclara negra

A ideia de um banco de imagens de mulheres negras veio daí. Seria possível retratar as mulheres negras brasileiras reais? Mostrá-las em situações não estereotipadas? Mulheres mais parecidas comigo e não com apresentadoras loiras de programas infantis?

O banco foi financiado coletivamente, para que as pessoas soubessem que ele existia antes mesmo de existir e, também, por que não tinha dinheiro para pagar o projeto e me sentia constrangida em pedir a mulheres negras, as pessoas que menos ganham na piramide social, para fazer algo para mim de graça

A lógica também foi a de não negociação de preço. Se alguém falasse um preço que eu conseguiria pagar, eu pagava o que ela havia pedido. Se ela pedia menos, eu oferecia pagar o valor que tinha selecionado para o trabalho. Nenhuma pediu um valor acima do que eu poderia pagar.  

Provavelmente, o período de financiamento coletivo do Young, Gifted and Black (ou, YGB, como chamei o banco de imagens em homenagem a uma música de Nina Simone, hino dos direitos civis americanos) foi o momento de maior ansiedade que eu já passei na vida. A página de financiamento era a primeira e última coisa que eu via no dia.

Fiz posts pedindo dinheiro, falei com familiares distantes, gente que eu só tinha visto uma vez na vida, mandei mensagem para todos da agência que eu tinha acabado de entrar. O meu único assunto durante um mês foi: banco de imagens/ já financiou o banco de imagens? 

Assim que o financiamento ultrapassou a meta, eu dormi 12 horas seguidas. Menos de um mês depois, antes mesmo do dinheiro do financiamento cair na conta, a pessoa que estava junto comigo no projeto saiu e eu me vi sem saber como fazer a produção dali para frente. Só sabia escrever. Em agências grandes, o trabalho é todo compartimentado. A gente recebe tudo por e-mail, faz reuniões para decidir os próximos passos, mas sempre existe alguém muito bom que vai fazer casting, falar com fotográfos, maquiadores.  

Eu tive que assumir muitas funções. Aprendi a fazer casting. Encontrei modelos em bloco de carnaval, em restaurantes. No meio do processo, entendi que queria todas as mulheres negras possíveis. Quando notei que não conhecia mulheres negras trans ou mulheres negras com alguma deficiência, fiz chamamentos pelas redes sociais.

Além disso, montei pastas de referência de fotografia, pedi roupas emprestadas, locação emprestada, montei apresentações para marcas. E, acima de tudo, pude contar com apoio de várias mulheres que me indicavam maquiadoras, modelos, locações, ajuda. 

O banco atrasou muito — por uma série de razões, muitas externas a mim. Houve duas sessões de fotos. Na primeira, para que todas as mulheres se sentissem como num set profissional, na véspera das fotos, como eu estava trabalhando numa agência, minha namorada foi até um supermercado popular de São Paulo e comprou um café da manhã completo. 

No dia das fotos, eu esqueci que todo mundo precisava almoçar e acabamos improvisando uma pizzada. Nada disso tinha sido pensado na hora que eu fiz os cálculos para o banco de imagem. A sorte foi que, algumas das demandas, eu absorvi e o catering caiu nessa conta.

Por uma série de questões, não pude usar as fotos… O dinheiro também havia acabado para fazer uma nova sessão e as pessoas que financiaram não paravam de cobrar — com toda a razão. Conversei com uma nova fotógrafa, a Camila Tuon, que topou fazer fotos por um preço menor, chamei a maquiadora, a Amanda Pris. A Mariana Santos, que já havia fotografado antes, se  prontificou a fazer mais fotos e, a Mariana Mendes, veio do Rio para fazer produção de moda. Todas atacaram de modelo. Inclusive, eu. Procurei novas locações e as roupas que usamos vieram do acervo da Mariana Santos e as peças que cada uma tinha.

As fotos ficaram lindas, mas não eram as fotos que eu queria que as pessoas recebessem. Eu queria poder mostrar as mulheres negras trans, imigrantes, com deficiência, as gordas, as magras, as mães, as LGBT.  

Porque, para mim, esse projeto não é só sobre colocar as mulheres negras como modelos, como um corpo. Porque isso a sociedade já considera a gente: a mulata tipo exportação, a ama de leite. Esse lugar já foi posto pela escravidão e pelo racismo

Eu queria que as mulheres negras mostrassem toda a sua potência. Que, sim, pode vir pelo corpo, mas pode ser muito mais. Pode vir do lugar de respeito que a sociedade dá aos brancos: o talento, a subjetividade, o olhar.  

O banco precisa de apoio para se tornar muito mais. Alguns itens estão a venda como, canecas, pôsteres e adesivos. Mas eu gostaria muito que a alguma marca apoiasse o projeto e que ele pudesse se tornar maior. A produção, maquiagem, foto e até a programação do site foram feitos por mulheres negras. Em sua maioria, LGBTQ+. Cada uma das modelos teve sua história ouvida por uma repórter, também negra. É um banco sem igual no mundo.

Essa é a história do Young, Gifted and Black. Que ele ganha asas! 

 

Joana Mendes, 33 anos, é rondoniense e redatora publicitária há 13. Teve passagens por agências como FCB, JWT, Loducca e Avon Global. Vem falando sobre feminismo, publicidade e ser negro no presente, passado e futuro em lugares como: Festival Share, Festival Path, Campus Party, Youpix Talks, entre outros. Criou o YGB, único banco de imagens de mulheres negras feito por mulheres negras do mundo e é sócia da Idánimo.

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