O que você fizer em 2021 mudará para sempre a trajetória de toda a sua descendência. (Então: Feliz Ano-Novo!)

Adriano Silva - 31 dez 2020 Adriano Silva - 31 dez 2020
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Esses dias estava pensando na grande aventura dos genes sobre o planeta. Como, ao longo do tempo, somos definidos por esse jogo. E também como influenciamos os movimentos nesse tabuleiro com nossas ações.

A vida, você sabe, é uma sucessão de escolhas. Cada decisão que você toma abre um novo painel de opções à sua frente. A vida é o que a gente faz dela. E é, ao mesmo tempo, uma trajetória bastante aleatória, acidental e imprevisível

Até onde a vista consegue alcançar, vim da Itália. E, antes, da Espanha e de Portugal. E, antes ainda, sou também nativo brasileiro, habitante antigo da América do Sul. O que quer dizer que vim um dia da Ásia, na marcha milenar que populou esse continente, a partir do Alaska, em direção à Terra do Fogo. 

Coloque mais alguns milhares de anos nessa conta e você me encontrará na savana africana, em cima de uma árvore, colhendo uma fruta ou tentando escapar de um predador.

Os genes que me formam passaram por tudo isso. E por muito mais. Pedaços da minha carga genética vêm de lugares imperscrutáveis, testemunharam passagens inalcançáveis para mim hoje. Mas, sim, eu estava lá.

Peregrinei em caravanas por desertos e montanhas – por isso, talvez, minha lombar incomode tanto. Talvez tenha puxado remos em alguma galé. Ou moído um tipo de trigo que nem existe mais. Ou matado alguém a golpes de adaga. Ou morrido de doença ou com tiro do mosquetão. 

Encerro em mim, de certa forma, uma boa parte da história humana sobre a Terra. Assim como você. Existimos – e não apenas a partir da data em que nascemos, mas desde que as características que lhe formam como indivíduo começaram a rolar por aí no redemoinho dos encontros de gametas entre os machos e as fêmeas da espécie.

Isso considerando apenas a jornada do ácido desoxirribonucleico que lhe constitui. Se descermos ao andar dos átomos que lhe formam, bem, aí, isso que você é hoje, sua carne, seus ossos, seus cabelos, seu sangue, seus olhos, suas unhas, estão rolando pelo planeta há muito mais tempo.

Você, descendente do universo. Você, um com a galáxia. Você, poeira das estrelas. Você, sim, nessa acepção, “filho de Deus”.

Tudo isso para dizer que essa é uma dança bonita. E que somos apenas um pequeno capítulo na longa trajetória dos genes que nos definem

Tudo isso para dizer que cada virada de esquina que empreendemos na vida muda completamente a trajetória futura desses genes.

Se um certo Leoni Rossi não tivesse um dia, no século 19, decidido deixar a Itália para tentar a sorte no Brasil, eu não existiria. Uma noite de insônia a mais, uma paixão inesperada que aparecesse na vida daquele homem, um instante mais agudo de medo e hesitação, e eu não estaria escrevendo essas linhas hoje.

Agora pense que dependi dessa mesma loteria, distribuída entre milhares de antepassados diretos, nas 100 gerações que me distanciam dos meus parentes que viveram nos tempos de Jesus Cristo. 

Ou nas 200 gerações que me separam dos meus avós que viveram na época em que Stonehenge foi erigida e o cavalo foi domesticado pelo homem, há 4 mil anos, ainda em plena Idade do Bronze.

Hoje influencio essa mesma roleta que me pariu. Ao sair de Porto Alegre, alterei o futuro dos meus filhos. E pus um ponto final na linhagem pampeana que me gerou: minha família não é mais gaúcha. Meus genes vão seguir sua trilha noutra parte do mundo

Ao ter meus filhos em São Paulo, defini para eles uma naturalidade – poderia tê-los tido em Kyoto, com outra mulher. Ao escolher a mãe deles, escolhi também os outros avós que eles iriam ter, bem como metade da sua carga genética e de seu histórico familiar.

Ao não ter permanecido no Rio, há pouco mais de dez anos, impus aos meus filhos outra construção – hoje eles poderiam estar jogando futevôlei, torcendo pelo Flamengo e carregando o sotaque do Leblon.

Foi em São Paulo que eles tiveram sua infância, no esquema casa-carro-escola-carro-clube-carro-shopping-carro-condomínio. E foi desse esquema, entre outras coisas, que eu quis livrá-los ao trazê-los para estudar no Canadá.

Com isso, traço um outro caminho para a minha descendência. É provável que meus netos, se vierem a existir, não sejam brasileiros nem falem português. É provável que tenham traços anglo-saxões ou asiáticos. E que gostem de coisas exóticas, como poutine e eggnog.

Então essas coisas que consideramos perenes e sagradas, como pátria e família, são acontecimentos altamente fortuitos – e fundamentalmente provisórios.

As raízes que criamos e que nos enredam (e muitas vezes paralisam) são construtos mentais – não são travas reais, mas imaginárias, sem correspondência ao que realmente acontece com a gente ao longo do tempo 

Os genes que estão em meus filhos, e que eles passarão (ou não) adiante, tiveram apenas uma breve passagem pelo Brasil. Algo entre 100 e 200 anos, suponho. (A mãe deles também carrega genes que vieram de Portugal, com provável timbre sarraceno, há pouco mais de um século, e da Alemanha.) 

Mas a carga genética dos meus rebentos – o que eles são de verdade, por baixo da pele – tem muito mais anos de estrada, passou por dezenas de outros lugares. Esses genes continuarão em movimento, em constante processo de fusão e expansão. De uma forma muito mais dinâmica e interessante do que uma visão mais conservadora da vida muitas vezes nos permite enxergar.

Eu celebro a rebeldia dessas coreografias que nos fazem perceber que pertencemos todos ao mesmo lugar, e que esse lugar é o planeta, a casa de todos nós.

Eu me alegro com a inconformidade contida nessas combinações que acontecem como uma dança ritualística da espécie, impossível de prever e controlar – e absolutamente bem-vinda e necessária.

Me despeço aqui, feliz com a ideia de que a única coisa fixa na história da gente é o movimento. E de que a única coisa eterna que carregamos conosco é impermanência de tudo ao redor – a começar por nós mesmos, pelas pessoas com quem decidimos nos relacionar e pelos lugares onde escolhemos viver

Desejo a você o melhor réveillon possível, junto a quem você ama – e, sobretudo, em segurança. 

E um Ano-Novo que lhe traga tudo aquilo que você merece, em dobro.

 

Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft, Founder do Draft Inc. e Chief Creative Officer (CCO) do Draft Canada. É autor de nove livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV A República dos Editores.

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