“Mudar a forma como as pessoas se deslocam nas cidades não vai acontecer da noite para o dia… O nosso negócio olha para o futuro”

Marina Audi - 16 dez 2021
Tomás Martins, empreendedor da Tembici (foto: Mariana Pekin).
Marina Audi - 16 dez 2021
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O preço da gasolina nas alturas, o receio de se usar o transporte público por conta da pandemia, a necessidade (reafirmada na COP26) de se reduzir a emissão de gases do efeito estufa…

Toda essa conjuntura favorece a expansão de empresas de microbilidade urbana. É o caso da Tembici, greentech que opera bicicletas compartilhadas em sistema de estações fixas.

Tomás Martins, 35, é 0 cofundador e CEO da startup. Filho de um médico e de uma oceanógrafa, ele pertence à geração de universitários que decidiram sair diretamente da sala de aula e empreender no mercado.

Ao contrário das estatísticas, sua segunda empresa existe há 11 anos e é cotada para se transformar, em breve, em um unicórnio (scale-up com valuation acima de 1 bilhão de dólares).

Desde sua fundação, a Tembici registra mais de 50 milhões de deslocamentos realizados com bicicletas da marca nas dez cidades em que ela opera, entre elas Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo, a argentina Buenos Aires e a chilena Santiago.

Hoje, a startup tem uma frota total de 16 mil bicicletas (sendo mil elétricas), que fazem 80 mil viagens por dia. A aposta da Tembici é aumentar a quantidade de e-bikes no Brasil.

Leia a seguir a entrevista que Tomás deu ao Draft:

Seu avô materno tinha diversos negócios – consultoria, academias e gráficas –; seu pai é médico, e sua mãe, oceanógrafa. O que estas heranças tão diversas deixaram em você e que te trouxe até aqui?
Meu avô sempre foi inquieto, em todos os sentidos. Fez coisas diferentes e “apanhou” muito. Não é que ele tinha vários negócios e, hoje, é dono de um império…, pelo contrário! Ele teve vários momentos de sucesso e outros de aprendizado, de decepções. Isso me instigou e inspirou muito. Essa inquietude está no meu DNA.

Meu pai, apesar de lidar com pessoas o dia inteiro, é mais “fechadão”. Ele é uma pessoa de valores sólidos e isso passou para mim. Aprendi com ele a humildade de reconhecer quem a gente é e as dificuldades que temos… É aquela frase: “Nunca julgue os outros pelo seu olhar”.

Meu pai nos ensinou que você pode perder tudo na vida, mas nunca vai perder o seu conhecimento adquirido

Já minha mãe sempre foi sociável, queria as pessoas próximas, cultivava relacionamentos de longo tempo. Na parte profissional, é apaixonada pelo meio ambiente.

Cresci vendo minha mãe ir, a cada dois anos, para a Antártida, em expedição de pesquisa. Já na década de 1990, ela tirava foto de uma geleira e dizia: “Não sei o que está acontecendo, mas aquela geleira está recuando…”. Ela foi uma das primeiras mulheres pesquisadoras a ir para lá

Minha mãe também tem essa inquietude, que ela puxou do meu avô… Mas com uma visão ambiental e de sociedade muito forte.

Esse tema de conversa ficou bem forte em sua casa, certo?  
Totalmente. Acho que o principal foram a inquietude e os valores ensinados. Recentemente, perdi a minha avó materna. Ela sempre falou que valores são ensinados por ações, não por palavras.

Minha avó teve câncer e foi meio que se preparando. No último ano de vida, ficou o tempo inteiro ensinando coisas para gente. Na última viagem que a gente fez com a minha avó, ela colocou a família inteira para assistir ao filme indiano Toilet [lançado no Brasil em 2017 e disponível na Netflix], que fala sobre um lugar na Índia em que as mulheres não tinham banheiro para ir e precisavam sair juntas para o campo, para não sofrerem assédio. Foi o único pedido dela.

Esse caldo de DNA… talvez eu tenha demorado um pouco para perceber a importância disso. Mas hoje reconheço muito.

Você chegou a trabalhar no mercado corporativo antes de empreender? Ou em algum dos negócios do seu avô? 
Na faculdade, fiz uns bicos na consultoria do meu avô na parte administrativa, mas pouca coisa e nada formal. Quando estava no fim da faculdade, participei de alguns projetos, comecei a me dar bem ao trabalhar junto com um grupo de amigos fazendo umas coisas diferentes e pensamos em empreender.

Ao mesmo tempo, fui participar de um processo seletivo de uma empresa. Eram oito entrevistas, a última foi com o presidente. Eu tinha morado fora [na Holanda], no país de origem dele. Ele falou: “Legal, vou bater papo com um cara diferente”.

Eu era molecão, estava empolgado, fui conversar de peito aberto, tranquilo…, e o cara me amassou na entrevista, acabou comigo. O processo inteiro tinha sido duro. Pensei: será que eu precisava daquilo? Se as entrevistas foram assim, se o presidente era aquele, imagina o dia a dia daquele lugar… Devia ser um inferno! 

Claro que as empresas evoluíram nesse sentido. Estou falando de 12 anos atrás, muita coisa mudou. Mas isso ficou marcado em mim. Eu queria tentar a chance de fazer um negócio onde as pessoas fossem importantes e houvesse um ambiente legal de se estar.

A gente sempre fala na Tembici: “Com quem você faz importa mais do que o que você faz”. Às vezes, a jornada pode não dar certo, mas que pelo menos seja um lugar minimamente respeitoso e colaborativo para se estar todos os dias.

Depois daquela entrevista, eu falei: “Quer saber? Vou empreender”. Tentei montar uma consultoria na área de sustentabilidade. Não deu certo.

O que não deu certo nessa consultoria? O relacionamento com os sócios ou o modelo de negócio? E o que isso te deixou de aprendizado? 
Acho que foi o modelo de negócio. Fiz Relações Internacionais na FAAP e montamos a consultoria para tentar desenvolver negócios, montar projetos com organismos multilaterais ligados à saúde, educação, mobilidade e sustentabilidade.

Depois de seis meses sem nada, começamos a fazer captação de recursos para projetos incentivados pela Lei Rouanet, projetos de esporte. E percebi que não queria ir por esse caminho.

Eu acreditava mais que os negócios tinham que ser sustentáveis e trazer finalidades de ganhos para a sociedade como um todo —mas tinham de ser negócios por princípio. Não acreditava tanto no potencial do lugar para onde a gente foi caminhando.

Como você conheceu seu atual sócio, Maurício Villar? Por que vocês fundaram a Compartibike, precursora da Tembici, e chegaram à visão de que “o negócio da Tembici é transformar o ir e vir das pessoas, e pensar como oferecer novas opções de mobilidade”? 
Eu estava em um projeto para automatizar os bicicletários do metrô, ainda naquele primeiro empreendimento que não estava dando tão certo. Não era no modelo de negócio que eu achava correto, mas eu gostava.

Em uma reunião, conheci o Maurício, que já tinha desenvolvido um software de automação dentro da USP. Mas esse projeto com o metrô nem andou!

Foi uma conjunção de histórias, porque tive a oportunidade de morar na Holanda por seis meses, no colegial, e lá eu usava bike para tudo.

A história do Maurício é ainda mais interessante. Ele foi fazer uma dupla titulação pela Poli-USP em Marselha, na França, porque queria trabalhar na indústria automobilística. No meio do caminho, conheceu um dos primeiros projetos de bicicletas compartilhadas do mundo e achou aquilo sensacional. Ele trouxe essa ideia para o TCC dele.

Onze anos atrás não existia a ciclovia da Faria Lima, nem a da Paulista. As cidades eram bem diferentes, mas eu apostava nisso, porque achava que haveria uma mudança no nosso meio de nos locomovermos na cidade. Não há uma pessoa que diga: “Gosto de ficar duas horas no carro.”

O Mau me disse que estava no meio do caminho, incubado na USP… que o Pedalusp estava meio morrendo. Ele queria sair, mas estava sem ninguém para comprar a história junto com ele. Quando vi a ideia, embarquei.

Em maio de 2011, a gente “spinoffou”. Ele saiu da USP para ficar dois anos na sala da minha casa, que foi o nosso primeiro escritório.

Fizemos o primeiro projeto juntos em Indaiatuba (SP), onde a prefeitura tinha uma parceria com a Fundação Toyota para colocar bicicletas compartilhadas pela cidade. Eles tinham os bicicletários, onde havia colaboradores da prefeitura que emprestavam a bicicleta para a população, e precisavam de um software para gerenciar esse empréstimo.

Depois, colocamos um sisteminha na SuperVia do Rio de Janeiro. Na virada de 2011 para 2012, fomos para Riviera de São Lourenço, condomínio em Bertioga (SP). Foi nosso grande MBA. E começamos a pegar tração.

Imagino que comprar as bicicletas, montar a estação, além de manter o software de gerenciamento de empréstimo, deve ter exigido um volume de recursos…
A gente não tinha dinheiro. Em Indaiatuba eles nos pagaram por um software, o que deixou uns 15 mil reais para nós.

A Riviera de São Lourenço exigiu um investimento de 120 mil reais. O contrato lá era de três anos e daria uma receita de 160 mil reais no total. Mas tinha que investir 120 mil no começo.

Então, fizemos empréstimo na Caixa Econômica. A gente brinca que a nossa gerente [no banco] foi a primeira visionária (risos)… Ela nos emprestou esse dinheiro e nós colocamos o projeto de pé

Várias vezes durante o projeto, acabou o caixa. O Mau pegou dinheiro com a esposa, eu peguei com a ex-namorada, o pai de um emprestou dinheiro, amigo de outro emprestou também. Colocamos nossos carros como garantia… A gente se virou com o que tinha. Até coloquei a casa dos meus pais para avalizar empréstimo!

A gente “deu no muro” várias vezes. Só não sei como saímos do outro lado!

A opção por empréstimo convencional foi por falta de venture capital no Brasil, naquela época? 
Até existia, mas ninguém acreditava na gente! Durante muito tempo, tomamos “não” de fundos, porque havia uma empresa que já estava começando a fazer isso [compartilhamento de bicicletas], que o Itaú patrocinava, e eles entendiam que essa empresa seria a ganhadora do mercado.

A gente tinha duas dificuldades: um competidor maior, que estava mais sólido; e [o fato de que] os VCs eram muito ligados a software 

Você explicar que tinha investimento forte em hardware, bicicleta e estação, isso assustava os investidores naquela época.

Mais do que gerenciar a questão do empréstimo da bike, um grande valor dos softwares de todas as empresas de mobilidade é a coleta de informações sobre a pessoa que está usando a bicicleta, o patinete ou a e-bike. O que era o software de vocês no começo?
Naquela época, queríamos sobreviver. O software rodava para a gente não ter que fazer o controle no papel, como aconteceu durante um mês na Riviera. Era, literalmente, tentar facilitar para que não fosse manual.

A visão de coleta de informação para entender comportamento veio de quatro anos para cá. Hoje, temos um time com mais de 20 pessoas em análise de dados.

Quais gargalos vocês encontraram naquela época e que levaram vocês a desenvolver o modelo de negócio de receita de patrocínio mais receita de consumidor final?
Quando brinquei que a Riviera foi o nosso MBA, foi porque nos ensinou sobre todo o nosso negócio. Naquela época éramos os quatro sócios e só. Nós fazíamos a manutenção das bikes, o conserto das placas eletrônicas nas estações, o call-center dos usuários, a cobrança, o financeiro, o comercial… tudo.

Isso deixou aprendizados interessantes. Um deles foi a importância do produto combinado – hardware e software, a tecnologia aplicada e integrada. Sentimos na pele o que era ter um produto ruim ou que dava muita manutenção e gerava insatisfação do usuário 

Passamos um ano e meio para acertar isso. Aquele empréstimo de 120 mil reais, a gente gastou em três meses. Foi um desastre completo, o sistema não funcionou…

Colocamos quatro estações [de compartilhamento] lá na Riviera. Nos comprometemos a entregar no dia 24 de dezembro. No dia 25, as estações estavam dando choque! A gente não sabia como consertar aquilo, então não ligamos o sistema… Mas, para honrar o contrato, ficamos lá fazendo empréstimo [das bicicletas] na mão, anotando no celular.

Foi um caos: a gente atendia o cliente na estação, via a pessoa chegando puta da vida porque o produto era ruim. Mas aprendemos muito sobre o nosso negócio, sob o ponto de vista do produto.

E o mais importante, aquilo nos fez criar os pilares, a estrutura de valores que carregamos até aqui: “A gente se comprometeu com o cliente, vamos fazer isso acontecer de qualquer jeito”. Tivemos momentos fortes de estresse, porque a gente não dormia… Passava o dia emprestando bicicleta e, à noite, tentava consertar o produto.

Claro que tivemos outros momentos até piores que o da Riviera. Problemas de caixa são mais dolorosos ainda…, mas a gente sempre se remetia àquela lembrança.

Passado aquele momento, consolidou-se para nós o modelo, a importância do produto, a importância do negócio. E fomos entendendo quais eram as oportunidades.

Depois, com o produto certo, começamos a falar: “Um bom produto vai fazer com que empresas queiram ligar a sua marca nisso. Um bom produto vai fazer com que as pessoas queiram usar o sistema”. São consequências de um bom serviço.

Quando vocês se deram conta de que procurar marcas patrocinadoras poderia ser um modelo viável? 
A gente não é o gênio da lâmpada, não (risos). Temos que reconhecer que muita coisa aprendemos fora e fomos melhorando. Na época, o Barclays patrocinava o sistema de Londres, o Citibank estava olhando o sistema de Nova York e o Itaú começou a olhar o sistema aqui.

Em 2013 e 14, a gente não tinha conseguido vender patrocínios. Havia projetos bem pontuais: uma estação da Unimed na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Mas naquela época, na verdade, estávamos indo para outra vertente.

Havia um boom no mercado imobiliário, os novos empreendimentos queriam se diferenciar e se ligar à questão de sustentabilidade. Acabamos vendendo muito para construtoras que queriam colocar sistemas de bike sharing privado, em condomínios 

Isso durou um ano e meio. Depois, teve a crise do mercado e ninguém nos contratou para mais nada. Tivemos que mudar de novo.

Fomos nos adaptando, virando esse negócio e olhando também o que acontecia lá fora com patrocínio e marcas. E o Itaú já estava ganhando posição aqui dentro nesse sentido.

Não acho que funciona alguém acordar e falar: “Tive uma ideia genial, vou fazer”. São confluências de aprendizados. A gente foi testando, foi virando…

Olhando de fora, 2017 parece ter sido o ano chave para vocês. Foi quando assumiram as operações das bicicletas compartilhadas do Itaú Unibanco, com aporte da Joá Investimentos, e começaram a entender que, mais do que lazer, essas bicicletas poderiam ser um modal de mobilidade urbana importante. Você concorda?
Vender para as incorporadoras, tentando fazer inovação na mobilidade corporativa, segurou a gente um tempo… Depois, fizemos projetos ligados a mobilidade urbana, alguns com pequenos patrocínios do Itaú, entre 2014 e 2016. E de 2016 para 2017, tivemos a oportunidade de adquirir a empresa que o Itaú patrocinava.

Sem dúvida, foi uma mudança muito grande. Éramos uma empresa de mais ou menos 50 colaboradores e compramos uma empresa de 300 colaboradores. Em receita, era uma empresa com dez vezes o nosso tamanho 

O que a gente via era que nos sistemas que existiam no Brasil, incluindo o que a gente adquiriu em São Paulo e no Rio, o perfil de uso estava muito ligado a lazer e pouco a mobilidade.

Sempre acreditamos nesse sistema como mobilidade. A partir do momento em que tivemos oportunidade de fazer essa mudança em escala, colocamos o que a gente acreditava na ponta, nos grandes centros urbanos.

Isso mudou nosso patamar. De 2017 para 2019, aumentamos em dez vezes a utilização do sistema com a mesma base de número de bicicletas. Por quê? Porque as pessoas começaram a usar com muito mais recorrência o sistema, e não só para deslocamentos esporádicos.

(Atualmente, em São Paulo, cerca de 20% das viagens com as bikes compartilhadas começam ou terminam em estações próximas a pontos de transporte público, ou seja, uma a cada cinco viagens do Bike Sampa, que funciona 24 horas, são originadas em estações de integração modal.)

Existiu algum tipo de combinado de que o Itaú em princípio seria o único patrocinador? 
Não, sempre pensamos em ter mais de um patrocinador nos projetos — e o Itaú sempre nos apoiou nisso, porque não queria que a gente tivesse uma dependência tão grande.

Mas o que a gente olhou mesmo foi que ter um modelo de negócio em que 80% da receita vem do patrocínio e na mídia é bom, é legal…, mas é um negócio de mídia, de publicidade. Não é um negócio de mobilidade 

Antes de pensar em diversificar os patrocinadores, a gente falou: “Vamos mudar esse negócio para mobilidade que é o que a gente acredita?” E começamos a fazer muito investimento no produto.

No final de 2017, trocamos toda a tecnologia de hardware e de software. Criamos um time de tecnologia e de dados muito forte. Fizemos uma parceria com o hardware do Canadá [da empresa PBSC] que é provedor do sistema de Nova York, de Montreal…, o melhor do mundo hoje. Colocamos uma fábrica em Extrema (MG) porque olhamos a questão tributária e de oportunidade e já fazia sentido fabricar aqui as bicicletas e estações.

Acho que foi acertado. Agora, estamos colhendo os frutos disso. Hoje, temos 55% da nossa receita no usuário, 45% no patrocínio

E, obviamente, em paralelo começamos a entender outros patrocinadores interessados no sistema. Claro que o Itaú tem uma questão de exclusividade no segmento financeiro, mas na América Latina, a gente ainda tem uma penetração pequena versus a oportunidade.

Paris tem 20 mil bicicletas, Nova York tem 15 mil bicicletas… São cidades menores que São Paulo, que tem [apenas] 3 mil bicicletas.

Vocês já tinham uma parte forte de hardware. Fabricar as bicicletas exigiu outro tipo de habilidade? Pouca gente na área de startups gosta da ideia de ter uma planta industrial sob seus cuidados…
Claro que houve a reflexão do que vale e do que não vale a pena. Por outro lado, a gente vai fazer manutenção desse hardware por dez anos. Já temos um time de operação, logística e mecânica que vai cuidar deste ativo.

Produzir [bicicletas] não está tão longe do que já é parte da nossa responsabilidade. Quanto melhor a gente conhecer este ativo, melhor vai ser a qualidade da nossa manutenção, do nosso serviço…, melhor será a experiência do nosso usuário 

E acho que o mercado também tem amadurecido nesse sentido. Não por menos, a Tesla vale o que vale. A Tesla produz muito hardware, tem muita tecnologia aplicada. A mesma coisa a Apple, que tem uma parte que vende hardware.

Parece que começa a [se] quebrar e desmistificar um pouco a ideia de hardware ser algo “antigo”. O hardware existe. As pessoas existem. Elas tocam em coisas. Elas se locomovem, elas vivem.

Pelo que você contou, ter passado pelos perrengues lá na Riviera de São Lourenço e ter tido aquela experiência tão “física” preparou vocês de alguma maneira para serem também industriais…
Totalmente. Sabemos que nosso negócio é online e offline ao mesmo tempo. Isso nos diferenciou da competição que tinha um negócio muito legal online, mas esquecia da experiência offline.

“Pô legal, a experiência para fazer isso aqui foi superlegal, esse cara programou minha rota com base no meu comportamento…” Mas aí você chega lá na bicicleta e o freio está quebrado, o pneu furado…

A rodada série A da Tembici no valor no valor de 15 milhões de dólares aconteceu em março de 2019. Nesta época, já tinha Yellow e Grin, empresas que receberam muita grana. Os investimentos série A, B e C vieram mais tarde para vocês do que para os outros players por conta de o modelo não ser dockless, aquele que não utiliza estações para devolução e retirada das bikes? Ou por que se deu isso?
Em 2018, a gente tinha uma posição de caixa boa pela questão do patrocínio do Itaú e da receita recorrente forte. Um pouco da nossa estratégia foi: “Vamos apostar no nosso modelo de negócio e mostrar as nossas hipóteses pra gente poder sair com uma captação melhor depois, ao invés de trazer dinheiro por dinheiro”.

O dinheiro ajuda muito a fomentar o negócio, investir em tecnologia… ajuda muita coisa. Mas ele pode te distrair. E de forma indisciplinada, ele pode te machucar bastante. Não tem regra certa. É a leitura de mercado de cada um

Por exemplo, a gente fez captação de série B [47 milhões de dólares] no começo da pandemia, março do ano passado. Estávamos com boa posição de caixa para seguir e não precisariámos ter feito a série C [em setembro de 2021, no valor de 80 milhões de dólares]. Porém, entendemos que trazer mais capital ajudaria a crescer mais rápido, no modelo de negócio em que a gente acredita. Aí, antecipamos.

Naquele momento, vimos o mercado acelerar muito rápido. Foi até curioso, porque obviamente a gente já conhecia a indústria e podia ter apostado no dockless… Mas respiramos fundo e decidimos apostar naquilo em que a gente acreditava 

Quando o modelo dockless começou a ser lançado na América Latina, as empresas chinesas já estavam indo à falência. Imaginamos que iria acontecer um movimento similar aqui e continuamos com as nossas crenças, sem nos distrairmos.

Agora dá pra falar que foi uma boa escolha. Mas que deu uma dor de barriga, deu… (risos).

Quando vocês começaram a pensar em projetos de pedal assistido?
A bike elétrica vai ser uma mudança gigantesca nas cidades, porque ela expande a bicicleta convencional, faz distâncias maiores, relevos diferentes, traz comodidades como a pessoa não suar… Se você for percorrer três ou quatro quilômetros, para que pegar um automóvel? Será muito mais barato e rápido usar e-bike.

Paris, por exemplo, já tem 30% da infraestrutura pública sendo utilizadas por micromodais: bicicletas elétricas e patinetes. Além disso, ela traz novidade para um segmento novo que foi ampliado na pandemia, a cicloentrega.

A bike elétrica amplia muito as opções do negócio como um todo. A gente sabia dos desafios: o custo de aquisição muito mais alto, o custo de manutenção, o desafio de recarregar… Fomos acompanhando essas variáveis para entender qual o momento certo de apostar mais forte 

Em 2019, fizemos dois testes em São Paulo e um no Rio. Foi um baita sucesso [desde setembro de 2020, a Tembici opera mobilidade ativa e e-bikes no Rio, onde investiu 10 milhões de reais]. Agora, vamos entrar muito forte e acelerar a expansão da bicicleta elétrica nos centros urbanos.

Vocês também fizeram teste com os patinetes no Rio de Janeiro, certo? Qual foi a conclusão que vocês chegaram?
Eles não estão mais lá. É fácil concluir que não deu muito certo (risos). Era uma onda em que estava todo mundo falando… E pensando em não sermos tão reativos, testamos. Mas a idealização que a gente tinha acabou não se provando.

Eu não acho que o patinete elétrico é o pior negócio do mundo. Mas os equipamentos que foram colocados na rua, naquela época, eram vendidos como brinquedos na China… Não tinham uma usabilidade boa: a roda era pequena, a prancha era pequena… Não eram produtos prontos para a rua 

Dito isto, eu acho que ele vai evoluir, avançar… As coisas estão caminhando nessa direção. Mesmo assim, ainda hoje, se tivemos um dólar para investir, a bicicleta elétrica faz muito mais sentido, porque as pessoas já sabem andar de bicicleta, a gente conhece muito melhor o equipamento…, e ele é muito mais seguro.

Em 2020, a operação do grande concorrente, a Grow Mobility (fusão da Grin e Yellow), se encerrou de forma dramática. Que tipo de reflexão você teve? Chegou a cogitar que existem entraves incontornáveis nesse setor?
Teve uma mistura de sentimentos. Primeiro, eles já vinham de uma queda e a gente estava saindo de uma captação, então estávamos muito bem posicionados, do ponto de vista de mercado, de negócio e de caixa. Isso nos dava tranquilidade.

Temos dois princípios que foram importantes nesse negócio. O primeiro é que a combinação do produto – hardware-software – tem que ser sólida e eu acho que a gente acertou muito bem a mão nisso. E o segundo ponto, que sempre foi uma crença nossa, é que se trata de um negócio de longo prazo.

Mudar a forma como as pessoas se locomovem na cidade não vai ser da noite pro dia. A indústria automobilística está há 80 anos recebendo subsídio, “marketeando” na cabeça das pessoas o sonho de ter um carro… A gente entende que o nosso negócio é o futuro, mas existem várias escadas para subir antes de chegar lá 

E não vai ter atalho, porque envolve infraestrutura e políticas públicas, sociedade civil e tecnologia. A visão de longo prazo sempre foi muito clara para nós.

É claro que ter mais players no mercado ajuda a criar mais awareness sobre o nosso negócio e a nossa indústria. É mais investimento, mais gente falando sobre isso, mais gente usando o produto e serviço.

Quando eles entraram, nós dois crescemos, porque eu não estava tirando gente do patinete ou do dockless — estava tirando gente do carro. Então, nesse sentido [o fim da operação da Green] é ruim. Porque a gente acaba carregando um pouco mais do peso da indústria inteira no nosso negócio.

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