Tudo o que aprendi (sobre os outros e sobre mim mesmo) jogando bola

Adriano Silva - 15 fev 2022
(imagem: olleaugust / 960 images/Pixabay).
Adriano Silva - 15 fev 2022
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Aos 10 anos, fundei um time de futebol de salão: a AFAR (Associação de Futebol Águia Rubra). Minha mãe bordou os escudos encarnados. E os costurou em nossas camisetas Hering brancas. 

Treinávamos na garagem do nosso edifício, que era aberta e tinha o piso de paralelepípedos. Ou então na garagem do prédio vizinho, sobre um manto de concreto. Carimbávamos a traseira de Fuscas, Variants e Corcéis com nossos tiros a gol. 

Com frequência jogávamos descalços e chutávamos o chão. Colocávamos o dedo arrebentado embaixo da torneira e, assim que o sangue estancava, seguíamos na peleja

Marcávamos partidas na quadra de asfalto do bairro, aos sábados, muito cedo. Os horários mais nobres da manhã atraíam outros grupos de moleques, mais dispostos a impor fisicamente sua presença na quadra. A gente evitava esse tipo de conflito. E perdia mais do que ganhava.

Aquele jovem empreendedor do esporte acabou indo mais longe como homem de negócios do que como boleiro. (Não se pode ser tudo nessa vida.) 

Na AFAR, eu era também o capitão. Por ser mais velho, era considerado o melhor jogador. (Ou talvez eu apenas aspirasse a esse reconhecimento.)

Comecei a cair na real na escola em que ingressei no ano seguinte, para cursar a quinta série. O futebol era de campo, os meninos eram todos mais velhos e eu, que me via como um meia destro, jogando com a 8, fui parar na lateral-esquerda.

Meu futebol, que já não era grande coisa (no fundo, acho que sempre soube disso), ficou paupérrimo ao ter de jogar com o pé trocado. Eu, que ainda sonhava com a hipótese de ter alguma habilidade com a pelota, de repente me vi como um pereba

Em vez de isso me bater nos brios, gerando uma reação positiva que me fizesse crescer, acabei acreditando naquilo que via nos olhos dos outros. Os meninos me isolavam. O grupo testava o novato. E eu introjetei aquele bullying. Acabei me tornando em campo (e até mesmo, um tanto, fora dele) aquela figura a quem ninguém passava a bola. 

A partir daí, minha relação com o futebol arrefeceu muito. Passei a jogar apenas ocasionalmente. Se havia algum talento que eu pudesse desenvolver, ele involuiu.

Ao longo dos anos 80 e dos 90, me ocupei de outras coisas: discos, livros, meninas, amigos, filmes, escolha profissional, faculdade, produção de vídeo, primeiro emprego, um MBA fora do país (em tempo: fundei uma deliciosa pelada às margens do Rio Kamo, em Kyoto, no Japão), consolidação da literatura e do jornalismo como meus principais interesses na vida. 

Depois, já por volta dos 30 anos, reestreei no futebol brasileiro, na pelada da firma, na quadra que a Editora Abril mantinha na Lapa, em São Paulo. Primeiro, com a turma da Exame e seus agregados. Mais tarde, com a galera da Placar, que foi se expandindo até virar a “Premier League, a melhor pelada do mundo”.

Parei de jogar pouco tempo antes de completar 50 anos, por conta de uma dor incapacitante na lombar. Debelei a dor fortalecendo a musculatura ao redor da vértebra L5, essa megera. Mas jamais voltei aos gramados. Hoje malho uma hora e meia por dia, ouvindo minhas músicas favoritas. E finalmente assumi, no mundo de futebol, a posição que me cabe: a poltrona.  

***

Esses dias me dei conta do tanto de lições sobre comportamento humano que a gente encontra dentro das quatro linhas. 

Numa pelada, uns estão ali para se divertir. Outros, para ganhar. Uns acham que a pelada perde a graça se for levada muito a sério. Outros acham que o jogo só tem graça se for disputado para valer.

Uns jogam para si, só jogam com bola no pé, se engajam em disputas individuais dentro da partida. Outros jogam para o time, correm sem a bola, olham para o todo. Uns ajudam a catar no gol quando não há goleiro. Outros dão um jeito de escamotear sua vez no revezamento debaixo das traves.

Uns marcam o adversário com a vida. E seguem com ele na jogada até o fim. Mesmo quando já não têm mais ar nem perna. Mesmo quando estão sendo envolvidos e driblados sem dó. Outros, soltam quem estão marcando na primeira falta de fôlego, na primeira finta – ou antes delas.

Para uns, futebol é uma vitrine particular, um espelho de narciso, um sonho privado de virtuosismo. Para outros, é esforço conjunto, é cerrar fileiras com os companheiros e construir um resultado coletivamente

Tem quem chame a responsabilidade, mesmo quando ela não é sua. É o tipo de gente que dá sempre o passo à frente, na direção da zona de tiro. E há quem se esconda em campo, para correr o menor risco possível. E dê sempre um passo atrás, para o ponto cego, para a zona morta.

Tem quem paparique a bola. E tem quem a trate mal. Tem pé no qual a bola gruda – e ronrona. E pé em que ela parece jamais encaixar, em que ela sempre espana. Tem quem se aposse da bola e só a solte em último caso, e sob protesto. E tem quem procure se livrar da redonda tão logo quanto possível.

Tem quem fale para caramba em campo. (Coisa que raramente ajuda o time.) E tem quem jogue em silêncio, usando sua energia para resolver as próprias jogadas, e não as dos outros.

Uma das regras tácitas do mundo da bola diz que sua voz em campo é, ou deveria ser, proporcional ao tamanho do seu futebol, da sua entrega, da sua contribuição efetiva. (Eu, portanto, com frequência falei muito mais do que deveria.)

De fato, muitas vezes percebi que mais agastava os outros quanto mais estava chateado comigo mesmo. Reclamava com os companheiros como um meio de extravasar a frustração com meu próprio futebol.

***

A pelada é uma metáfora da vida. Estamos sempre disputando espaço, reconhecimento, influência. Relações humanas são relações de força. As tensões com que lidamos na família ou no escritório também estão presentes dentro do campo. Sejamos nós garotos chegando num colégio novo ou cinquentões na reta final de sua opaca carreira esportiva.

Na pelada, parecemos retirar algumas máscaras, desligar umas personas, e assim assistimos aflorar dentro de campo quem realmente somos. Muitas vezes, para nossa própria surpresa.

Antes de contratar alguém, ou de aceitar um sócio, você deveria convidar o candidato para uma pelada. Antes de casar (ou de ter filhos) com determinada pessoa, você deveria prestar atenção a como ela se comporta em campo

Ali você vai ver como a pessoa lida com os erros – dos outros e dela própria. Se ela ajuda os demais a levantar quando as coisas não dão certo ou se os joga ainda mais para baixo no pior momento possível. Se ela assume suas mancadas ou se se exime olimpicamente dos próprios erros.

Ali você vai ver se a pessoa fala a verdade ou dissimula. Se há coerência entre o que ela diz e faz. Ou se ela se dedica à grande arte do migué. Se ela chega na hora combinada, respeitando o tempo dos demais, ou se sempre se permite ser a última a entrar em quadra, fazendo todos esperarem por ela.

Na pelada você saca se a pessoa é inclusiva ou paneleira. Se abre o coração e recebe bem quem chega, ou se coloca sempre o recém-chegado na geladeira para ele aprender seu lugar na hierarquia. 

Ali você vai ver se a pessoa aplica as mesmas regras para todo mundo, a começar por si mesma, ou se sua atitude é: aos meus amigos, tudo; a quem não for da patota, coisa alguma. 

Em campo, você vê como a pessoa trata o adversário. Se é correta na hora de marcar firme, ou se é desleal e uma ameaça constante à integridade do outro. Se admite as próprias faltas em jogos sem juiz, ou se não tem o menor escrúpulo de ganhar as disputas de modo desonesto 

Na pelada fica claro, já na hora de dividir os times, se a pessoa busca uma escalação justa, para que a partida seja equilibrada, ou se ela prefere montar o time mais forte possível para si, e a equipe mais fraca possível na outra metade do gramado, para aumentar suas chances de vitória.

Ali você vê como a pessoa se porta quando está num dia bom, jogando bem, com seu time encaixado e vencendo. Se isso a torna displicente ou se ela começa a desrespeitar o adversário. 

Assim como também fica claro como ela atua em uma noite ruim, em que está jogando mal e em que tudo dá errado para seu time. Se ela se torna mais violenta em campo ou se simplesmente desiste de continuar jogando, melando a partida a partir do momento em que percebe que não será mais possível vencê-la.

Na várzea (ou num gramado sintético), temos a chance de aprender a vencer – porque é importante saber ganhar. E também temos a oportunidade de aprender a perder – porque é preciso lidar com as derrotas. 

A pelada é um retrato de quem somos. Uma espécie de terapia à qual você pode comparecer de chuteiras e meião.

Aproveite bem. Porque acaba rápido.

 

Adriano Silva é fundador da The Factory e Publisher do Projeto Draft e do Future Health. É autor de dez livros, entre eles a série O Executivo SinceroTreze Meses Dentro da TV A República dos Editores, e lançou recentemente seu mais novo título: Por Conta Própria: do desemprego ao empreendedorismo – os bastidores da jornada que me salvou de morrer profissionalmente aos 40.

 

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