Uma escola de fotografia para jovens com Síndrome de Down: como a Galera do Click surgiu do amor de uma mãe por seu filho

Dani Rosolen - 28 fev 2023
Parte dos alunos da Galera do Click.
Dani Rosolen - 28 fev 2023
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O que é especial merece ser fotografado. Em tempos de selfies e cliques incessantes com o celular, será que essa frase ainda faz sentido?

Para a criadora da Galera do Click, uma escola de fotografia para jovens com Síndrome de Down, a resposta é: sim, sem dúvida. Tanto que ela adotou o lema como slogan da escola.

“Da bailarina ao evento corporativo, do cachorrinho ao casamento, tudo é especial e vale um registro”, diz a fundadora e fotógrafa Sandra Reis.

A história da Galera do Click começou em 2013, depois que Sandra decidiu levar o filho, Felippe, que tem Síndrome de Down, aos eventos corporativos e espetáculos de dança que ela fotografava para passar mais tempo com ele.

“Eu não falava para o meu contratante que ia levar meu filho. Dizia que era um assistente. Enquanto o pessoal estava se arrumando, ele ia fazendo umas fotos” 

Ela orientava Felippe, dando dicas de como fotografar em diferentes condições de luminosidade. “Era para ele entender que estava lá com um propósito, senão ia ser de mentirinha – e eu não queria isso.” 

Felippe, na época com 20 anos, levava jeito; às vezes as fotos saíam tão boas que Sandra usava no trabalho. Pensando em formar um grupo de amigos para seu filho, ela resolveu ensinar fotografia gratuitamente a outros jovens com Down. 

“Dali surgiram os melhores amigos, as namoradas, os passeios, as viagens, o vínculo entre as mães”

Hoje, a Galera do Click é um negócio social que abre o mercado de fotografia aos jovens com Síndrome de Down. As aulas, gratuitas (a escola e os alunos recebem por evento contratado) e para maiores de 16 anos, começam na próxima quinta, 2 de março, na sede em Santana, Zona Norte de São Paulo.

A seguir, Sandra joga a real sobre inclusão, conta como funciona a metodologia da Galera do Click e fala sobre o que aprende na relação com seus alunos:

 

Como nasceu a ideia de criar um grupo de alunos de fotografia?
Eu queria achar um grupinho para o Fe, pois já estava num esquema de põe numa escola, tira de uma, põe em outra. O processo de alfabetização dele já não estava dando certo porque ele tem um problema de articulação de palavra muito importante, e se frustrava bastante.

Como ele tem uma irmã mais velha e um irmão bem próximo da idade dele [Felippe tem 31; o irmão, 30; a irmã, 34], ele se espelhava nos irmãos. E o irmão era convidado para festas o tempo todo, dormia na casa dos amigos, e o Fe queria isso também.

Eu falo que a inclusão, de certa maneira, é muito cruel. Sou a favor, claro. Mas, por exemplo, existe a lei de cotas, o Felippe trabalha numa farmácia, está lá até 12h15.

Só que nenhum dos colegas dele de trabalho, a não ser em uma festa de final de ano ou amigo secreto, vai convidar o Fe para sair. Então, que inclusão é essa? Ele só está lá porque tem uma lei que obriga a empresa a contratar

Nenhum deles, no fim de semana, chama o Fe para ir ao cinema — e eles trabalham juntos o tempo todo. Você acha que essas pessoas não saem juntas?

Era a mesma coisa nas escolas. Dava o sinal, ninguém mais lembrava que o Felippe existia. Já meu filho mais novo era o príncipe de quase todas as festas de debutante, e o Fe não ia, só quando o Rogério pedia para a amiga convidar. Isso mexeu muito comigo.

Muito mais do que ter o Felippe como fotógrafo, a Galera do Click nasceu porque eu procurei amigos para o meu filho. Eu queria que ele tivesse a tribo dele, que ele pudesse dormir na casa de alguém, ir a festinhas.

E, como, de fato, apareceram alunos para formar essa turma?
Conheci um grupo de mães na Oficina dos Menestreis, que o Fe frequentou por oito anos. Chamei essas mães para fazer uma sessão de fotos dos filhos no meu estúdio e uma delas falou que se eu ensinava fotografia para o Fe, por que eu não poderia ensinar para os filhos delas também? Topei fechar uma turma de graça.

Felippe e Sandra Reis, mãe e filho, aluno e fundadora da galera do Click.

Paralelo a isso, eu queria ir no programa do Jô Soares. Vi um e-mail para grupos de escola e mandei uma mensagem, meio sem noção, falando que tinha uma escola de fotografia para jovens com Síndrome de Down e gostaria de participar de uma gravação.

No mesmo dia, uma produtora respondeu dizendo que não tinha mais espaço para escola, mas tinha 15 vagas na plateia. Fui com o Felippe e alguns alunos, mães e pais.

Já tínhamos a camiseta com o slogan da Galera do Click. E neste primeiro encontro com as mães, tínhamos feito um calendário de fotos; tínhamos impresso mil, sem nem saber direito o que seria o projeto. E pedimos para uma produtora entregar ao Jô. Aí, costumo falar que a Galera do Click começou [de fato], porque eu precisava achar um meio para justificar esse fim, o calendário.

Aquele dia, o Jô nem olhou na nossa cara, mas durante os intervalos alguns alunos desceram para fazer xixi e tiraram fotos com um boneco de papelão do Jô, e postamos no Facebook.

Quando saí do programa, as mensagens no meu celular estavam bombando. As pessoas estavam perguntando sobre a entrevista que demos para o Jô, dizendo que não tinham conseguido assistir porque dormiram — e eu fiquei quieta

Outros pais começaram a nos procurar para fazer parte da Galera do Click e, com a demanda, tive que transformar meu estúdio numa sala de aula.

Como você criou e desenvolveu sua metodologia?
Como a teoria da fotografia é chatíssima e eu não sabia como ensinar, pois não tenho uma formação pedagógica, queria que eles pegassem gosto por fotografar na prática. Então, decidi levar os meninos a lugares onde fosse divertido aprender.

Mandei e-mails para um monte de parques. E, na época, o parque da Xuxa [o hoje extinto Mundo da Xuxa, que funcionava no Shopping SP Market, em São Paulo] aceitou nos receber.

A pessoa que nos atendeu propôs fazermos um dia de fotos lá de manhã e de tarde liberar para eles brincarem. Éramos em 35 ou 40 alunos, mas eu só tinha duas câmeras. Eles falaram que não havia problema porque tinham uma parceria com a Nikon

Lá fomos eu e o Fe, na sede da Nikon, que infelizmente não existe mais no Brasil, mas ficava na Avenida Paulista, buscar os equipamentos.

Sempre fotografei com Canon, então a diretora de marketing e o presidente me explicaram que era tudo diferente e um fotógrafo nos deu umas dicas e me fizeram assinar uma nota de 540 mil reais. E eu e o Fe saímos de lá carregando uma caixa que nem dava para segurar direito com quase 40 câmeras.

Esse foi o ponto de partida. Se eu queria ensinar foto de movimento, íamos na ladeira do Museu do Ipiranga fotografar uma galera que fazia manobra de skate e o pessoal depois levava a garotada para andar. E os pais sempre iam junto

O que a gente mais queria era ensinar uma coisa bacana, eles se divertirem e as famílias estarem junto. Porque não era só eu que queria amigos para o Fe. Essas outras mães também queriam isso.

Como funciona a dinâmica das aulas?
Sempre pego um aluno para me ajudar a explicar. Eles adoram isso! Também adoram copiar. Tudo o que eu ensino, eles têm que copiar primeiro.

Tinha no estúdio uma parede com tinta de lousa e eu desenhava umas coisas, comparativo da câmera com olho humano, nada demais. Aí um dia entrou um aluno, o Rafael, colocou os óculos, pegou um caderninho e perguntou: “Posso copiar?”. Na hora, todo mundo falou: “Também quero!”. E teve aluno que, por conta disso, passou a se interessar mais e conseguiu ser alfabetizado.

Falo que eles aprendem a partir de incentivo. Uma vez, tive a ideia de fazer uma prova. As mães começaram a ficar desesperadas, na escola eles já sofrem com isso.

Eu fui fazer faculdade depois dos três filhos, porque casei com 17 anos, então sempre via que os professores queriam fazer pegadinhas para dar nota baixa. Isso ficou na minha cabeça.

Então, o que caiu primeira provinha? Tudo o que eles sabiam e quem acabava primeiro ajudava o outro. Eles se sentiram tão importantes…

E foi o que eu falei para as mães: na escola, a prova serve pra mostrar o que os alunos não sabem. Como a pessoa vai aprender? Assim, só decora. E a genética, o cromossomo extra, já deixou eles em desvantagem. Para que vou reforçar o que eles não sabem?

Estou sempre elogiando. Ah, cortou o pé do palestrante na foto? Eu falo: “Cadê o pé da pessoa? Você pode fazer melhor! Vamos enquadrar de novo. Sempre mostrando: “Você é tão bom, mas esqueceu o braço dela fora da foto… Por que essa lata de lixo está aparecendo? Você podia ter enquadrado melhor”. Então é sempre motivando.

Quando faço uma pergunta e eles acertam, todos aplaudem o amigo. Onde acontece uma coisa dessas em outro lugar? Isso é uma delícia!

Eu crio atividades dentro da sala de aula em que um torce pelo outro ir melhor.

Quando você percebeu que dava para transformar o projeto em um negócio social? E como foi essa transição?
Fiquei dois anos como projeto e depois, conforme aumentou a demanda, virei uma ONG, por influência dos outros, mas me arrependi amargamente. Foi só trabalho…

Primeiro porque não gosto de dar satisfação para ninguém. Nunca ganhei dinheiro, nada, como ONG, mas se ganhasse teria que ficar dando satisfações de tudo. Aí, pensei: para que eu vou fazer isso, sendo que posso trabalhar? Eu também não me sentia à vontade pedindo dinheiro [para tocar a ONG].

Aí, eu me divorciei. Antes, conseguia me dedicar à Galera do Click porque tinha um parceiro com quem dividia tudo. Podia ter meus tempos livres sem trabalhar, caso precisasse me dedicar a um passeio com o projeto. Mas depois disso, fiquei perdida. Eu ia precisar acabar com a Galera e já estava com 70 alunos.

O Reis é do meu ex-marido, mas tive que pedir para ficar com o sobrenome, porque é assim que meus alunos me conhecem. Não é nem pelo profissional. Nunca fui uma fotografa famosa, eu era mediana, nada demais. Agora, com eles, eu sei que sou melhor

Então, para não acabar com tudo, comecei a oferecer o trabalho de alguns alunos da turma do nível avançado. A empresa me contratava para fazer fotos e eu levava os meninos como assistentes e, a princípio, pagava do meu bolso.

A primeira a nos chamar foi a Roche, em 2017, depois que um médico da empresa viu a gente fotografando num jogo do São Paulo. E falo com a “boca cheia” deles, pois na pandemia só não quebrei porque nos chamaram para fotografar eventos online, fotografar as telas mesmo.

E a partir da Roche, várias empresas começaram a ver valor na gente. Assim, todas as “farmas” [farmacêuticas] começaram a nos chamar. Depois, fizemos algo para a Toyota e todas as montadoras começaram a nos chamar. Aí, fizemos algo para o Itaú e vários bancos nos chamaram. Nisso, já atendemos cerca de 80 empresas.

No começo, éramos chamados para eventos sempre numa data especifica, no Dia Internacional da Síndrome de Down ou na Semana da Diversidade. Hoje não. Fotografamos todos os tipos de eventos, e somos os fotógrafos oficiais

Aliás, o alunos vão como fotógrafos oficiais, em duplas, e eu só vou como monitora, assistente. Mas num futuro próximo, eles irão sozinhos, com certeza. A ideia é que eles trabalhem comigo, mas cada um siga o seu trajeto paralelo.

Quem são esses alunos que já saem para trabalhar e como funciona essa dinâmica com os monitores?
Se você olhar meu Instagram, vai falar: “Nossa, sempre as mesmas carinhas?” Os alunos que estão no avançado e já saem para trabalhar, que têm potencial, mesmo eu cobrando e estando em cima, são 12.

Não quero que a Galera do Click seja vista como algo de mentirinha: só porque é Down a gente vai deixar “passar na frente”, põe uma câmera na mão e o que sair, saiu… Não. Quero ensinar de verdade

Por isso, a gente simula situações nas aulas práticas até que os alunos estejam prontos para ir aos eventos trabalhar.

A turma do avançado é um conjunto de fatores. Eles já estão tendo uma noção de fotografia necessária para fotografar profissionalmente, e sabem se comportar no geral.

Mas por que falo então que preciso de monitor? Porque o fotógrafo pode sempre “atrapalhar” o convidado um pouquinho para tirar as fotos necessárias: vai lá, fica em pé; a foto ficou boa? Tira, porque o cliente quer fotos.

Mas tem aluno que sente vergonha, fica sentado no chão; o palestrante está num palco e sai na foto enorme e com muito teto. Então o monitor está lá para lembrar que precisa levantar, pegar de outro ângulo, tirar o teto, pegar o logo da empresa, dar algumas dicas

O monitor também tem que estar preocupado se eles estão comendo, bebendo água… Se der algum perrengue no banheiro, tem que entrar para ajudar. Não é ser babá, eles não precisam disso.

Os monitores são fotógrafos profissionais. Antes da pandemia, tinha uma turma fixa comigo, mas aí cada um partiu para alguma coisa. Hoje, tenho duas fotógrafas que eventualmente me ajudam, e meus outros dois filhos.

Como foi o período da pandemia? As aulas foram adaptadas para o online?
Sim, a gente fez online, mas foi péssimo. Eu não gostei, a maioria não gostou, mas foi uma maneira de manter a conexão.

Eu mandava lição de casa, mas muitos alunos regrediram, inclusive o Felippe e a turma do avançado.Tive que retomar vários conceitos. Eles estão ainda errando enquadramento, que era uma coisa simples para eles.

Alunos da Galera do Click, em confraternização, junto com Sandra Reis.

A questão financeira também foi frustrante. Foram dois anos e meio sem receber, porque transformei minha vida na Galera do Click. Não tinha trabalho nem para mim, nem para eles.

Pensei que seria a hora de acabar com a Galera. Aí quando começaram a voltar os eventos, não chamavam a gente porque os meninos são grupo de risco… E as mães também não queriam liberar. Eu também não queria expor meu filho.

Não sei como segurei a onda, não. É porque esse projeto tem mesmo que ficar comigo!

Começamos a voltar de máscara e com teste com as farmacêuticas em 2022. Eu tinha dificuldade de aceitar os pedidos porque não tinha muitos alunos para ir, então muitos eventos, por necessidade, fizemos só eu e o Fe.

O que diferencia a Galera do Click de outros projetos de fotografia, até mesmo de uma escola regular?
O que me diferencia de qualquer outro projeto é que quero que eles aprendam de verdade para mostrar às pessoas que eles têm potencial, e principalmente para os meninos acreditarem neles mesmos, igual sempre fiz com meu filho.

Quando falei que o Fe tem essa dificuldade de articulação, faz fono desde sempre, isso não quer dizer que ele não tem outros potenciais.

Ele é o primeiro judoca faixa preta com Síndrome de Down do Estado de São Paulo. Então, abro todas as portas e ele me mostra aonde vai. E existem inúmeras possibilidades de onde ele pode ir e aprender coisas diferentes.

A Galera do Click deu certo porque acredito nisso nos meninos também — em todos eles — e sei que cada um tem seu tempo. Tenho um aluno que acabou de entrar e [já] passei para o avançado, e tenho aluno que está aqui há um tempão e esquece onde liga a câmera… Mas nem por isso não tem o valor dele

É um processo. Eles podem estudar numa escola de fotografia regular? Mas será que numa escola regular, em que o professor tem que seguir um cronograma de ensino, ele vai voltar um passo toda vez que o aluno precisar?

É diferente ensinar para eles. E isso não é problema.

Quando falo que meus alunos têm deficiência intelectual, as pessoas falam: “Ai, não fala isso, eles são especiais”. Não, deficiência é o termo certo. Não estou falando que eles são menos. Eles não são ineficientes — muito pelo contrário.

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