Verbete Draft: o que é Gaslighting

Dani Rosolen - 18 jan 2023
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Dani Rosolen - 18 jan 2023
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Continuamos a série que explica as principais palavras do vocabulário dos empreendedores da nova economia. São termos e expressões que você precisa saber: seja para conhecer as novas ferramentas que vão impulsionar seus negócios ou para te ajudar a falar a mesma língua de mentores e investidores. O verbete de hoje é…

GASLIGHTING

O que é: Gaslighting, do inglês, não tem uma tradução literal para o português. Mas no dicionário norte-americano Merriam-Webster, que em novembro passado elegeu o termo como palavra do ano em 2022, o conceito é definido como “manipulação psicológica de uma pessoa, geralmente durante um longo período de tempo, o que faz com que a vítima questione a validade de seus próprios pensamentos, percepção da realidade ou memórias e normalmente leva à confusão, perda de confiança e autoestima, incerteza de seu emocional ou estabilidade mental e dependência do perpetrador”.

Outra definição encontrada no dicionário é: “ato ou prática de enganar alguém grosseiramente, especialmente para [obter] vantagem pessoal”. Luciana Oliveira, psicóloga clínica com experiência em saúde mental e gênero e professora de Psicologia da PUC Minas, busca simplificar a ideia, sem ser simplista:

“Trata-se de uma ferramenta de opressão e controle”

Ainda de acordo com o Merriam-Webster, embora no século 20 o termo se referisse principalmente à manipulação psicológica, atualmente seu uso também está vinculado ao contexto de “grande aumento de canais e tecnologias usadas para enganar as pessoas, nos âmbitos pessoais e políticos”. Ainda segundo o dicionário, o termo engloba outros conceitos comuns associados à desinformação, como as deepfakes e fake news.

A escolha de gaslighting como palavra do ano foi feita após as buscas por seu significado no site aumentarem 1.740% em relação ao ano anterior. 

Origem: Gaslight (À Meia Luz) é o nome de uma peça teatral de 1938, do dramaturgo inglês Patrick Hamilton (1904-1962), que dois anos depois virou filme na Inglaterra, e mais tarde ganhou um remake norte-americano, estrelado por Ingrid Bergman.

No longa, de 1944, a atriz de Casablanca vive o papel de uma esposa rica que tenta alertar o marido sobre coisas estranhas que acontecem na casa onde vivem, como objetos desaparecendo e as luzes a gás diminuindo e aumentando (o que justifica o nome da obra). O homem, de forma sádica, insiste que é tudo delírio da cabeça dela, quando é ele quem prega esses truques a fim de enlouquecer a mulher e ficar com sua fortuna.

O termo recebeu destaque na mídia no final de 2022 por conta da eleição feita pelo Merriam-Webster, que destacou que não houve um motivo em “especial” para o aumento nas pesquisas da palavra. Oliveira acredita que, apesar de não ser algo novo, as discussões sobre gênero, diversidade e violência de gênero estão ganhando visibilidade, o que pode justificar a curiosidade em entender o conceito, que está atrelado a outros já abordados no Draft, como manterrupting, broprianting e mansplaining

A psicóloga ainda diz que, no contexto brasileiro, gaslighting ficou em alta no ano passado por conta de um episódio ocorrido na edição do Big Brother Brasil 22, em 21 de março. Como efeito, a palavra ficou entre as cinco mais comentadas no Twitter nacionalmente na ocasião

Ainda em 2022, o termo também chamou atenção devido à popularidade da série Gaslit (Starzplay). O enredo trata do caso Watergate, mas com foco na história de Martha Mitchell. Interpretada por Julia Roberts, a socialite casada com o procurador-geral do governo de Richard Nixon se voltou contra o presidente depois que o escândalo estourou, em 1972. Na época, foi chamada de louca e chegou a ser confinada em um hotel por ordem do marido para evitar que falasse com a imprensa.

Como ocorre e com quem: O gaslighting é geralmente mais associado às relações afetivas, em especial a de um casal, com um homem impetrando abuso psicológico e manipulação sobre sua  companheira. No entanto, não se resume a vínculos conjugais, podendo ocorrer em outras esferas, como diz a especialista:

“Costumo dizer que o gaslighting ocorre onde existem relações de poder entre dois sujeitos ou mais”

Pode acontecer, por exemplo, na política. Um artigo da CNN aponta que em 2017 uma colunista do veículo escreveu que o ex-presidente Donald Trump estava praticando “gaslighting” com a população dos EUA ao negar ter feito várias declarações que, de fato, realizou em público. Dá para ver um paralelo com a política brasileira do governo Bolsonaro.  

Retrocedendo um pouco mais, no site do jornal O Tempo, a doutora em Comunicação Bárbara Caldeira, que tem uma linha de pesquisa relacionada à violência contra à mulher, menciona que a ex-presidente Dilma Rousseff teve “exarcebados seus supostos comportamentos baseados em emoção descontrolada” para levar a crer que era louca, que perdeu a razão, para, enfim, se questionar sua capacidade administrativa. Está aí um dos princípios do gaslighting.

Nas relações entre médicos e pacientes, o gaslighting vem sendo denunciado e ocorre quando, nos consultórios, médicos usam seus discursos científicos para ignorar ou minimizar as queixas dos pacientes ou até mesmo atribuir sintomas ao estado emocional da pessoa. 

O gaslighting também acontece no ambiente acadêmico, religioso, corporativo — nas relações entre líder e liderado ou mesmo entre colegas de trabalho. 

Mulheres e “minorias” em relações de poder são as mais afetadas: Vale ressaltar que qualquer um pode ser vítima de gaslighting, mas de acordo com Oliveira, as mulheres costumam sofrer mais com isso — seja na esfera privada ou na pública. Também são vítimas potenciais sujeitos em situação de opressão nas relações de poder, como pessoas negras, LGBTQIAP+ e PCDs.  

No caso do público feminino, um estudo de 2014, do National Center on Domestic Violence, Trauma & Mental Health, com 2 500 mulheres, mostrou que 74% das entrevistadas acreditavam já terem sido vítimas dessa prática.

Outro estudo de pesquisadoras da Penn State University mostrou que ser tachada de emotiva durante uma discussão pode levar a estereótipos sobre a “irracionalidade” da mulher e impactar a legitimidade de seus argumentos.

Para comprovar esta tese, as pesquisadoras simularam discussões entre várias duplas. Em certo momento, elas eram interrompidas para que se acalmassem sem que quem assistisse ao “embate” soubesse que aquilo era uma simulação. De todo modo, para a plateia as mulheres com falas cortadas e orientadas a se acalmar tiveram seus argumentos interpretados como menos eficientes após retomarem o debate, o que não foi percebido pelo público nos homens que vivenciaram a mesma situação.

“Infelizmente, na nossa sociedade, a gente cresce ouvindo que a mulher é louca, confusa, desorganizada, sob qualquer pretexto”, diz Luciana.

Como age o gaslighter: A prática não é fácil de detectar, pois começa de forma sutil por parte do abusador ou gaslighter. “São pessoas com facilidade na oratória, com um discurso muito bem elaborado para distorcer fatos e fazer o outro duvidar da sua própria competência”, diz a psicóloga. 

É, por exemplo, o marido que trai a mulher e, quando ela descobre tudo, a acusa de estar inventando coisas ou de que a culpa é dela por aquilo estar acontecendo. 

“O gaslighter sempre vem com aqueles comentários: ‘Você está inventando ou imaginando coisas, está exagerando. Você é sensível demais. Onde está seu senso de humor?’. E a clássica frase: ‘Você está ficando louca!’. E aí a pessoa que sofre esse abuso vai introjetando isso e começa a duvidar da sua [própria] sanidade, há uma confusão mental”

Outros exemplos: o pai que diz ao filho que ele não faz nada certo e não é bom o suficiente; o chefe que altera uma data de uma reunião sem avisar e diz para o(a) funcionário(a) que ele/ela foi, sim, notificado(a) antes… 

Em muitos casos, além da manipulação, há chantagem emocional, humilhação, ameaças e  transferência de responsabilidade. “Muitas vezes, em empresas, um superior entrega uma tarefa, mas não explica ao encarregado com clareza o que é para ser feito, para [assim] descredibilizar o profissional no momento da entrega, transmitindo a ideia de que ele é desorganizado”, diz a psicóloga. 

Ela ainda afirma que o gaslighting pode ocorrer no ambiente corporativo a fim de minar a reputação de uma mulher, uma pessoa negra, com deficiência ou LGBTQIAP+ que está calgando um cargo de liderança, por elas representarem uma “ameaça” para uma estrutura dominada por homens brancos cisgêneros.

Quais os impactos sobre as vítimas: Independentemente do contexto em que o gaslighting ocorre, a pessoa que sofre esse abuso em geral demora a perceber que está acontecendo.

“É o que sempre falo, no caso de agressores de mulheres, independente do ambiente, eles não aparentam ser monstros. Se fossem, seria muito mais fácil de a gente identificar”, afirma Luciana. “Por isso, o gaslighting acaba se intensificando na vida das mulheres sem elas perceberem.”

Como consequência, a vítima começa a duvidar da própria percepção, memória e sanidade. Também questiona frequentemente sua competência e potencial.

“Ela tem a sensação de que está sempre errada, o que impacta na sua autonomia e segurança. Isso acaba produzindo uma dependência emocional em relação ao gaslighter, pois ela passa a não confiar mais nas suas próprias escolhas e opiniões”

Muitas vezes, a vítima se sente sensível ou frágil demais – e pede desculpas por tudo para evitar conflitos, mesmo com a certeza de que não tem culpa alguma. 

Toda essa confusão mental e a sensação de medo constantes podem levar ainda ao desenvolvimento de transtornos para a saúde mental, como ansiedade, depressão, estresse, burnout etc. 

Como reagir e buscar ajuda: Na esfera pessoal, a vítima pode procurar ajuda especializada. “Mas se for buscar uma terapia, acho importante que seja numa perspectiva feminista, de gênero, porque às vezes algumas linhas podem acabar reforçando essas opressões”, diz Luciana.

A especialista também destaca a importância dos grupos de apoio entre mulheres:

“Acho um espaço de compartilhamento de experiências muito rico, em que elas vão produzindo um saber juntas e essa violência vai sendo politizada. Elas vão entendendo que não é algo só delas, que não são culpadas, que é um fenômeno coletivo produzido pelos machismos, e assim se fortalecem e criam estratégias para romper com esses abusos”

As vítimas também podem buscar apoio de familiares e amigos. E neste caso, a psicóloga diz que é essencial o outro lado oferecer acolhimento:

“É importante não desqualificar a fala dessas pessoas, não julgá-las, trazendo inclusive informações para que a vítima entenda o que está acontecendo, porque geralmente essas mulheres ou as vítimas, de forma geral, vão ficando cada vez mais sozinhas e têm dificuldades de sair dessa situação.”

Em uma empresa, no ambiente de trabalho, ninguém precisa passar sozinho pelo problema ou recorrer à demissão. De acordo com Luciana:

“É importante que esse assunto vá ganhando espaço no mundo corporativo em campanhas, formações, reuniões e processos de conscientização dos gestores. Tem que existir também canais de denúncia para que isso apareça”

Nosso olhar, diz Oliveira, precisa estar atento. “Porque às vezes pode até não ser o gaslighting, mas tem outras violências acontecendo ali o tempo todo.” 

Por que é importante dar um nome ao abuso: Para a especialista, nomear esse abuso tem muito a ver com o contexto de politização. 

“É algo válido para que o sujeito não ache que é um problema dele, algo da sua cabeça, para que não caia numa lógica individualizante. Este passo de nomear a violências é importante para identificá-la e combatê-la.”

Principalmente para as mulheres, diz a psicóloga, é essencial que compreendam que trata-se de um fenômeno coletivo, uma questão de saúde pública. 

Nomear a prática é importante não só para quem está sofrendo o abuso, mas para quem o pratica: “Quando a pessoa vê que aquilo que está fazendo, muitas vezes sem se dar conta, tem um nome, pode mudar seu comportamento, se estiver bem intencionada”, afirma a psicóloga.

Ela ressalta ainda que geralmente as violências psicológicas com tentativas de desqualificação e controle não costumam vir separadas, mas aparecem todas juntas. Ou seja, o abusador pode cometer gaslighting, bropriating e mansplaining – tudo ao mesmo tempo. 

“No caso das mulheres, acho legal entenderem essas nuances, porque, por exemplo, quando um superior busca ‘roubar’ a ideia de uma funcionária ou a interrompe o tempo inteiro, às vezes para ela será difícil falar algo, mas para uma colega que está junto e percebe esse abuso pode ser mais fácil dar um basta. É melhor ainda quando um homem aliado do feminismo identifica e aponta um comportamento tóxico deste tipo, porque terá o privilégio de ser ouvido.”

Para saber mais:
1) Na CNBC, acesse: “Is your partner a gaslighter? 3 red flags to watch out for”;
2) Leia, no RH pra Você: “O potencial destrutivo do gaslighting para a carreira e para o negócio”;
3) No El País, confira: “The rapid rise of gaslighting”;
4) Acesso, no G1: “‘Gaslighting’ é eleita palavra do ano pelo dicionário Merriam-Webster”.

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