“Visto a minha dor como uma roupa para levar felicidade às pessoas. Transformo dor em amor”

Marcelo Turra - 12 maio 2017O advogado Marcelo Turra transformou suas cicatrizes em força para atuar de forma inovadora defendendo direitos humanos - e de animais. Na foto, com Zeca e Fubá.
O advogado Marcelo Turra transformou suas cicatrizes em força para atuar de forma inovadora defendendo direitos humanos - e de animais. Na foto, com Zeca e Fubá.
Marcelo Turra - 12 maio 2017
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por Marcelo Turra

Existem coisas, para mim, indiscutíveis: laranja é a mais incrível das cores, injustiça é a pior coisa do mundo, o passado orienta (sim) o presente e o futuro.

Adquiri essas certezas ao longo da minha vida. Do interior de São Paulo ao Rio de Janeiro, foram descobertas, muitas. Lembro-me muito bem quando e por que escolhi ficar só do lado dos que vivem à margem. Esta é a minha história.

Meu nome é Marcelo Dealtry Turra, mas todos me chamam de Turra. Sou advogado e professor de Direito. Sou natural da cidade de Tupã, no Estado de São Paulo, e, com seis anos de idade, nos mudamos para o Rio de Janeiro – eu, minha irmã mais nova e nossa mãe. Tudo por causa da separação dos meus pais.

Fomos, eu e minha irmã, matriculados num dos melhores e mais caros colégios da cidade. Na escola eu era discriminado e ridicularizado pelo sotaque diferente, caipira, que tinha. Sofria até agressões físicas dos colegas. A professora de Matemática encorajava, pedia para que eu falasse “porta”, por exemplo. Eu falava. E todos em volta caíam na gargalhada.

Foram momentos de sofrimento e desespero. Medo e vergonha. Na verdade medo, muito medo.

Anos depois, essa mesma professora apareceu no meu escritório para que tratássemos de seu divórcio. Eu não disse que tinha sido seu aluno porque não quis perder tempo com a história. Advogamos para ela e a vida, de ambos, seguiu. Sem que a professora reconhecesse o ex-aluno que discriminou.

No colégio aprendi o que era a dor, a discriminação, a covardia. Aprendi a sentir um medo, um medo diferente daquele que até então sentia

A vida seguiu. Hoje, além de advogado, sou mestre em Direito. Desde que me formei, já questionava o real sentido do Direito. Sempre compreendi que a profissão que escolhi, estaria e deveria sempre estar intimamente ligada a questões de cunho social: servir como um instrumento para ajudar os mais necessitados, fracos, desassistidos.

No verão de 1991, li uma reportagem que relatava a experiência de integrantes de uma ONG que distribuía preservativos na Cinelândia e, ao mesmo tempo, conversava com os jovens que se prostituíam naquele local sobre DSTs – doenças sexualmente transmissíveis e aids.

Fiquei fascinado. Meu fascínio esbarrava num problema: como um garoto recém-formado em Direito por uma Universidade particular da zona sul carioca, morador de Ipanema, burguesinho ao extremo, ia ficar na Cinelândia de madrugada distribuindo preservativos para menores, na maioria garotos de programa, que se prostituíam? Mas não pensei duas vezes e me juntei ao grupo de distribuição de preservativos além de visitar, nos dias que se seguiram, e por muito tempo, o posto de atendimento médico público situado ali perto, onde, habitualmente, pacientes com aids eram tratados.

Em seguida comecei a atuar como advogado voluntário da ONG. Foi o começo de tudo. O começo. Não imaginava que, a partir daí, iniciaria um trabalho de patrocínio de ações, de forma contundente, de pessoas que viviam com HIV/aids, nos mais variados assuntos, tanto na ONG quanto no meu primeiro emprego sério: como advogado orientador do Escritório Modelo da Universidade Candido Mendes, onde me graduei.

Lá, fazíamos o atendimento jurídico à população carente, que não tinha condições de arcar com os custos de um advogado particular. Eram questões envolvendo planos e seguros de saúde, questões sobre responsabilidade civil, preconceito e discriminação, erros de diagnóstico, acessos a medicamentos e tratamentos, acesso à educação (uma das ações foi proposta contra um jardim-escola que se recusou a matricular menor portador do HIV).

O trabalho tomou proporções tão grandes que éramos procurados mesmo por pessoas que portavam outras doenças que não a aids: pessoas com cardiopatias, pessoas com diabetes, com leucemia, neoplasias de todos os tipos, entre outras moléstias.

O trabalho rendeu frutos e reconhecimento, nacional e internacionalmente. Participei de várias conferências internacionais, na Alemanha, no Japão, em Israel e na Inglaterra, apresentando trabalhos sobre aids e Direito e aids e Educação.

Fomos os primeiros, no Escritório Modelo de uma universidade particular, a conseguir liminarmente acesso a medicamentos de forma judicial. A primeira vitória no Rio, que rendeu a primeira página de um dos maiores veículos de comunicação do país.

Fomos os primeiros, também, a conseguir obrigar por via judicial o Estado do Rio de Janeiro a arcar com os custos de uma operação de transgenitalização (ou mudança de sexo, também chamada de redesignação sexual), de uma cliente transexual. Lembro-me como se fosse hoje de como a fisionomia triste e o vazio nos seus olhos quando de sua visita, pela primeira vez, trazendo laudos dizendo que tinha de ser operada urgentemente se transformaram numa felicidade extrema, inesquecível quando, tempos depois, nos encontrou para receber pessoalmente a notícia da vitória judicial. Ela vestia laranja, não me esqueço disso jamais. A cor que significa, entre outras coisas, alegria e vitalidade. Tudo a ver!

Fomos os primeiros a conseguir reintegrar ao Exército um soldado portador de HIV que havia sido compulsoriamente expulso por conta disso

Tudo era e foi muito gratificante. Mas corríamos contra o tempo, uma vez que os óbitos por conta da contaminação pelo HIV, no início da década de 1990, aconteciam em número muito grande.

Certo dia, no verão de 1992, fui procurado por um casal de jovens. Eles sabiam que eu atuava em questões envolvendo HIV e vinham pedir ajuda para um amigo que, naquele exato momento, estava em uma maca de enfermaria, em um hospital particular em Copacabana, sem assistência, pois o plano de saúde se recusava a garantir a sua internação. Tudo por ele ser soropositivo.

Propusemos uma ação judicial em face do plano de saúde, no dia seguinte, após uma noite inteira datilografando a petição (na época usávamos máquina de escrever!). No dia seguinte, acompanhado de dois alunos da universidade, conseguimos a liminar, cumprindo-a juntamente com o oficial de justiça de plantão, no início da noite. No hospital pude, enfim, conhecer meu cliente, por apenas poucos segundos, quando o transferiram, finalmente da enfermaria para um quarto do hospital.

Foi o tempo de lhe dar um beijo no rosto e de receber o seu agradecimento, na forma de um sorriso largo e bonito. A maca entrou no elevador e nunca mais o vi. Nunca mais. Lembro-me como se fosse hoje: cheguei em minha casa, tarde da noite, e me deitei. Mentalmente esgotado, mas com um sentimento que me fez chorar muito, por um bom tempo. Acabei dormindo, de tão cansado e de tanto chorar.

Nunca havia sentido aquilo antes. Nunca tive uma sensação tão grande de satisfação pessoal

Consegui mostrar para os meus alunos, naquelas pouco mais de 24h de nossa via crucis, o quão importante o ofício que tinham escolhido para as suas vidas. O que senti naquela noite nunca mais senti, até hoje. Talvez pelo fato de que, com o passar dos anos, envelhecemos, nos cansamos um pouco e nos endurecemos. Faz parte da vida. É a vida.

Nem tudo, no entanto, foram flores. A dor, o sofrimento, o sentimento de fragilidade, de incapacidade continuaram durante grande parte de minha vida. Esses sentimentos não desapareceram com o tempo. Infelizmente.

Naquela época, falar sobre aids era coisa bem complicada. Naquela época, o Judiciário já era moroso.

O óbito de clientes vivendo com HIV/aids antes de uma decisão judicial favorável era, para mim, motivo de enorme frustração. Essas perdas doíam mais ainda por ocorrer antes da finalização dos procedimentos judiciais, antes que esses meus clientes pudessem aproveitar um êxito judiciário. Eu deixava de dormir e de me alimentar direito por cair, constantemente, em depressão, me vendo completamente impotente e me sentindo o pior dos profissionais.

Certa vez, tendo emagrecido bastante, cansado e com olheiras, fui parado por um aluno no corredor da universidade, que, com olhar maldoso, comentou que eu estava muito magro e que eu “deveria me cuidar”.

Não poucas vezes fui tido como homossexual (como se isso fosse um insulto), por assumir uma luta na defesa das pessoas com HIV/aids

Nada disso, no entanto, fez com que eu mudasse de rumo, de caminho profissional ou mesmo que esmorecesse.

A verdade é que, depois de um tempo, a defesa das pessoas com HIV/aids não me bastava. Queria mais, queria estar junto dos marginalizados, marginalizados como eu quando vim para o Rio de Janeiro.

Foram 15 anos advogando no Escritório Modelo da Universidade Candido Mendes. Integrei, após esse período, a equipe da Unidade de Articulação dos Direitos Humanos do então Programa Nacional de DST/aids do Ministério da Saúde, em Brasília, por um ano.

Com o retorno ao Rio de Janeiro, comecei a lecionar na FACHA, Faculdades Integradas Hélio Alonso, e coordenar, também, o seu Núcleo de Prática Jurídica. O trabalho de defesa das pessoas com HIV/aids continua sendo desenvolvido, plena e exemplarmente, pelos advogados que hoje coordeno e integram o núcleo.

Mas não parei por aí. Além do atendimento à população carente e em especial a pessoas que sofrem toda sorte de discriminação, como prostitutas e transgêneros (com uma atividade nomeada “Um Nome pra Chamar de Seu”, com orientações a esse grupo de como formalizar a mudança de seu nome e gênero nos documentos de identificação), idosos, pessoas vivendo com HIV/aids, pessoas em situação de rua, entre outros, iniciamos, de forma pioneira, o atendimento a demandas envolvendo o Direito dos Animais.

Este trabalho é realmente pioneiro no Brasil: um escritório de prática jurídica de um curso de Direito patrocinando demandas envolvendo animais. Essa é mais uma das minhas lutas, tão apaixonante quanto a da defesa dos humanos marginalizados e discriminados.

Animais não humanos, abandonados, maltratados, sofrendo toda sorte de torturas e violências, tão frágeis ao extremo quanto humanos que integram determinados grupos sociais marginalizados, necessitam, também, de cuidado. A utilização de animais para fins e experimentos científicos, tráfico de não humanos, crueldade enfim, a utilização dos não humanos única e exclusivamente para fins humanos são as frentes que escolhi, agora, também, para combater.

Hoje entendo muito bem a razão pela qual optei por advogar e exercer meu ofício em prol dos que vivem à margem e que sofrem todos os tipos de abandono. Foi justamente lá, em 1975, quando me mudei para o Rio de Janeiro e fui discriminado na escola por ter um sotaque diferente, de caipira. Aquela discriminação ultrapassava as palavras – era física também. Hoje, advogo para todos os marginalizados, tanto humanos quanto não humanos.

Não consigo e jamais conseguirei ser só um espectador desses dramas. A exclusão, a intolerância, são inadmissíveis. Matam

Conseguimos retirar sete cães recém-nascidos das mãos de uma pessoa que os vendia na rua, sob sol forte. Estavam em péssimas condições de saúde. Na delegacia, a conduta foi tipificada como maus-tratos de animais. Uma senhora nos procurou porque, na varanda de um prédio vizinho, via dois cães confinados diariamente sob o sol e a chuva. Maus-tratos.

Ainda quero trabalhar com os loucos e com saúde mental e Direito. Há casos de famílias que conseguem laudos de internação de um parente apenas para dilapidar seu patrimônio. Mulheres e homens são agredidos, inclusive sexualmente, dentro do sistema manicomial. Pessoas são abandonadas.

A grande verdade é que a minha dor não me fez uma pessoa ressentida, amarga, muito pelo contrário.

Vesti a minha dor como uma roupa para levar felicidade às pessoas, deu liberdade e elas e levou à libertação dos preconceitos e de tudo o que passei

Usei toda a minha dor para transformar em amor todo o resto, como uma transformação da vida. Para que essas pessoas tivessem o que eu, lá atrás, não tive. Agora, dou oportunidade para que tenham ou, pelo menos, tento. Isso é uma vitória. Uma vitória pessoal. É saber modificar aquilo que eu passei. É não viver na dor. Fazer a dor uma escada para a gente ser feliz e fazer os outros felizes. Amadureci com a bandeira da Justiça.

Não canso de dizer que laranja é a cor mais incrível de todas. A injustiça é a pior coisa do mundo (antes eu achava que fosse a ingratidão, mas não: injustiça dói mais). O passado orienta, sim, o presente e o futuro. E como.

 

 

Marcelo Dealtry Turra, 51, é advogado e professor de Direito Civil e Processual Civil. Também é coordenador do Núcleo de Prática Jurídica Advogado Luís Gonzaga Pinto da Gama, das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), no Rio de Janeiro.

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