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Ao resgatar técnicas de conservação, ele valoriza a pesca artesanal de Ilhabela e abastece as cozinhas de restaurantes estrelados

Leonardo Neiva - 19 maio 2025
Rodolfo Vilar, criador do Projeto A.MAR, segurando um peixe prego, também conhecido como anchova negra (crédito: Projeto A.MAR).
Leonardo Neiva - 19 maio 2025
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De um pequeno barco pesqueiro em uma praia isolada de Ilhabela (SP) ao cardápio de restaurantes brasileiros com estrela Michelin. Essa é a trajetória do publicitário paulistano Rodolfo Vilar, 48, junto à comunidade de pescadores do Bonete, região que ele frequenta praticamente toda semana desde os 21 anos de idade.

Foi o baixo rendimento dos peixes e a falta de infraestrutura — a luz elétrica só chegou na região em 2017 — que fez com que Rodolfo buscasse alternativas para ajudar os moradores locais. Ao lado de Adriano Pellegrino, do diretor de e-commerce Ciro dos Reis, também frequentadores do local, e do pescador Alex de Jesus, ele fundou ali o Projeto A.MAR, empreendimento voltado para a valorização da pesca artesanal e da comunidade local.

Formado em publicidade, empresário e sem experiência prévia com o tema, Rodolfo construiu por conta própria um laboratório de pesquisa de técnicas ancestrais de conservação de peixes, que dispensavam a luz elétrica ausente do Bonete. A partir dessas técnicas, o projeto passou a produzir conservas, peixes defumados, além de produtos finos como bottarga (ovas de tainha salgadas e curadas) e karasumi (iguaria japonesa com ovas de peixe salgadas, secas e prensadas). Investimento que multiplica consideravelmente o retorno da pesca: um carapau, antes vendido na região por 3 reais, passa a valer até 40 reais como filé defumado.

Hoje, são do A.MAR as ovas de tainha do restaurante Maní, da chef e jurada do Masterchef Helena Rizzo, a alheira de carapau do Balaio, de Rodrigo Oliveira, o shidal, fermentado do leste da Ásia, do Evvai, e o shiokara, conserva japonesa com vísceras de frutos do mar, do Tuju. No total, são colaborações com cerca de 15 restaurantes. Recentemente, o projeto lançou também uma linha de conservas em parceria com a chef Renata Vanzetto.

Esse alto potencial comercial é voltado a apoiar e incrementar a renda dos pescadores do Bonete e outras comunidades tradicionais. Além de comprar os peixes pescados na região por valores convidativos, no início todo o lucro do projeto era devolvido aos pescadores. Rodolfo então criou o Instituto A.MAR, que passa a aplicar esse valor para gerar impacto na região. Instalando, por exemplo, fábricas de gelo gratuitas, que permitem conservar os peixes por mais tempo.

Em 2022, o A.MAR inaugurou oficialmente seu laboratório em Ilhabela, onde realiza a produção e os trabalhos de pesquisa. No mesmo ano, também lançou a Escola de Alimentos do Mar, programa educacional que leva as experiências do projeto para outras comunidades pelo Brasil. Rodolfo precisou se mudar de vez para a ilha, onde tenta equilibrar o intenso trabalho do A.MAR com a atuação como sócio da Guapuru, grupo de investimento focado no desenvolvimento de empresas. Leia a seguir sua entrevista ao Draft:

Conte como se deu sua ligação com o Bonete e como você acabou desenvolvendo esse projeto de trabalhar com métodos antigos de conservação, valorizar o conhecimento local…
Eu cresci pescando em Ubatuba. Aos 16 anos, trabalhando de office boy lá na Xavier de Toledo [rua no centro de São Paulo], juntei o dinheiro que eu tinha para comprar um barco, e trouxe para São Sebastião. Foi quando um amigo me convidou para pescar no Bonete, em Ilhabela. 

A primeira vez que eu fui lá foi em 1998, e nunca mais deixei de ir. A região só foi ter luz elétrica em 2017, era muito isolado. Tinha um orelhão na praça, e quem atendia dava o recado. E, como o mar lá é muito ruim, você ia ganhando o respeito dos pescadores locais

Até hoje, a locomotiva principal do Projeto A.MAR é a impressionante habilidade que eles têm de entender a natureza, de conhecer o mar. Os caras no mar são que nem um empresário na [Avenida] Paulista: um ambiente tão natural para eles e de uma interpretação tão complexa. 

Qual foi o pontapé inicial para essa ideia de investir na pesca artesanal da região?
Foi em 2004 que a gente percebeu: ninguém aqui fala de pesca artesanal. O que fazer com os peixes? Não tinha gelo nem luz, então tudo se perdia. Eles até paravam [de pescar] de vez em quando porque não tinha onde guardar o peixe. 

Daí veio a ideia de fazer algo para valorizar a pesca artesanal, mas não só o peixe, e sim as pessoas. Falamos: isso aqui não pode desaparecer na nossa frente 

Como o desperdício era muito grande, começamos a usar o fogão a lenha para defumar os peixes. Isso durou uns dez anos. Não tinha projeto, só essa iniciativa de ajudar com o incremento financeiro possível, mas nada estruturado. 

E a defumação emplacou. A própria comunidade fazia, porque gerava um prazo de validade maior para o peixe. Isso ganhou muita força.

Com o tempo, o projeto foi tomando a forma de um empreendimento social. Como aconteceu essa transição?
O primeiro pilar do projeto é a valorização da pesca artesanal em comunidades tradicionais. Esse é nosso propósito maior. O segundo veio de uma pergunta: por que a gente não trata o peixe do mesmo jeito que o vinho? 

Eu tinha me formado sommelier nesse meio tempo. Pensamos: vamos botar no rótulo dos produtos o nome do pescador, onde ele pescou, com que técnica – como no vinho 

Começamos a fazer etiquetas e levar os peixes para São Paulo. No começo não vendia. Até que o Museu da Casa Brasileira convidou a gente para um evento. Vendeu tudo, e o dinheiro a gente levou de volta para a comunidade. Se antes os caras vendiam um carapau a três reais, a gente estava vendendo filé a 40 reais.

O projeto não tinha Instagram, nada. A gente só aparecia em umas quatro feirinhas por ano. A cada feirinha vendia mais, e a gente tinha mais produto. A  partir daí, veio o terceiro pilar: o resgate. Porque, se a gente tiver mais produto, vai vender mais, divulgar mais e ter mais recurso. 

Então começamos a pesquisa para resgatar técnicas antigas de conservação do pescado sem energia elétrica. Foi isso que gerou o conceito do laboratório. 

Antigamente, o centro de pesquisa era em São Paulo, em Pinheiros, uma salinha que eu chamava de “Breaking Bad do peixe”. Eu ia para o trabalho, voltava, e no intervalo ficava ali estudando, lendo… Eu pesquisava essas técnicas numa escala minúscula, e a gente aplicava nas comunidades 

Esse painel de pesquisa começou pequeno, com as defumações, as salgas, mas depois ficou gigante. A gente estruturou a pesquisa em cinco protocolos: salga, defumação, conserva de lata e vidro, charcutaria e fermentação. 

Todos esses testes, a produção e a venda ainda não eram regularizados? Como foi esse processo?
Até 2021, toda produção do A.MAR era no Bonete, sem luz. A gente tinha as maquininhas de embalar a vácuo de 12 volts, e fazia tudo lá. Os testes eram no laboratório em São Paulo, que era meio clandestino. 

Em 2019, fomos capa do Paladar [caderno gastronômico do Estadão], e queriam fotografar o laboratório. Era capaz de eu ir preso.

Começou a tomar muita visibilidade, e a gente não tinha um documento, nem CNPJ. Além das feirinhas, começamos a vender pelo WhatsApp. Pegou tração, muita gente ligando para comprar. Eu tinha mais de 700 nomes de clientes no celular 

Só que a produção era ridiculamente pequena. Até hoje é, mas naquela época era mais ainda. Foi aí que resolvemos fechar o projeto. Eu nunca ia ter aprovação dos órgãos de fiscalização. E começou a tomar tempo, me prejudicou muito na empresa. Minha filha nasceu e eu só ficava no mar, no mar, no mar… Então, a gente parou por um ano. 

Mas a demanda ainda era muito grande. Até que recebemos um telefonema do Ministério da Agricultura, falando do projeto. Falei que não tinha como fazer, porque precisava construir um laboratório. E me disseram: se você fizer o laboratório, a gente consegue uma inspeção. Foi quando nossa vida começou a tomar o rumo atual. 

A gente construiu o laboratório na Ilhabela há três anos. Ele continua sendo um centro de pesquisa e desenvolvimento de produto, mas hoje também produz itens artesanais. São 36 produtos, 12 homologados pelo governo, e agora a gente conseguiu inspecionar mais oito. E aí, nesse processo, conseguimos regularizar as atividades. 

Tivemos um direcionamento da [educadora gastronômica] Rosa Moraes, de que a gente poderia montar uma escola. Daí nasceu a Escola de Alimentos do Mar, um programa educacional com 11 módulos e nove professores. É uma ferramenta sensacional para levar esse conhecimento para frente

Nesse tempo, a gente já estava fazendo projetos em vários municípios do Brasil e fora. Trabalhamos com o governo do Peru, na Amazônia, na França, no Japão. Decidimos formatar a operação para prestar contas à sociedade. 

Então, a gente abriu um instituto, que entrou como principal acionista da empresa A.MAR, que é o laboratório. Ele é o dono do laboratório e da escola, e toda a renda do projeto vai para o instituto.

No começo, vocês compravam o peixe pescado na região e parte dos rendimentos voltava para os pescadores. Ainda funciona dessa forma?
A gente ainda compra o peixe deles por um preço muito melhor. Mas a gente organizou o instituto para, em vez de uma devolutiva financeira, ter devolutivas de impacto. 

Todo nosso esforço agora é divulgar o instituto. Ninguém conhece o projeto A.MAR como instituto. Os caras fazem bottarga, conserva, dão cursos… mas isso é uma forma da gente se autofinanciar. 

E podemos ter outras formas de financiamento, porque o braço vai ficando curto. Quantos peixes defumados e conservas eu tenho que fazer? Você não consegue ampliar o impacto. 

Foi quando veio a ideia de fazer jantares em prol do instituto, que começaram em fevereiro com o Kanoe. Depois a gente fez com a Manu Buffara, com o Cepa. Este mês é o Lasai, no Rio, e vamos encerrar com o DOM, do Alex Atala 

Está sendo muito bom, porque as pessoas têm outro contato com a gente. Esse entendimento está levando a gente a conversar com outros institutos, prefeituras, empresas com interesse em apoiar.

É algo que a gente deveria ter feito há 10 anos. Na verdade, fazia em silêncio. Trocava telhado, dava dinheiro, comprava roupa, anzol… A prestação de contas era uma zona. Eu não queria que virasse um negócio, uma empresa, mas hoje já tem 27 pessoas trabalhando no A.MAR. 

Hoje que o instituto já funciona conectado às atividades do A.MAR, quais as principais ações que vocês realizam?
O dinheiro do instituto vai para três atividades centrais. Primeiro, encontros de capacitação comunitários, em que a gente vai na comunidade e explica como agregar valor ao pescado. Um peixe que tinha condições impróprias de consumo em uma hora passa a durar até 12 dias. 

Tem resistência das comunidades, mas é impressionante a receptividade depois das atividades. A gente fala da valorização do trabalho e de como ganhar dinheiro, que é o mais importante. Na hora em que eles adquirem esse conhecimento, é transformador 

A segunda atividade do instituto é implantar fábricas de gelo nas comunidades. No laboratório do A.MAR, uma fábrica faz uma tonelada de gelo por dia, e é aberta ao consumidor. Mas a gente percebeu que as comunidades mais distantes tinham dificuldade de chegar. Então colocamos duas pequenas fábricas no Bonete e na [praia da] Serraria. Cada uma custa uns 85 mil reais, tudo com o dinheiro das conservas. Isso muda a vida dos caras. 

E a terceira atividade é com o Jerônimo Vilas Boas, do Reenvolver, e o Fábio Mena, um dos maiores nomes da sociobiodiversidade brasileira. Desenvolvemos o projeto O Pescador e a Abelha. Implementamos um meliponário [colônias de abelhas sem ferrão], com potencial de renda de 28 mil reais por família com a produção de mel, pólen, própolis e cera. 

Mas é um projeto caro. A gente quer captar 3 milhões de reais em cinco anos, para colocar mais oito meliponários na Ilhabela. É muito impacto com pouco recurso. 

O A.MAR agora tem site, faz entregas, tem uma estrutura maior. Hoje qual a principal fonte de recursos: a venda para o consumidor final ou para os restaurantes?
Nosso foco é o consumidor final, porque é onde a gente explica o que é o A.MAR. Todas as nossas embalagens vão com QR Code e folheto do instituto. 

É impressionante o esforço para levar essa informação, apesar de só 5% das pessoas lerem. A loja online vai receber uma carga de novos produtos: livros de receita, álbuns de fotos, vinho, cerveja, cachaça, itens que a gente está preparando para não ficar só no pescado

Mas temos sim alguns pontos de venda. A Izabela Tavares [da Iza Padaria Artesanal, em São Paulo], o Instituto Chão… A distribuição no atacado contribui demais. 

A gente também fechou agora com a Casa Santa Luzia, vamos ser os primeiros produtos de impacto social deles. Não são tantos pontos de venda porque a capacidade de produção do laboratório não é alta, e não queremos virar fábrica. 

E outro braço são os restaurantes. Um dos mais emblemáticos é o Maní, onde a gente faz uma reconstrução de ovas de tainha com [os chefs] Helena Rizzo e Willem Vandeven. É um case de sucesso em que a gente reconstrói a ova numa tripa natural, onde ela fermenta com lichia e cachaça. Depois a gente defuma, e eles servem como se fosse um quenelle em cima de um purê de milho… 

No total, são 15 colaborações com restaurantes.

Você disse que o A.MAR não tem uma capacidade de produção muito grande, mas quanto vocês costumam vender?
Uns 500 itens por mês, que é pouquinho. Se tivéssemos uma empresa apoiando o laboratório, como a Três Corações com o Atala, a diferença seria absurda. Se eu vender dez mil conservas em um ano, dá 500 mil reais. Com 50 mil reais por mês, eu não acendo nem a luz do laboratório. 

O que a gente conseguiu foi desenvolver uma tecnologia social importante. Esses encontros comunitários, as fábricas de gelo funcionam em qualquer lugar do mundo. Tanto que a Petrobras agora está aplicando no Nordeste, no Ceará, na favela de Serviluz. E a diferença na vida dos pescadores é absurda 

O projeto é muito procurado por fundações para aplicar a tecnologia que a gente criou. Por isso, nosso foco não é ampliar o laboratório. Quero caminhar na direção do instituto. Sabemos fazer produto, daria para fazer um milhão por mês… Mas isso nos afastaria do mar, da comunidade, do propósito inicial. 

Vocês já têm alguma parceria ou estão buscando apoio?
No momento, não temos. A gente chegou onde ninguém imaginava. Cozinhar no DOM, ter um produto há três anos no menu da Helena Rizzo. Então, a gente quer falar do instituto, porque ele tem muito mais potencial de impacto do que uma conserva de lula, que só ajuda a levar a mensagem para frente. 

A gente está justamente procurando empresas que possam apoiar. Hoje queremos esse diálogo com a iniciativa privada para definir um apoio para o laboratório, que já tem oito funcionários. Não vamos deixar de produzir receitas, mas é um recurso pequeno perto do que a gente precisa fazer. 

E como você faz para equilibrar o trabalho à frente da sua empresa com essa atividade intensa do A.MAR?
Não sei nem explicar, tem muita perda. Pensando racionalmente, eu não poderia ter vindo morar em Ilhabela nem fazer o que estou fazendo. 

Minha empresa vive um momento difícil. Os sócios me cobram por ficar trabalhando em uma comunidade isolada. Eles têm um pouco de razão, mas somos amigos de infância, então a gente se dá bem. 

Só que o desastre ao redor é grande. Família, trabalho, vida social. Ontem fui cozinhar em São Paulo em um evento sobre clima, e depois voltei para a ilha. Não pude ficar porque no outro dia tinha uma reunião com o prefeito. Tem consequências sim, não pode romantizar. É bastante trabalho, e acabo não dando conta.

O projeto é trabalhoso, demanda energia, paciência, empenho, perseverança, mas isso tudo é infinitamente inferior ao tamanho do amor, do propósito, da causa, de tudo que nos move. Olhando para trás, é só orgulho, só alegria. E eu nunca pensei em desistir, nunca. A gente fez aquele intervalo em 2020, mas foi de reorganização, de respiro 

Ainda tem muita gente para ajudar, muita visibilidade para trazer, espécies de pescados que o brasileiro não conhece, muita desigualdade na cadeia, muita renda que pode ser mais justa, com impacto positivo no meio ambiente… 

São tantas coisas que me movem, e a certeza é que é só o começo. O Brasil anda de costas para o mar, é um tema muito pouco abordado. Mas nosso amor, nossa força é muito maior que as dificuldades.

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