Na Zona Leste de São Paulo, vizinha ao reduto italiano da Mooca, a Vila Zelina é um bairro com presença marcante de famílias formadas a partir de imigrantes do Leste Europeu, como lituanos, russos, búlgaros, húngaros, poloneses e ucranianos.
Entre eles estão Ivan Alatxeve, 52, e Welton Fernandes, 50, netos de Yalange Matrona Trifon, mulher que saiu da Moldávia (pequeno país que faz fronteira com a Ucrânia e a Romênia) aos 17 anos e chegou sozinha no Brasil – mais precisamente à Vila Zelina, onde hoje seus netos tocam a Casa da Matrona. Ivan resume o conceito:
“A Matrona é uma casa, um lugar de acolher gente, que tem negócios para ajudá-la a viver e monetizar”
Em um galpão com ar retrô, decorado com peças garimpadas e outras (como um armário vermelho) que pertenceram à matriarca, o espaço – que também pode ser alugado para eventos – inclui um restaurante que serve almoço de terça a sábado; um bar com local para shows que funciona à noite, de quinta a sábado; e uma torrefação de cafés especiais.
Tudo isso faz parte de um modelo de negócios colaborativo idealizado por Ivan, segundo o qual investidores de trabalho e investidores de tempo dividem o lucro de forma igualitária.
Ivan vinha alimentando há algum tempo a ideia da Casa da Matrona. Porém, ele precisou de um “empurrãozinho” para criar coragem e tirar o negócio do papel.
Esse estímulo veio na forma de uma situação de vida ou morte. Em 2020, primeiro ano da pandemia, Ivan enfrentou um quadro grave de Covid-19, com comprometimento pulmonar de 85%, dois derrames, trombose e impactos cognitivos como perda da fala e problema de interpretação de texto.
“Quando você vê que a morte é tátil, muita coisa muda. Eu tinha esse projeto no coração há muito tempo, mas estava fugindo disso porque não queria voltar a operar varejo. Aí fiz um compromisso com Deus, com a espiritualidade e falei: ‘Se eu sair dessa, vou montar esse negócio’…”
Até hoje, mais de 716 mil brasileiros morreram por conta da Covid-19. Ivan, por sorte, escapou de integrar essa estatística. E assim, em 2022, cumpriu a sua promessa e inaugurou a Casa de Matrona.
Com formação técnica em mecânica, o empreendedor diz que chegou a trabalhar na área, nos anos 1990, mas nunca se encontrou naquela profissão.
Então, Ivan largou tudo e foi trabalhar como balconista numa loja do Café do Ponto na Praça da República, centro de São Paulo. Acabou virando sócio do negócio.
Na época, ele teve a ideia de fazer uma parceria com uma loja da Dunkin’Donuts que ficava em frente; a ideia era compartilhar clientes, já que, por medo de assalto, muitas pessoas evitavam atravessar a praça. E assim foi montado um ponto da Dunkin’Donuts dentro do Café do Ponto.
“Acabei criando um negócio que hoje é chamado de cobranding, quando duas marcas convivem no mesmo ambiente. Quando vendi essa operação, fui convidado pela Dunkin’ Donuts para fazer a expansão desse modelo de negócio”
Depois dessa experiência, ele passou pela General Mills, fazendo um trabalho com Häagen-Dazs – marca de sorvetes da multinacional – no food service. Ali, decidiu que não queria continuar no mundo corporativo como funcionário.
Essa decisão coincidiu com um problema de saúde em sua família:
“Foi também o momento em que meu pai recebeu o diagnóstico de Parkinson. Eu estava muito distante e queria ficar mais perto dos cuidados com ele”
Ivan passou a prestar serviço para franquias, fazendo análise de viabilidade e trabalho de posicionamento de marcas. Ficou nesse negócio por dez anos, até que a chegada da Covid-19 e a proximidade da morte o fizeram voltar à ideia de um modelo de negócios mais colaborativo.
“Ficou muito claro para mim, quando eu estava perto de morrer, a questão do legado. Que tipo de impacto eu vou gerar, não para o mundo, mas talvez para um grupo pequeno de pessoas que queiram fazer a diferença.”
Ao todo, a Casa da Matrona tem 45 sócios, sendo 30 que investem dinheiro e 15 que dedicam tempo e trabalho.
O projeto criado por Ivan foi orçado em 2 milhões de reais. Ou seja, esse era o recurso que ele precisava para pôr o negócio de pé, incluindo reforma, manutenção do espaço, fluxo de caixa, entre outros itens.
“Até o momento, captamos 1,6 milhão de reais, que utilizamos para montar e manter a casa até atingir o ponto de equilíbrio. Isso tinha que acontecer em 12 meses e aconteceu em dez. Agora, estamos na captação desses 400 mil reais finais, para a criação de caixa próprio”
As pessoas que colocaram recursos na Casa da Matrona se tornaram cotistas do negócio. Existe um contrato de investimento feito com cada investidor, inspirado nos contratos de investimento anjo.
Hoje, o fundo possui 20 mil cotas. Uma pessoa que compra 2 mil cotas, por exemplo, tem 10% desse fundo, tanto para efeito de valor quanto de remuneração do capital. Quando a casa gera lucro, 10% do lucro líquido vai para esse cotista. Porém, em vez de retirar os 10%, ele retira 5% e distribui 5% para quem trabalha na operação.
Os primos Welton Fernandes (à esq.) e Ivan Alatxeve, à frente da Casa da Matrona (crédito: Washington Garcia).
Ivan avalia que, se você olhar apenas para os dividendos, investir na Casa da Matrona pode não ser atraente; o que torna o investimento interessante é o valuation e a capacidade que esse negócio tem de revalorizar a cota.
“Quando montamos o fundo, havia uma projeção de um valuation de 6 milhões de reais em cinco anos. Em junho deste ano, contratamos o mesmo economista, mostramos o que foi realizado e o que estamos projetados para fazer daqui a três anos e recebemos um laudo de valuation de 9 milhões de reais”, diz Ivan. “Então, a principal promessa para o investidor de recursos financeiros, de retorno de capital, é através da revalorização da sua cota.”
Para ele, os investidores que topam participar desse modelo são pessoas com senso de propósito, que entendem que a beleza do negócio está em fazer parte desse sistema colaborativo.
“Tem que ser alguém que tenha um coração voltado para o social no sentido de falar: eu quero participar de um negócio que tenha um propósito e estou disposto a distribuir parte do meu lucro para isso. E no dividendo ele faz isso. Na ação, na própria cota, ele não precisa fazer isso”
Os investidores podem vender as suas cotas a qualquer momento, mas uma regra determina que elas devem ser oferecidas primeiro aos idealizadores. Se eles não puderem comprar, elas são oferecidas para todos os membros do fundo – e se não houver ofertas, vão para o mercado. Neste momento, há cotas sob gerência de uma empresa de fusões e aquisições que está oferecendo no mercado.
Os investidores de tempo e de trabalho possuem um contrato de prestação de serviços com a Casa da Matrona, no qual há a determinação de um pró-labore e a cláusula de que ele vai receber a participação dos lucros provenientes do negócio. “Quando tem distribuição do lucro, é igual para todo mundo, sem distinção”, diz Ivan.
Sabe aquela história de que em coração de avó sempre cabe mais um? O modelo de negócios da Casa da Matrona é um pouco isso. Como o objetivo é acolher as pessoas, para qualquer cliente que entra é oferecido água, torradas temperadas e café.
Na hora do almoço, o cardápio oferece pratos bem caseiros, como bifê rolê, contrafilé, parmegiana e omelete. A cozinha é comandada por Welton, o primo de Ivan que se apaixonou pela ideia do negócio e largou tudo que fazia para ser parceiro na jornada. Como neto mais novo da Matrona, era o único que podia entrar na cozinha e, por isso, aprendeu muitas receitas com ela.
Quem estiver almoçando por lá pode, de repente, sentir um forte cheiro de café torrado. Ele vem da torrefação da Casa da Matrona, mais um negócio que a casa comporta. De lá vem o cafezinho servido aos clientes, mas também pacotes de cafés encomendados por parceiros. Ivan afirma:
“A gente não queria vender café como todo mundo vende e decidimos chegar ao consumidor fazendo um trabalho colaborativo, dando voz a outras marcas”
A Casa da Matrona compra cafés especiais do sul de Minas Gerais, torra, envasa e entrega para os clientes, que não precisam pagar nada por isso. O modelo propõe uma planilha de custos aberta e uma indicação de preço de venda que, hoje, é de 49 reais para 250g. O lucro é dividido igualitariamente entre a Matrona e a marca parceira.
Não existe pedido mínimo. Hoje, são cerca de 50 parceiros que incluem bandas como Inocentes e Garotos Podres, ONGs como Gatinhos da Vila Prudente e Compassiva, e negócios como o Nutrição sem Fronteiras.
A torrefação de cafés, junto com a locação de casa e projetos mais pontuais, corresponde a 30% do faturamento. O almoço responde por 20%, enquanto as experiências noturnas, pelos demais 50%.
Pôr de pé esse modelo de negócios foi desafiador, segundo Ivan, porque não havia exemplos para se inspirar. Ele contou com a ajuda de economistas e advogados para formalizar legalmente o modo como a Casa da Matrona é operada.
Para organizar o gerenciamento de tantas pessoas, o contrato social (feito com os investidores) tem sempre um responsável legal, que tende a mudar a cada três anos. Ivan foi o primeiro a assumir; agora, quem está na função de CEO é Welton. “A ideia é que periodicamente a gente prepare pessoas para que eles assumam essa responsabilidade”, diz Ivan.
Essa capacidade de formar novas lideranças anda junto com outro traço essencial da Casa da Matrona: a disposição para rever rotas sempre que necessário. Um exemplo foi a mudança em relação à produção artesanal de cerveja.
Até hoje, a Casa da Matrona só serve cerveja autoral, feita por eles. No início, a produção ocorria dentro do próprio estabelecimento, onde hoje funciona a torrefação de cafés. A cervejaria tinha capacidade para produzir 5 mil litros por mês, mas vendia (e vende) cerca de mil litros. Então, o excedente era comercializado em barris para clientes externos.
“Estávamos começando a crescer, quando foi formado um fundo aqui no Brasil que comprou 15 nano cervejarias. Depois de um ano, eles começaram comprar exclusividade em pontos de venda e fomos perdendo um cliente atrás do outro… Aí decidimos tirar o pé da venda de cerveja para fora e continuar produzindo apenas o que a gente necessita”
Assim, a produção saiu de dentro da Casa da Matrona e foi para um parceiro, na Mooca. Para Ivan, ajustes como esse fazem parte do jogo. O mais importante é ter clareza do conceito que sustenta o negócio.
“Aqui na Matrona, somos uma Casa. Gosto de dizer que também somos uma torrefação, também somos um restaurante, também somos uma casa de shows… Tudo o que temos foi concebido a partir dessa estrutura, desse posicionamento. Ele é a nossa âncora: haverá dias bons e dias péssimos, mas é isso que mantém a Casa firme no seu propósito de acolher pessoas e construir de forma coletiva.”
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