A cada 2 minutos, uma mulher sofre violência doméstica no Brasil. Saiba como o projeto Ser Ela pretende mudar isso

Christine Simões - 13 ago 2021
Christine Simões, advogada e idealizadora do projeto Ser Ela.
Christine Simões - 13 ago 2021
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Se você não gosta de chamar “Elas” de vítimas, como você as chama?”. Eu chamo de nós, de mulheres!

Acho que sempre fui disruptiva, pois nunca fui capaz de compreender os preconceitos, as convenções sociais e, principalmente, a violência. O que eu fazia com isso? Nada. 

Escolhi cursar direito porque desde pequena soube que minha missão era lutar por justiça. Mas, aos 40, me vi desempenhando três papéis: alta executiva em uma multinacional; mãe sofrida pela luta (em juízo e fora dele) pela sua segurança e a da sua família; e mulher na busca da superação de medos e traumas para ser feliz.    

A violência doméstica é um pesadelo. E a sensação, especialmente para as mulheres que têm filhos, é a de que ele nunca terá fim

Como num sonho, a história é nossa, mas não temos controle sobre seus capítulos. E, vou te contar, é surpresa atrás de surpresa.

NÃO TER CONTROLE É DIFERENTE DE NÃO TER PODER PARA MUDAR

A universalidade, que faz com que todas as mulheres vivenciem a violência de gênero em nosso país, pode ser uma grande aliada, um elemento singular de união entre as mulheres.

E foi assim que surgiu o Ser Ela, organização voluntária, sem fins lucrativos, dedicada ao apoio a mulheres vítimas de violência doméstica.

A ideia inicial foi a de criar um espaço seguro e acolhedor de educação, orientação e apoio psicológico para as mulheres no Centro do Rio de Janeiro

Nele, teríamos orientação às vítimas, grupos de apoio emocional com encontros periódicos, palestras, cursos e uma biblioteca com livros sobre o tema, para consulta gratuita.

Em uma segunda etapa, planejávamos capacitar mulheres para atuar in loco, levar os grupos para as escolas. Mas A pandemia surgiu no meio desse processo.

Eu já tinha a planta (havia comprado futons de cor lilás, uma cor associada ao respeito, caminhos e soluções) e agendado um show beneficente para arrecadar recursos para a obra.

O sonho estava se concretizando quando tive que parar. Foi uma grande decepção — e pensei que seria o fim.

O projeto inicial envolvia contato entre pessoas e dependia de recursos que, em momento de crise econômica, não estariam disponíveis.

NÃO FOI O FIM: FOI SÓ O COMEÇO

Se por um lado a pandemia inviabilizou a abertura do espaço, por outro ela evidenciou o quanto o projeto era importante e urgente.

Percebi que para Ser Ela nascer, bastava o “sim” das profissionais que toparam integrá-lo (de forma voluntária e gratuita), além de uma ferramenta de reunião via web e de divulgação. E, dessa forma, o projeto veio à luz no dia 22 de abril de 2020.

A biblioteca é virtual, escolho trechos de livros, pesquisas e mensagens de pensadores consagrados, as compartilho, comento, indicando a fonte para quem quiser acessar o conteúdo completo.

O grupo de apoio, as palestras, workshops e aulas são realizadas via web. À frente deles  estamos eu e outras mulheres que são referências em suas áreas.

Operamos com amor e sem dinheiro. Trabalhamos a comunicação, o equilíbrio emocional e psicológico, a conscientização jurídica, fomentamos iniciativas de conscientização social e debate

Partindo da necessidade de cada mulher, buscamos — interna e externamente — formas de apoiá-las. É um trabalho de formiguinha: persistência, dedicação e muita resiliência.

UM TRABALHO COMUNITÁRIO PARA QUEM MAIS SE DEDICA A ELE

Não é fácil lutar pelo resgate da dignidade feminina quando são tantos os entraves enfrentados no sistema. A violência institucional e o medo dela acabam sendo um obstáculo tão grande quanto são os agressores.

Também não é fácil desenvolver um trabalho que foge do viés, seguimos uma linha comunitarista. O projeto tem a ver com o exercício da cidadania, não com caridade.

As mulheres são, em grande medida, a mola propulsora da nossa sociedade. Somos nós que suportamos, tradicionalmente, o trabalho comunitário — mas ele pouco se direciona ao atendimento das nossas necessidades

Acredito que temos uma chance real de vencer a violência de gênero, que afeta a todas, se redirecionarmos uma pequena parte da nossa energia ao processo de transformação. 

O Ser Ela tem conseguido resgatar, em muitas, a crença em valores como a confiança, o afeto e o pertencimento.

COMO VENCER A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E O MEDO DE FALAR SOBRE ESSE TEMA

Quem se junta ao grupo não está sujeita a rótulos. Não são “vítimas”, “não são “elas” — somos “nós”. Violência é submissão, isolamento, culpa e medo.

O nosso objetivo é criar alianças genuínas, conexões e redes de Norte a Sul do país. Rimos, choramos, brindamos a cada vitória, pequena ou grande. 

Histórias, são muitas: coordenação de socorro médico no Espírito Santo, participação no grupo em pé em um playground escuro, sentada na recepção de um prédio, andando na rua. Compartilhamos a descoberta de um talento ou (no meu caso, da total inabilidade) para desenhar.

É claro que as minhas histórias favoritas são aquelas que acabaram com as meninas sorrindo, se redescobrindo depois de anos de privação.

Muitas pessoas têm receio em se envolver com o tema por medo, pela violência vista como algo pesado e complicado. Isso é um equívoco

Há um enorme poder transformador em nós. E nada é mais gratificante do que ver uma mulher linda se sentir confiante o suficiente para mostrar o seu rosto e contar sua história sem olhar para baixo — e saber que você é parte dessa conquista! 

DESEJO QUE OS HOMENS SE JUNTEM A NÓS NESSA LUTA

Nessa jornada, os aprendizados foram tantos! Aprendi a falar em público, superar a vergonha, ser menos perfeccionista e muito menos ansiosa.

Os passos são dados um de cada vez — cada uma ao seu tempo e da sua maneira. Aprendi que nossa capacidade é infinitamente maior do que pensamos.

Nunca me imaginei empreendendo. Hoje, sei que sou capaz de criar conteúdo, fazer conexões, organizar eventos, dar aula, acolher, liderar um grupo (e até escrever um artigo!).

Agora, o que desejo é que o Ser Ela se espalhe, que esteja onde ele for necessário.

E desejo que homens se juntem a nós, que compreendam que essa não é uma luta feminina: é uma luta de todos pelo fim da violência nas relações domésticas e familiares, que são a base das nossas relações sociais presentes e futuras

Eu vejo o Ser Ela como um processo contínuo de transmissão de conhecimento e de ideais. Cada uma das meninas está, lentamente, se tornando protagonista de uma nova história — e, nela, está o Ser Ela e a construção de um mundo melhor.  

 

Christine Simões é advogada. Mestre em Direito pela London School of Economics, atuou por mais de quinze anos dando assessoramento jurídico a multinacionais. Fundadora do Projeto Ser Ela e sócia fundadora da CS Consultoria, consultoria corporativa voltada à educação sobre equidade, inclusão e violência, desenvolvendo programas de prevenção, proteção e enfrentamento à discriminação e ao assédio no mundo do trabalho. É membro da Comissão da Mulher da Associação Brasileira de Advogados do Rio de Janeiro e da Society of Gender Professionals. 

 

 

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