“A Covid-19 foi um baque. Tivemos que reinventar o trabalho, com as portas fechadas, num negócio que tínhamos acabado de abrir”

Monica Carvalho - 19 jun 2020Monica Carvalho tinha o sonho de trabalhar com cultura, livros, literatura. Abriu, em janeiro, a Livraria da Tarde.
Monica Carvalho tinha o sonho de trabalhar com cultura, livros, literatura. Abriu, em janeiro, a Livraria da Tarde.
Monica Carvalho - 19 jun 2020
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Uma coisa é ser leitora, ter meus livros preferidos, amar uma escritora, não gostar tanto assim de algumas histórias, e até fazer a lista dos livros “Top 5” do ano. Outra coisa é ser livreira…

Trabalhei durante 20 anos em RH, no mundo corporativo, sendo seis deles dentro de empresas. E depois, 14 anos prestando serviços de consultoria em Educação Corporativa na Movidaria, empresa da qual sou sócia até hoje.

Em fevereiro de 2018, em um momento de reestruturação da consultoria, um dos profissionais que nos apoiavam nesse processo me questionou aonde eu gostaria de estar dali a três anos.

Na hora não consegui responder, mas fiquei com aquela pergunta na cabeça.

Já estava, há algum tempo, pensando que gostaria de fazer outras coisas da minha vida, além do que eu fazia lá na empresa. E um dos meus sonhos era trabalhar com cultura, livros e literatura

Nas minhas férias, naquele mesmo ano, fui a Portugal e aconteceu uma coisa curiosa. Eu queria comprar um medicamento, e ao procurar uma farmácia, em Lisboa, encontrava uma livraria.

Depois da terceira vez que atravessei a rua ao ver um comércio aberto, me deparei com livros e não remédios. Pensei que havia ali algum tipo de “recado do universo”, embora eu seja uma pessoa muito cética.

Voltei com isso na cabeça e, em outubro, diante das notícias da crise do setor, com Saraiva e Cultura pedindo recuperação judicial, percebi que poderia haver ali uma oportunidade.

Conversei com meus sócios, e combinamos que eu sairia num ano sabático a partir das minhas férias em abril de 2019.

Assim que tomei essa decisão, no final de 2018, comecei a pesquisar o mercado livreiro, convidei profissionais do ramo para tomar um café e conversar, conheci a CBL – Câmara Brasileira de Livros, e a ANL – Associação Nacional de Livrarias.

Em maio, decidi abrir a Livraria da Tarde, no bairro de Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo. O sonho de trabalhar com livros, cultura e literatura estava se concretizando. Queria criar um lugar diferente dos que existiam até então

A proposta de valor da Livraria da Tarde, desde o início do projeto, foi criar um ambiente para acolher o cliente — da sua chegada no espaço a uma boa curadoria de literatura. Oferecendo também um sorriso, boas-vindas, poltronas aconchegantes para se sentarem sem pressa e curtirem um café gostoso ou um chocolate, saindo de lá com a sensação de que o tempo parou.

Em 21 de dezembro do ano passado, depois de muita briga com pedreiros, pintores, eletricistas e arquiteto, inauguramos o espaço. O sonho já era realidade e eu ia me despedindo da minha carreira de consultora de RH e começava uma nova vida como livreira.

Ser livreira tem tudo a ver com o que eu fazia antes. Curioso, porque só percebi isso quando comecei a vivenciar essa nova experiência.

Como consultora, eu precisava ouvir meu cliente, entender sua demanda e recomendar soluções adequadas à sua realidade.

Como livreira, percebi que o cliente da livraria física também quer ser escutado, é preciso entender sua realidade, seus gostos, e ele espera uma recomendação

É claro que o repertório é muito diferente, e como leitora que sou, uso esse conhecimento. Percebi, no entanto, que preciso ampliar meu gosto literário, ler ainda mais — sem preconceitos — e abrir minha cabeça para conhecer novos autores, estilos e a diversidade que o mundo do livro oferece.

Em 20 de março, no entanto, precisamos fechar as portas devido à pandemia do coronavírus. Um dia antes da Livraria da Tarde completar três meses…

Foi um baque para todos nós. Contudo, foi a hora de botar a cabeça para fora da caixa e criar um novo canal de vendas. Afinal, num momento de reclusão e isolamento social, ter a companhia dos livros parecia uma oportunidade

Criamos, então, o canal de vendas pelo WhatsApp. Fizemos uma parceria com uma empresa de entregas (motoboy) e demos um gás no nosso site, com recomendações dos livreiros e divulgação do nosso acervo nas nossas redes sociais.

Cuidei para que a equipe ficasse em segurança, nos organizamos em turnos mais curtos, muito álcool gel, máscaras, álcool líquido 70% para higienizar os livros, filme PVC para embalar e dar garantia ao cliente.

Tudo isso foi importante, mas sem dúvida, o que tem nos diferenciado em relação a outras livrarias, que também oferecem o mesmo serviço, é o trabalho do livreiro.

Quando estive em Portugal, visitei a Livraria Lello, uma livraria antiga e tradicional do Porto, que se tornou ponto turístico ao inspirar a série Harry Potter.

Ali, em um panfleto que recebi na entrada, aprendi alguns ensinamentos com Domingos Lima, livreiro da casa por 52 anos. “Um bom livreiro deve: conhecer de memória o catálogo da casa (autores, títulos, datas); saber aconselhar-se bem junto a clientes cultos que possam fornecer pistas sobre autores a encomendar; saber reconhecer edições cuidadas e livros raros; ter o trato certo no relacionamento com os clientes e saber vender bem.”

Desde que inauguramos, temos tido cuidado para que esses ensinamentos sejam aplicados diariamente. Nossa equipe cuida do acervo, muda a exposição dos livros, limpa, organiza, faz pedidos, aprende muito com os clientes, alimentando esse relacionamento com afeto e carinho. Temos muito prazer em atender e servir, seja pessoalmente, ou mediados pela tecnologia.

Essa semana pudemos reabri a loja ao público, depois de quase três meses de operação com as portas fechadas. Foi uma emoção para mim e para minha equipe

A Prefeitura de São Paulo permitiu a abertura do comércio por quatro horas diárias desde que cumpríssemos os critérios de segurança.

Fizemos as devidas adaptações e a receptividade do público está sendo incrível. Recebemos primeiro os vizinhos, que estavam ansiosos por uma visitinha. Agora que divulgamos nas redes sociais, muitos clientes de longe estão prometendo uma ida à Livraria para matar as saudades.

Agora na reabertura, estamos recebendo de volta todo o afeto e acolhimento que demonstramos para o nosso público nos três meses de loja aberta e no período de operação remota.

Continuaremos atendendo via WhatsApp e realizando entregas em São Paulo, para que as pessoas sigam a quarentena. Após a pandemia, queremos expandir para entregar em todo o Brasil. Acredito que esse canal permanecerá para sempre e fará parte do novo “normal”.

A realidade mudou, os canais de vendas estão mudando, as perguntas mudaram, e vivemos um “novo normal”. Não temos todas as respostas e nem os melhores resultados, mas percebemos o quanto a agilidade, a transparência, a atenção, o cuidado com o outro e a comunicação direta têm sido importantes para trazer resultados de vendas nesse período.

Tem sido uma experiência gratificante para todos nós. E, apesar das dificuldades (e são muitas!), a gente segue confiante e feliz de continuar cumprindo nosso propósito de levar boa literatura para as pessoas.

 

Monica Carvalho é psicóloga e empresária, graduada em Psicologia e pós-graduada em Gestão de Recursos Humanos pela Universidade Federal de Minas Gerais. Proprietária da Livraria da Tarde e sócia da Movidaria, uma consultoria de Educação Corporativa e Experiências de Aprendizagem.

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