O coronavírus não é ficção. De portas fechadas, a Escrevedeira já prepara o contra-ataque: vem aí uma plataforma de cursos online

Dani Rosolen - 1 abr 2020Noemi Jaffe toca a Escrevedeira junto com os sócios João Bandeira e Luciana Gerbovic.
Noemi Jaffe toca a Escrevedeira junto com os sócios João Bandeira e Luciana Gerbovic.
Dani Rosolen - 1 abr 2020
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Aulas 100% virtuais. É assim que a Escrevedeira vem funcionando desde meados de março, quando teve início o isolamento social no Brasil. A acolhedora casa com um belo pé-direito, que sedia a escola de escrita criativa, na Vila Madalena, Zona Oeste de São Paulo, está fechada para evitar a propagação do coronavírus.

Os alunos, porém, continuam a frequentar as oficinas online e têm acesso a uma agitada agenda de eventos no mundo digital. Afinal, a criação literária — um excelente remédio em tempos de crise — não pode parar.

É a escritora, professora e crítica literária Noemi Jaffe, autora de obras como A verdadeira história do alfabeto (Cia. das Letras) e O livro dos começos (Cosac Naify), a responsável por tocar o espaço.

Além de oficinas e cursos de escrita (que variam de 50 a 440 reais), a escola realiza grupos de estudo, leituras críticas de originais e um clube de leitura (todo segundo sábado do mês, com contribuição voluntária). Também sedia lançamentos de livros e palestras e aluga a casa para outros eventos, não necessariamente do mundo literário.

A Escrevedeira promove ainda uma ação social com grupos de adolescentes moradores de uma comunidade na Lapa. Toda sexta-feira, os jovens têm aulas gratuitas de formação literária e escrita.

Junto à autora, também estão nessa empreitada, como sócios, o poeta João Bandeira (casado com Noemi) e a advogada Luciana Gerbovic, mais dois funcionários, Bernardo e Moneia. Desde o início das atividades, quando o negócio se resumia a apenas uma sala, a Escrevedeira já contabilizou a passagem de aproximadamente 1 500 alunos (uma média de 80 a 100 participantes nas cerca de oito oficinas mensais).

Noemi diz que os participantes das oficinas são uma ótima influência para o seu aprimoramento como escritora:

“Eu tenho o privilégio de ter alunos que escrevem muito bem, então aprendo muito com a escrita deles, com a preparação de aula, a correção dos textos. Acabo prestando muito mais atenção aos detalhes”

Muitos deles já publicaram e alguns, inclusive, conquistaram prêmios. É o caso de Maria Fernanda Elias Maglio, autora de Enfim, Imperatriz (Editora Patuá), que levou o Prêmio Jabuti em 2018 na categoria “Contos”. Segundo Noemi, boa parte dos contos que compõem o livro foi escrita durante as oficinas.

“Tem muitos outros alunos para citar, como o Flavio Cafiero [autor de Espera passar o avião e que acabou se tornando professor da Escrevedeira], a Carla Kinzo e a Ana Estaregui, por exemplo. E agora, daqui a uns meses, vários serão publicados.”

A EXPANSÃO DA ESCREVEDEIRA: DE UM CÔMODO À CASA INTEIRA

“Escrevedeira” não é uma palavra inventada. A explicação, curiosa, consta no site: trata-se de “um pássaro comum a algumas regiões de Portugal e seu nome deriva do fato de seu piado se assemelhar ao som de uma máquina de escrever”. Daí também o logo da escola, uma ave batucando as teclas com o bico.

Noemi conta que antes da Escrevedeira, quando ainda lecionava na Casa do Saber, recebia muitos pedidos dos alunos para continuar com os encontros depois que o curso acabava.

“Eu tinha um grupo particular de alunos e realizava as oficinas nas casas deles. Mas começou a ficar um pouco desconfortável, então resolvi alugar uma sala em um sobrado onde já funcionava um atelier de pintura, na parte de cima, e uma oficina de roupa, embaixo.”

Mesmo com um espaço reduzido, a procura pelos cursos da Escrevedeira era grande.

Clube de leitura da Escrevedeira, realizado todo o segundo sábado do mês. No encontro mais recente, a obra em debate foi Marrom e Amarelo, de Paulo Scott.

“Em 2016, estava com três grupos funcionando nessa sala e alguns professores começaram a pedir se eles poderiam dar aulas ali também. Teve um encontro de canções do Chico Buarque, outro de literatura russa, e percebi que aquilo estava dando certo”, diz.

Ela prossegue: “Eu desejava ampliar a oferta de cursos, mas não dava porque todas as salas estavam alugadas”.

Até que, há um ano e meio, a oficina de roupa, instalada no andar debaixo, desocupou.

“Reformamos essa parte da casa para que se tornasse uma sala grande, bonita, aconchegante, com muitos livros. E inauguramos oficialmente a Escrevedeira com cursos do escritor português (nascido em Angola) Gonçalo M. Tavares e uma grade mensal com vários professores, como Fabrício Corsaletti e Angélica Freitas”, lembra Noemi, que investiu, junto com os sócios, 30 mil reais na repaginação da casa.

Logo depois, a pessoa que tinha o atelier de pintura também resolveu sair do imóvel, que passou a ser todo ocupado pela escola. Além das três salas de aula, a Escrevedeira abre sua cozinha, o jardim e uma biblioteca circulante para que os alunos se sintam, de fato, em casa. A escritora afirma:

“A gente tem uma proposta diferente. Por ser uma casa, não temos utensílios de plástico. As pessoas tomam café, comem biscoito e depois lavam a louça. Nosso desejo é que os alunos sintam que fazem parte da escola. Não são só frequentadores, mas integrantes de uma comunidade”

Além do mix de programação gratuita e cursos com preços mais acessíveis, se comparados com o que é ofertado no mercado, Noemi afirma que a participação nas redes sociais ajudou a atrair o público. “Fomos aprendendo a usar o Instagram, fazer posts com ilustrações bonitas e humoradas, e não só vender nossos cursos. Temos 16 300 seguidores.” Os professores foram gostando de dar aula no local e a grade aumentou.

“Hoje, a gente tem oficinas práticas de todos os gêneros literários e cursos temáticos sobre escritores nacionais, como Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, e internacionais, como James Joyce, Samuel Beckett, Dostoievski e Philip Roth.”

TER UM NEGÓCIO LITERÁRIO EXIGE MAIS DO QUE CONHECIMENTO DE LIVROS E AUTORES

Para dar conta do recado, Noemi se dedica em tempo integral à Escrevedeira. Além de preparar suas aulas, ela é responsável pela curadoria de todos os outros cursos.

Enquanto isso, João cuida da parte de divulgação, organizando a newsletter e os posts nas redes sociais (função dividida com Bernardo) e Luciana fica a cargo das funções mais administrativas, como o financeiro e a documentação. A recepção, contato com os alunos e coordenação da casa é tarefa de Moneia. Noemi conta o que os sócios fizeram para garantir a saúde da operação desde os primeiros dias:

“Tivemos uma preocupação muito grande em equalizar os custos e a receita. Passamos por dois meses de encontros com uma especialista que nos ensinou a montar um plano de negócios para que conseguíssemos equilibrar as nossas contas”

Depois de se acostumarem com as questões mais burocráticas, tudo fluiu melhor. Mas a escritora-empreendedora está sempre de olho nessa questão. “Toda hora, a gente tem que analisar quantos alunos são necessários para pagar as nossas despesas.” A Escrevedeira fechou o ano passado com faturamento de 350 mil reais.

E se manter um negócio já é complicado em condições normais de temperatura e pressão, em meio a uma pandemia o desafio fica ainda maior. Os aprendizados também.

O CORNAVÍRUS ADIOU VIAGENS LITERÁRIAS, MAS ANTECIPOU A CRIAÇÃO DE CURSOS ONLINE

Os cursos da casa por si só já despertam bastante atenção dos interessados em literatura. Mas a Escrevedeira quis pensar num formato diferente e, há um ano, resolveu oferecer também viagens literárias. As duas expedições foram feitas em janeiro de 2019 e 2020 para Cordisburgo (MG), terra natal de Guimarães Rosa, e Morro da Garça, onde se passa a novela “O recado do morro”, publicada em Corpo de baile.

Em 2019 e de novo 2020, a Escrevedeira organizou expedições literárias para Codisburgo e Morro da Garça (MG), num roteiro temático de Guimarães Rosa.

“Nessas viagens, a gente faz várias atividades. Eu dou aulas sobre o conto e a cidade se organiza para oferecer algumas atrações típicas, como Folia de Reis, cantoria dos trabalhadores da lavoura e contato com benzedeiras que ensinam como usar ervas para curar doenças. É super divertido e instrutivo ao mesmo tempo”, diz Noemi.

A ideia era realizar ainda este ano uma rota literária para Curitiba, com o apoio da escritora local Luci Collin. Outro passeio seria uma caminhada pela Rua Augusta, no centro de São Paulo, para visitar endereços frequentados pelo artista de rua Ricardo Correa da Silva, o “Fofão da Augusta”, num trajeto guiado pelo jornalista Chico Felitti, autor do livro-reportagem Ricardo e Vânia (Todavia), que conta a história de “Fofão”. Por causa do coronavírus, as duas atividades foram canceladas.

Agora, o foco da Escrevedeira é colocar no ar uma plataforma de cursos online entre maio e junho. Os planos eram anteriores à crise da Covid-19, mas o timing parece perfeito. Para isso, o site está sendo reformulado de modo a tornar as compras mais intuitivas, facilitar o pagamento por cartão de crédito e a emissão de nota fiscal automaticamente.

Com a necessidade de manter o distanciamento social, cada professor já está ministrando as aulas de sua própria casa, utilizando a ferramenta de sua preferência para a transmissão, como Skype e Zoom. Os frequentadores da escola parecem ter se adaptado bem à ideia.

Para Noemi, a dinâmica das suas aulas está funcionando da mesma maneira:

“Não mudou muita coisa em relação ao presencial. As pessoas têm que fazer uma leitura de uma semana para a outra. O aluno manda o que escreveu por WhatsApp para o resto da sala e a gente lê e comenta. Cada um, quando quer falar, pega o seu microfone e os outros desligam. É quase uma sensação presencial, porque a gente ouve e vê os alunos”

Períodos de reclusão forçada podem atrapalhar o foco e a concentração. A produtividade dos alunos, no entanto, segue inabalada, garante Noemi, que vem registrando um diário do confinamento (e compartilha alguns trechos no Instagram).

“Eu estou escrevendo bastante nesse período, e amigos meus também. Meus alunos, pelo que vejo, estão lendo muito e os textos que eles mandam estão muito bons, embora sempre com uma temática bem negativa… O que predomina é a angustia.”

Autora um relato sobre a cegueira da sociedade diante da barbárie (O que os cegos estão sonhando?, elaborado a partir do diário de sua mãe, Lili Jaffe, que foi prisioneira em Auschwitz), Noemi acredita que, neste momento difícil, “os cegos estão impedidos de sonhar”. Apesar do tom pessimista, ela crê que a literatura ajuda a seguir em frente:

“A leitura e a escrita são terapêuticas”, afirma. “Ler sobre a vida de outra pessoa nos torna mais tolerantes, mais justos, mais democráticos, menos preconceituosos. Pelo contato com as lembranças e traumas alheios, repensamos nossas vidas e caminhos. Ao escrever, então, nem se fala! Sei que quem gosta de literatura nesse momento de solidão está se sentindo muito menos só.”

DRAFT CARD

Draft Card Logo
  • Projeto: Escrevedeira
  • O que faz: Escola de cursos de escrita e literatura
  • Sócio(s): Noemi Jaffe, João Bandeira e Luciana Gerbovic
  • Funcionários: 2
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: 2016
  • Investimento inicial: R$ 30 mil
  • Faturamento: R$ 350 mil (em 2019)
  • Contato: [email protected]
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