Arqueologia literária: como um casal fundou uma editora para resgatar e publicar livros que caíram no esquecimento

Leonardo Neiva - 7 maio 2024
Roberto Borges (à esq.) e Régis Mikail, sócios da Ercolano.
Leonardo Neiva - 7 maio 2024
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Ao longo da história da literatura, são tantos os livros publicados que, inevitavelmente, o próprio tempo se encarrega de fazer uma seleção rigorosa na hora de montar a estante de clássicos eternos.

Com isso, obras de alta qualidade ou que tiveram relevância num certo período acabam ficando esquecidas, seja por tratarem de temas sensíveis, por mudanças de paradigma na sociedade ou porque outros trabalhos da mesma época conquistaram mais destaque.

O objetivo da jovem editora Ercolano é justamente trazer de volta ao público alguns desses livros que permanecem na obscuridade.

A inspiração para o nome veio da antiga cidade italiana (Herculano, em português) que, assim como a vizinha Pompeia, foi soterrada sob as cinzas do vulcão Vesúvio, no ano 79 da era cristã.

“A gente queria algum conceito ou história ligada a nós dois, com uma simbologia forte”, diz Roberto Borges, 45, cofundador. Foi lá em Herculano que ele pediu em casamento Régis Mikail, 41, seu sócio à  frente da editora. Os dois são casados há sete anos.

“Depois vimos que a questão do Vesúvio tinha tudo a ver com a ideia de trazer à tona obras esquecidas, fazer uma espécie de arqueologia desses livros — o conceito do que hoje é a Ercolano”

No site da editora, que completou um ano em abril, a proposta é resumida em letras garrafais: “Descobrir ou reencontrar publicações pouco conhecidas, injustamente esquecidas ou ainda não ouvidas”.

A TEMÁTICA LGBT ESTÁ PRESENTE, MAS NÃO É O FOCO DA EDITORA

Em abril de 2023, a Ercolano nascia com o lançamento de seu primeiro livro: A menina que não fui, do filósofo francês Han Ryner (1861-1938), com prefácio assinado por João Silvério Trevisan.

Precursora da literatura LGBTQIA+, a obra — até então inédita em português — narra a história de um homem gay numa sociedade em que a homossexualidade ainda era vista como doença, tendo que lidar com a hipocrisia de colegas que sentiam por ele tanto desprezo quanto atração.

O livro caiu por acaso nas mãos da dupla. Doutor em literatura francesa pela Universidade Paris-Sorbonne, além de escritor e tradutor, Régis tinha acabado de publicar um artigo centrado na obra. Roberto conta: “Li o que ele escreveu e falei: vamos publicar, não podemos desperdiçar esse conhecimento.

Apesar de A menina que não fui e algumas outras obras do catálogo abordarem temáticas LGBTQIA+ ou relacionadas a gênero e sexualidade, Roberto deixa claro que esse não é o foco da Ercolano.

“Por sermos [pessoas] LGBT, é natural trazer os temas e histórias que nos são caros. Mas não somos uma editora só ligada a isso. Mesmo sendo obras clássicas, a ideia é trazer sempre alguma atualidade para a mesa”

Outro título dentro dessa proposta é o pouco conhecido A revolta dos bichos, do russo Mykola Kostomárov, conto anterior ao consideravelmente mais famoso A revolução dos bichos, de George Orwell.

“O livro foi uma crítica ao comunismo, ao czarismo e acabou sendo proibido”, diz Régis. “Então traz temas muito amplos e permite várias leituras.”

A IDEIA DE EMPREENDER A ERCOLANO FLORESCEU EM MEIO À PANDEMIA

Profissional de publicidade e marketing, Roberto tem no currículo passagens por WarnerMedia e Mauricio de Sousa Produções.

No fim de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, ele decidiu deixar o cargo que ocupava, de gerente de comunicação no Theatro Municipal de São Paulo. Sua ideia era voltar a trabalhar mais diretamente com arte, tema cujo interesse compartilhava com o marido.

“A menina que não fui”, título de estreia da Ercolano.

Régis, por outro lado, estava prestes a lançar, em 2021, seu primeiro romance de ficção: Onofre (Deep, 2021), sobre um jovem solitário predestinado a realizar milagres.

Foi nesse hiato que a ideia para a Ercolano floresceu.

Roberto trazia a tiracolo um aprendizado sobre edição de livros depois de trabalhar com o volume de comemoração dos 50 anos do Balé da Cidade, além da vasta experiência com marketing e comunicação.

E Régis, com sua formação literária e a vontade de seguir carreira acadêmica, poderia atuar tanto na pesquisa para o catálogo da editora quanto na coordenação artí­stica, tradução e publicação dos títulos.

ESTRUTURA ENXUTA E CUIDADO COM A IDENTIDADE VISUAL

Com um investimento inicial dos próprios sócios (que preferem não divulgar o valor), o projeto começou a ser desenvolvido em 2022.

“Há dois anos nossa vida é testar fornecedor, gráfica, cores”, diz Roberto.

A estrutura é enxuta. Enquanto Roberto cuida da comunicação, Régis assumiu a parte de texto e conteúdo. Roberto explica:

“É ele quem conversa com revisores e preparadores de texto. E, na curadoria, a gente se divide. Alguns livros têm mais meu perfil; outros, o dele”

Fora isso, a dupla mantém uma prestadora de serviços que cuida da parte administrativa e financeira, além de freelancers para a área de comunicação, incluindo redes sociais.

A identidade visual das obras, com capas sempre em duas cores e ilustrações, foi desenvolvida pelo Estúdio Margem, com o qual Roberto trabalhou no livro do Balé da Cidade, lá no Theatro Municipal.

“Imaginei que conseguiriam trazer uma pegada clássica, com a cara da editora, e ao mesmo tempo contemporânea”

A ideia é trabalhar para que os livros da editora passem a ser reconhecidos pela capa em qualquer lugar.

A DRAMATURGIA É UMA DAS APOSTAS DO CATÁLOGO EM CRESCIMENTO

Segundo Roberto, o grande desafio atualmente é fazer uma curadoria de qualidade para buscar o equilíbrio, trazendo livros ao mesmo tempo inéditos no Brasil e relevantes para o público geral.

Como fisgar a atenção do leitor num mundo repleto de distrações é outro ponto de cuidado na seleção das obras. “Levo muito em consideração isso — o poder de concentração, de atenção sobre o livro”, diz Régis.

Se a Ercolano lançou quatro livros em 2023, neste ano o objetivo é mais que dobrar esse número, afirma Roberto:

“A gente tem o desafio de fazer dez lançamentos. Estamos empurrando um pouco a editora, testando a nossa estrutura e vendo o que consegue absorver, porque é importante para o negócio ter um catálogo robusto”

Neste ano, já saí­ram dois volumes da série Fantásticas — uma antologia de textos de autores oitocentistas, como Théophile Gautier (1811-1872) e Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895), com representações sobrenaturais femininas; e a série “Trilogia para a vida”, que abarca três musicais brasileiros sobre o impacto do vírus HIV no Brasil.

Esta segunda coleção traz os textos e as partituras dos respectivos espetáculos — Codinome Daniel; Brenda Lee e o palácio das princesas; e Lembro todo dia de você — e é hoje um dos destaques em vendas da Ercolano.

“Temos tido uma receptividade muito boa dos tí­tulos de dramaturgia”, diz Roberto. “É uma experiência estendida. A pessoa vai até o teatro e compra o livro ou, se já gosta do trabalho desenvolvido por esses dramaturgos, quer ler mais sobre o assunto.”

“O PASSADO NÃO TRAZ LIÇÕES, E SIM PAUTAS A SEREM DISCUTIDAS”

O plano da Ercolano é lançar um livro por mês até outubro. Entre as novidades previstas estão Lord Lyllian, do escritor francês Jacques d’Adelswärd-Fersen (1880-1923), que deve sair em junho; e as obras reunidas do autor goiano Hugo de Carvalho Ramos (1895-1921).

O primeiro, segundo os editores, caiu no ostracismo por tratar de temas espinhosos, como suicídio e a relação do protagonista adulto com adolescentes; já Ramos, embora faça parte do cânone da literatura goiana, teria tido parte de sua identidade ocultada por conta da homossexualidade.

Como as obras trazem termos e discussões antigas para os dias de hoje, além de temas tabu, os livros apresentam contextualizações para posicionar melhor o leitor. Outra barreira, diz Roberto, é o risco do leitor se desinteressar de antemão, achando que a leitura será “difí­cil” por se tratar de um livro antigo:

“A gente toma muito cuidado porque entende que tem que trazer, contextualizar e fazer o debate sobre essas questões. Sempre incluímos notas de rodapé quando o livro trata de uma questão da atualidade”

A ideia, explica ele, é levar as obras às mãos dos leitores de forma lúcida e não estereotipada, resgatando narrativas que foram propositalmente escanteadas em algum momento.

Régis reforça a importância de lidar com a história, que segue extremamente relevante para o presente. “O passado não traz lições, mas sim problemas, pautas a serem discutidas que podem ser muitas vezes problemáticas.”

SEPARAR O TRABALHO E A VIDA PESSOAL NEM SEMPRE É FÁCIL

Apesar dos eventuais arranca-rabos, que o casal admite que acontecem, Roberto diz que os dois funcionam de forma complementar no ambiente profissional. “A gente se divide muito nas tarefas, se ajuda.”

Saber separar as coisas nem sempre é tarefa fácil. Régis dá um exemplo:

“Se o escritório está aqui e a mesa de jantar, do lado, quando sai de um lugar para o outro você continua com a cabeça no trabalho. Aí chega de noite e a pessoa vai perguntar se mandou email ou fez aquela outra coisa”

Portanto, para evitar assuntos profissionais fora de hora, eles arranjaram recentemente um escritório para a Ercolano. (Até então, a editora funcionava em casa, na zona oeste de São Paulo.)

OS SÓCIOS AGORA BUSCAM APOIO E INVESTIMENTOS PARA CRESCER

Atualmente, uma das batalhas da editora é conseguir que esses livros de origens, vertentes e temas variados cheguem ao público-alvo mais adequado.

“Hoje tem desde clubes de leitura até compras governamentais, então o desafio é encontrar esse caminho entre o título e o público dele”, diz Roberto.

O editor crê que as pessoas nunca leram tanto quanto hoje — mas, por conta das redes sociais, acabaram se acostumando a textos curtos e simples.

“A gente precisa dizer: leiam coisas melhores, escrevam coisas melhores”

Além de ampliar o catálogo, a Ercolano busca suporte e investimentos para crescer de fato. Na tradução de A menina que não fui, por exemplo, feita pelo próprio Régis, os sócios tiveram apoio institucional do Consulado da França.

“Estamos vendo se conseguimos outros tipos de apoio, além de um investimento, que seria ideal para manter nosso trabalho com folga”, diz Roberto.

Independentemente disso, afirma, o que deve seguir guiando a editora é a crença inabalável no poder do livro.

“Abrimos uma editora nesse momento porque acreditamos. Vemos o livro como um ponto de partida. É por meio dele que a gente inicia um debate e consegue reunir as pessoas.”

DRAFT CARD

Draft Card Logo
  • Projeto: Ercolano
  • O que faz: Publica livros esquecidos ou apagados da memória literária no mundo
  • Sócio(s): Roberto Borges e Régis Mikail
  • Funcionários: 2
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: 2023
  • Contato: [email protected]
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