A Muda Mundo nasceu, morreu. Mas o fim de um negócio social não é o fim do mundo

Luana Dalmolin - 20 fev 2017Carol, Renato e Bruna dedicaram um ano de suas vidas à Muda Mundo. O negócio não prosperou, mas eles levam lições e novos planos adiante.
Carol, Renato e Bruna dedicaram um ano de suas vidas à Muda Mundo. O negócio não prosperou, mas eles levam lições e novos planos adiante.
Luana Dalmolin - 20 fev 2017
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Promover uma mudança de cultura. A Muda Mundo nasceu com uma promessa ousada, brilho no olho, teve uma vida curta e trouxe um montão de aprendizado para o trio de empreendedores Bruna Amancio, 29, Carolina Loiacono, 27, e Renato Lutiano, 35. O negócio social, que começou em 2015, se propunha a fazer a ponte entre empresas e refugiados e ajudá-los a estabelecer uma relação profissional bem-sucedida. Era um misto de consultoria e head hunter, com um olhar humanizado. Durou até meados de 2016.

Em sua existência, a empresa conseguiu concretizar três contratações de um banco de talentos de 15 refugiados, que foi construído ao longo de um ano. Os números em si não impressionam o mercado, mas os aprendizados que ficaram são inspiradores e renderam novos frutos. “Tenho certeza que ainda não caíram todas as fichas, há insights que estão por vir”, diz Carolina, e prossegue:

“Entendi que o social está em nós e não no negócio. Não é meu negócio que me define, mas sou quem defino meu negócio”

Criados em famílias de empreendedores, Carolina e Renato perceberam cedo que tinham essa vocação. Eles se conheceram em 2014 num curso livre de Design Thinking. Ambos andavam insatisfeitos com a vida corporativa e queriam atuar em algo que tivesse como propósito mudar o mundo, para melhor. Renato, formado em Administração e Comércio Exterior, naquela época tinha tinha uma empresa de transporte, mas queria algo além da independência financeira. Foi sua irmã, com quem já teve um negócio na área de educação, quem indicou o curso. “Cheguei com zero expectativa, fui assistir a uma aula aberta e encontrei muita gente bacana.” Gostou do papo e ficou.

E entre essa gente bacana conheceu Carolina, Relações Públicas que tinha acabado de entrar em um projeto na área de Pesquisa e Inovação na Klabin, onde trabalhou por cinco anos em áreas como Comunicação, Inteligência de Mercado, Planejamento Estratégico e RH. Ela estava pesquisando cursos de pós-graduação e achou o design thinking. Teoria aplicada na prática, pensar fora da caixa e técnicas de inovação lhe pareceu algo interessante a fazer, e ela optou por um curso livre, que seria a oportunidade de pôr a mão na massa. Foi quando conheceu Renato, atualmente seu sócio e companheiro de vida.

TUDO COMEÇOU QUANDO UM MUNDO NOVO SE ABRIU

Em quatro meses Carol e Renato viram um mundo se abrir, um modelo de pensamento centrado no ser humano, um divisor de águas. “Quando acabamos o curso, a gente tinha um mundo enorme pela frente, sem saber como agir e um incômodo ainda maior. Poucas pessoas entendiam aquela linguagem. Sentia como se não me encaixasse em lugar nenhum. Como fazer esta transição?”, conta ela.

Foi então que Carol, Renato e uma colega de curso, Bruna Amancio, 29, que na época era consultora de inovação na Nextel, resolveram partir para a ação. Se reuniram, no início de 2015, e bolaram o pré-projeto de uma consultoria focada em diagnosticar problemas e trazer soluções customizadas para empresas. O pontapé inicial era a Redspark, que estava fazendo uma transição de cultura organizacional e tinha um entrave: os funcionários estavam com dificuldades para se adaptar à nova realidade. Ao pesquisar cenários análogos, para endereçar aquele problema, o trio acabou esbarrando no que seria o mote da Muda Mundo: o universo dos refugiados (pessoas que, afinal, enfrentam mudanças de vida extremas).

Eles escolheram um evento promovido pela igreja católica, chamado Missão Paz, para um exercício de observação in loco. Ali, conheceram padre Paulo, que lhes falou a principal necessidade daquele grupo. “O que precisa mudar é uma mudança de cultura. Mudar o pensamento das pessoas que dizem ‘esse macaco veio roubar meu emprego'”, disse.

Aquilo os tocou. Dias depois, o trio assistiu a uma palestra do indiano Satirsh Kumar sobre a jornada da peregrinação. Ali, ouviram do ativista um pensamento inspirador: “Se eu chego como indiano, o cara do lado é paquistanês. Se eu chego como humano, o outro também é um humano”. Renato conta que teve um insight. “Se levamos este ensinamento para o contexto dos refugiados, talvez as pessoas deixem de pensar ‘esse macaco veio roubar meu emprego’ e passem a entender o outro como um colega de trabalho, um ser humano”.

ANTES DE TER UM NEGÓCIO, ELES TINHAM A VONTADE DE FAZER ALGO

Com algumas perguntas em mãos, sem saber bem o que conseguiriam tirar dali, os três partiram para uma entrevista com o refugiado haitiano Philipe, que encontraram perto da igreja. Ele estava em São Paulo há quase um ano, fazendo bicos, e disse a eles que gostaria de ter um emprego. “Pensei que no próximo fim de semana, eu voltaria ali com um brigadeiro e um abraço para ele”, conta Carol, sobre como achou que não teria o fazer de efetivo. Mas o rapaz tinha uma habilidade fora da curva com idiomas: falava quatro idiomas, entre português, francês e inglês. Com isso, ela teve a ideia de procurar vagas em hostels da cidade e as coisas começaram a fluir.

Renato acompanhou Philipe em uma primeira entrevista de emprego. “Parecia que estava com uma criança, tive que pegar ele pela mão, colocar no carro, fazer o meio de campo. Eles não estão prontos para se integrar, de cara”, conta. Philipe, por exemplo, desde que chegara à São Paulo nunca havia saído da região do Glicério e não tinha a menor ideia de como circular pela cidade.

Deste ponto em diante, perceberam que aquela pesquisa de trabalho tinha um potencial maior, e viria a se transformar na Muda Mundo. Ao buscar informações sobre a contratação de refugiados no país, eles constataram que não havia nada estruturado. Carol conta:

O mercado vê os refugiados como mão de obra barata e não como profissionais de verdade. Queríamos preencher esse gap que é, também, uma necessidade social”

Só aí eles entenderam, enfim, que a Muda Mundo deveria ser uma empresa de recrutamento e seleção. Para mostrar os diferenciais dos refugiados era preciso mostrar habilidades e competências que aquelas pessoas tinham adquirido em suas trajetórias de luta pela sobrevivência e adaptação a novos mundos. Daí, surgiu um modelo de currículo diferenciado, construído a várias mãos, com a participação dos próprios refugiados, a partir de entrevistas presenciais.

A Muda Mundo fazia recrutamento social: entrevistas presenciais e CV humanizado.

A Muda Mundo fazia recrutamento social: entrevistas presenciais e CV humanizado.

A Muda Mundo contou com a ajuda de uma headhunter e psicóloga (amiga da Bruna) para montar o roteiro de perguntas e testou o modelo de currículo com a equipe de recrutamento da Klabin, sua ex-empregadora. O aporte inicial para montar o negócio — de três mil reais — saiu do próprio bolso e foi usado na construção de um site e na logística de deslocamento da equipe. Para as entrevistas, eles conseguiram espaços emprestados, incluindo a escola de design thinking onde se conheceram.

Com o negócio já definido, eles participaram de alguns programas de aceleradoras, como a Artemísia, mas tiveram enorme dificuldade de emplacar algo junto a investidores. “Precisávamos de um aporte que nos ajudasse a humanizar de forma prática. Queríamos a escala, mas mantendo a essência. A operacionalização do currículo era lenta, encontrar os candidatos não era tarefa simples e as empresas não pareciam ver valor no negócio da Muda Mundo”, diz Carol. Ela e Bruna tinham deixado seus empregos para se dedicar à empresa (Renato ainda mantinha o trabalho em uma transportadora).

MAS SERÁ QUE O MUNDO QUER MUDAR?

“Quando você diz que está arrumando emprego para um refugiado, as pessoas encaram como uma ajuda e não como uma contratação profissional. A contrapartida financeira da Muda Mundo era mal vista pelas empresas”, prossegue ela.

Eles correram atrás de várias empresas, algumas delas globais, mas a porta não se abriu como imaginavam. Na visão deles, a rigidez das organizações e o preconceito, mesmo entre aquelas com políticas de inclusão e diversidade mais avançadas, foi um fator determinante, como conta Carol:

“O RH das empresas ainda opera em um formato antigo. Há mais recursos tecnológicos, mas o processo é o mesmo de 20 anos atrás”

Um dos momentos mais frustrantes, eles contam, foi quando um coworking  desistiu de um dos selecionados, após o processo de seleção já ter sido ter sido finalizado. A empresa chegou a receber o refugiado — mas mudou de ideia logo nos primeiros dias. “O feedback que recebemos foi desumano, nos assustou. Falaram do cheiro dele, que ele não sabia se comunicar, não olhava nos olhos das pessoas. Isso foi um choque, não esperávamos”, diz Carol.

Para eles, a falta de abertura de empregadores, somada à anterior, de investidores, foi um dos fatores que determinou o fim da empresa. “Nos parece que o grande entrave foi mesmo cultural, pois algumas das empresas demonstraram interesse em nosso método de recrutamento, seleção e no modelo de currículo que havíamos desenvolvido. Chegaram a nos procurar para entregar este produto, especificamente”, diz Renato. Ele conta que o trio chegou a repensar o modelo de negócio, de forma que cada currículo vendido para as empresas viabilizasse a confecção de um currículo para um refugiado. “Mas não quisemos levar isso adiante porque estaríamos segregando do mesmo jeito.”

PRÓS E CONTRAS ANTES DE DESISTIR DO NEGÓCIO

Mas eles nem sempre encontraram as portas fechadas. A Muda Mundo conseguiu emplacar a contratação de Alhaji, um refugiado muçulmano, na empresa de softwares Carambola, o que consideram ser seu único case de sucesso. Os sócios também buscaram outros caminhos para minimizar a dificuldade de encontrar candidatos. Um deles foi uma parceria com a Cáritas brasileira, uma rede voluntária que atua na defesa de direitos básicos ligada à igreja católica. Mas, as empresas interessadas teriam que se cadastrar pelo sistema da organização, o que tornaria o processo demorado.

Outra tentativa foi uma parceria com a Bibliaspa, um centro de pesquisa e cultura sobre povos árabes, africanos e sulamericanos. A ideia era treinar voluntários para ajudá los na confecção dos CVs. Chegaram a capacitar algumas pessoas, mas perceberam que não conseguiriam a agilidade que buscavam entre os voluntários. Renato conta dessa fase.

“Já estávamos com as energias baixas, com aquele sentimento de derrota, mas fui relutante em aceitar que o negócio tinha fracassado”

Ele diz, também, entender que faltou aos empreendedores um estudo de viabilidade econômica, com mais profundidade: “Tínhamos resistência de fazer um plano de negócios formal e pecamos nisso”.

“Senti na pele a dificuldade de criar um negócio social. Ser um empreendedor já é difícil porque você se questiona o tempo todo, é preciso ter muita resiliência, mas ser um empreendedor social é juntar todas essas dificuldades e repensar sistemas que já existem”, diz Renato. Eles contam, por exemplo, da dificuldade de encontrar um contador que entendesse o caráter do negócio: “Os entraves começam na abertura do negócio social. No Brasil, ou você é uma empresa com fins lucrativos, ou é uma ONG, ou uma Oscip. Não existe uma pessoa jurídica que responda à natureza de um negócio social, como já há nos Estados Unidos.”

Às vezes, nem mesmo as pessoas mais próximas são capazes de entender do que se trata o negócio. Carol se lembra de uma situação curiosa ao encontrar uma colega da Klabin para a qual tentou explicar, sem sucesso, que não tinha uma ONG. “Quando a gente sai da bolha, vê que poucas pessoas entendem essa linguagem. Nós acabamos frequentando os mesmos ambientes e não nos damos conta de que há um problema de comunicação a ser pensado”, diz.

ENFIM, ACEITAR O FIM E COLHER OS APRENDIZADOS

Apesar das frustrações com o fim do negócio, Carol e Renato perceberam uma demanda por consultoria e decidiram, desta vez apenas os dois, investir mais tempo em entender essa demanda das empresas, agora focados em micro e pequenos empreendedores da Zona Leste da capital paulista, área onde moram.

O aprendizado eles trouxeram da Muda Mundo. A premissa era: sair da bolha. O objetivo: potencializar a força motriz daquela região. A, assim, que nasceu a consultoria Manaia, da qual os dois são sócios fundadores. Na carteira já há cinco clientes, todos da ZL, alguns deles vindos de workshops que a dupla ministrou justamente para compartilhar um pouco de sua experiência como empreendedores. Ainda este ano eles vão ministrar um curso de Inovação e Criatividade em uma escola local, com a missão de ajudar outras pessoas a expandir seus horizontes. E assim, continuar na busca por curar outras dores, outros anseios. E com um plano de negócios.

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