Começou como um grupo de WhatsApp. Hoje, a Black Sisters in Law ajuda mulheres negras a praticar a advocacia com dignidade

Anna Oliveira - 17 jan 2024
Dione Assis, fundadora da Black Sisters in Law.
Anna Oliveira - 17 jan 2024
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Dos 171 nomes que já compuseram o Supremo Tribunal Federal (STF), só um era de uma pessoa negra: Joaquim Barbosa. Nenhuma mulher negra consta na lista.

 Considerando os cargos na magistratura, apenas 12,8% são ocupados por pretos e pardos, segundo pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E, no caso das mulheres negras, a representatividade é de 5%.

 A presença de advogados negros nos grandes escritórios de São Paulo equivale a 11%, de acordo com levantamento do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) feito em 2022. 

Todos estes números são baixos, mas, no que depender de Dione Assis, essas estatísticas devem mudar. Na verdade, já está mudando.

Motivada por promover a inclusão, a diversidade e a equidade de mulheres negras na área do Direito, a sócia da Galdino & Coelho Advogados fundou a Black Sisters in Law em junho de 2022. Trata-se de uma plataforma de solução ESG racial para o mercado jurídico, que já contabiliza quase 3 mil advogadas cadastradas.

Muito antes disso, no entanto, Dione já se preocupava em fortalecer a rede de profissionais negros, preferindo contratar pessoas com este perfil seja nas empresas nas quais trabalhou, seja em ocasiões da vida pessoal, como no seu casamento. 

“Meu casamento foi todo feito por afro empreendedores. Meus médicos são negros, todos os profissionais com os quais eu me relaciono são negros e, se eu não conheço algum de imediato, faço duas ou três ligações e alguém já me indica. Acho importante essa estratégia de black money, de reter o dinheiro de pessoas negras dentro da comunidade negra”

Claro, a jornada é longa e a equidade étnica-racial, infelizmente, está longe de ser alcançada no Brasil. Para mudar o cenário realmente, é necessário que o poder público se envolva, que as organizações estabeleçam metas e busquem com afinco a sua superação. Ou seja, esta é uma missão que, para ser concluída, demanda a união de diversas instâncias.

Em entrevista ao Draft, Dione compartilha sua visão sobre os caminhos para a promoção da equidade étnica-racial no Brasil, conta sua própria história como uma mulher negra dentro do campo do Direito, explica como nasceu e como funciona a rede Black Sisters in Law e comenta a falta de pessoas negras no judiciário brasileiro. Leia a seguir:

 

Como surgiu a ideia do projeto Black Sisters in Law?
Na verdade, ele não foi pensado, simplesmente aconteceu. Eu atuo em uma área bem específica, que é o Direito da Insolvência, e faço parte de uma rede de mulheres que trabalham nessa área. Anualmente, essa rede organiza um congresso e, em 2022, me convidaram para palestrar.

Na ocasião, as organizadoras me perguntaram se eu conhecia outras advogadas negras que pudessem palestrar, fui atrás e indiquei duas. Nós três criamos um grupo no WhatsApp para trocarmos informações e nos prepararmos para o congresso; eu comecei a mandar um monte de conteúdo como referência. 

Até que uma das advogadas pediu para que eu incluísse outra advogada negra no grupo que iria ajudá-la a preparar a palestra, assim, ficaria mais fácil acessar os conteúdos que eu estava compartilhando. Aos poucos, outras advogadas foram entrando no grupo e, quando entravam, pediam para incluir outras colegas. 

Foi assim que, o que começou com três advogadas negras, em poucos dias virou 50, em semanas já éramos 150 e hoje somamos quase 3 mil profissionais no Brasil e fora.

De 2022 para cá, o que mudou na Black Sisters in Law?
Quando ainda éramos um grupo no WhatsApp, comecei a perceber que muitas colegas estavam praticando uma advocacia muito precarizada, cobrando 20 reais para fazer uma audiência e coisas desse tipo. 

Várias não conseguiam subsistir da advocacia com exclusividade e precisavam buscar outras fontes de renda, vendiam bolo de pote, bijuteria, atuavam como babá no final de semana…

Não é que esses trabalhos não sejam dignos, a questão é que elas se formaram em Direito, queriam trabalhar na área, mas não conseguiam viver da profissão. Então, comecei a pensar que precisava encontrar uma forma de elas advogarem

Tive a ideia de falar com professores meus de faculdade que são donos de grandes escritórios de advocacia no Brasil, também conversei com algumas colegas de empresas nas quais tinha trabalhado dizendo que, se estivessem precisando de alguém, era só me falar que eu tinha várias indicações de advogadas negras. 

E, aí, as pessoas começaram a me procurar para pedir indicações e conversar sobre a Black Sisters, até que fui convidada a apresentar a iniciativa em um evento sobre políticas de diversidade e inclusão na advocacia. Naquele momento, o grupo tinha em torno de 600 advogadas de todo o Brasil.

Aquela foi a oportunidade de colocar a rede à disposição de escritórios, empresas e quem precisasse. Eu falei que a Black Sisters conseguia indicar profissionais de qualquer área do Direito e em qualquer lugar do Brasil. Foi assim que começamos a trazer projetos, a pensar em iniciativas e a plataforma de fato começou a operar. 

Como funciona a plataforma hoje?
Nosso propósito é conectar as colegas com oportunidades reais e dignas no mercado jurídico, permitindo que elas vivam da advocacia com dignidade e possam exercer a profissão que elas escolheram.

Para entrar na plataforma, a pessoa precisa cumprir com três critérios: ser mulher, ser negra e ser estudante ou bacharel em Direito ou advogada já atuando. 

Então, ela precisa preencher um formulário de ingresso com suas principais informações profissionais e acadêmicas. Com isso, conseguimos saber quais as principais áreas do Direito na qual ela atua, quais as principais comarcas, se ela fez especialização etc. 

Antes, ficava em uma planilha de Excel, mas agora conseguimos migrar e ter uma plataforma CRM na qual podemos realizar o cadastro. Fica mais fácil de fazer o filtro de acordo com o local onde a demanda precisa ser cumprida, o perfil da demanda… 

O sistema faz uma seleção e entramos em contato com a colega. Já temos um time para ajudar em todo esse processo, além de fazer a comunicação de todas as nossas iniciativas, pensar em projetos internos e acompanhar o desenvolvimento das nossas colegas.

É esse time que busca escritórios e empresas? Ou eles vêm até vocês?
Um pouco dos dois. Nós buscamos muito, identificamos oportunidades no mercado e chamamos a organização que tem a demanda para conversar. Mas o que acontece hoje é que somos muito indicadas pelos nossos parceiros, pessoas e instituições que já trabalharam conosco e nos indicam para conhecidos, fazem recomendações…

Também acontece de me conhecerem pelo LinkedIn ou pelo Instagram e, por meio do meu perfil, ficarem sabendo da Black Sisters in Law. Aí, se interessam e querem saber como podem trabalhar conosco.

Então, as oportunidades acabam surgindo de várias formas e eu digo que não tem preço saber que estamos conseguindo canalizar oportunidade, gerar conexões que se dão para fora, com o mercado, mas também conexões internas. É comum as colegas fazerem contratações ali dentro, entre elas 

Elas também se ajudam muito, independentemente das contratações. Teve um caso de uma colega que é criminalista e recebeu o primeiro cliente dela pela rede. Ela tinha que ir à delegacia, estava supernervosa e compartilhou isso no grupo. Daí, veio outra colega mais experiente, criminalista também, e se ofereceu para acompanhá-la. 

É essa segurança, essa proteção que a rede vem promovendo para que essas mulheres possam exercer a advocacia.

E no seu caso? Como foi a sua vivência como mulher negra no campo do Direito?
Aos 13 anos, decidi que queria cursar Direito. Na verdade, eu falava que, um dia, seria juíza. Isso veio de uma experiência que eu tive com o meu padrasto que trabalhava no Tribunal de Justiça e me levou nas férias para trabalhar com ele. 

Naquele dia, teve uma sessão de júri e eu pude participar. Assisti a tudo e o juiz foi muito carinhoso comigo: antes de começar a sessão, me mostrou tudo, explicou o que ia acontecer ali e eu fiquei encantada por aquela atmosfera. 

Lembro que perguntei para meu padrasto o que eu precisava fazer para me tornar juíza e ele falou que eu tinha que cursar Direito. Aí, então, virou meu mantra: vou fazer Direito porque eu vou ser juíza

Eu repetia isso o tempo todo até que, na época do meu vestibular, conheci uma ONG com o propósito de colocar jovens brancos e negros carentes nas universidades. Ela faz isso por meio de uma rede de pré-vestibular comunitário.

Eu ingressei lá e, no ano do meu vestibular, a ONG celebrou uma parceria com a FGV, que passaria a conceder bolsa integral para qualquer aluno que passasse no vestibular dela. Considerando o selo FGV, para mim não tinha dúvida de que seria uma grande faculdade.

Então, prestei o vestibular, passei e consegui a bolsa integral. E, aí, eu cursei a primeira turma de Direito da FGV. Depois, também fiz o meu mestrado lá e, hoje, estou acabando o meu doutorado na Universidade Federal Fluminense. 

Pelo que vi no seu currículo, você sempre manteve um pé na academia e um pé no mercado de trabalho, certo?
Lecionar sempre fez parte da minha vida. Inclusive, quando eu tinha 6 anos de idade, a minha brincadeira favorita era escolinha! Eu brincava com as minhas primas mais novas, que eram as minhas alunas e eu continuei com gosto. 

Tanto que, no meu Segundo Grau — o Ensino Médio de hoje —, fiz o curso de formação de professores porque, se eu não conseguisse uma bolsa para a faculdade, poderia pelo menos dar aula para Educação Infantil.

Durante a faculdade, eu fui monitora de várias disciplinas, dava aula para minha turma para preparar as pessoas para a prova. Com isso, já saí da faculdade com propostas para dar aula no IURIS – Instituto de Investigação Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi assim que comecei a dar aula de Direito em diferentes instituições. 

Naquele mesmo ano em que recebi a proposta de lecionar, fui convidada para assumir como gerente jurídica na Natrio. Então, além da sala de aula, eu fui gerir pessoas como minha primeira experiência profissional. Foi bacana, aprendi muito!

Dessa minha experiência na primeira empresa, na qual fiquei por quase seis anos, fui convidada para ir para o Grupo Guanabara. Aí, já com seis anos de experiência enquanto gestora, foi mais fácil assumir a posição, no caso como diretoria jurídica 

Fiquei cerca de quatro anos e, depois, saí para trabalhar em escritórios de advocacia. Hoje, sou sócia na Galdino & Coelho Advogados, onde atuo na área de insolvência, reestruturação e recuperação de crédito.

Considerando todas essas experiências profissionais, como era a questão da equidade étnica-racial nestes ambientes? O tema era trabalhado nesses locais, por exemplo?
Ah, não! Na minha época, isso não era objeto de debate. Hoje, essa pauta está quente por conta dos impactos do ESG, então a advocacia não poderia ficar de fora. 

Foi aí que começaram a promover medidas para melhorar a diversidade no ambiente dos escritórios e outros do meio jurídico. Mas na minha época, não. 

Eu sempre fui envolvida com a pauta racial, mas isso por conta da minha educação. Aprendi muita coisa por conta e, por isso, sempre tive um olhar racial sobre as coisas

Quando entrei no mercado, entendi que eu poderia promover a diversidade nos espaços em que eu estava por meio da contratação porque sabia que, se não fosse eu ali, provavelmente as pessoas negras não aumentariam em número mais rapidamente. 

Então, eu fiz isso na época e, depois, eu passei a ter essa prática de consumo dentro da comunidade negra. 

E como essa ação afirmativa era vista dentro dos ambientes nos quais você trabalhou? Pergunto isso porque, no Brasil, algumas empresas já tiveram que lidar com haters ao lançarem programas de trainee e outras iniciativas voltadas para profissionais negros.
Eu trabalhei em empresas muito focadas no resultado e, como gestora, tinha muita liberdade. Então, eles não se preocupavam como eu fazia a contratação, desde que, no relatório no final do mês, o departamento jurídico apresentasse bons resultados. 

Mas teve uma situação interessante em uma empresa. Certa vez, um diretor de outra área entrou no na sala do jurídico e olhou com uma expressão de surpresa quando viu a quantidade de pessoas negras que tinha ali

Se você fosse em qualquer outra sala de qualquer outro segmento da empresa, não encontraria pessoas negras, mas, no jurídico, tinha várias porque havia uma pessoa negra na posição de liderança com esse olhar racializado — eu, no caso. 

Para além da contratação e de iniciativas como a da Black Sisters in Law, o que mais poderia ajudar no alcance da equidade racial, na sua opinião?
Acho que a primeira coisa que precisa ser feita em qualquer empresa que pretende adotar medidas de diversidade e de inclusão é um compromisso público, sabe? Para que, de fato, você seja cobrado. 

Quando você torna esse compromisso público, você passa a ser cobrado e você vai ter que resolver, você vai ter que entregar.

Outro ponto que também é importante nesse processo é a definição de metas. Não se pode desenhar um projeto, uma ação sem saber onde se pretende chegar. A empresa quer ter mais diversidade e inclusão? Está bem, mas quanto? Quantas pessoas ela pretende contratar? Para quais cargos? 

Sempre faço questão de pontuar que as empresas, os escritórios de advocacia têm métricas para tudo! Sabem exatamente o quanto vão crescer em três anos, em cinco anos; sabem exatamente quanto vão lucrar nesse período… 

Se eles têm métrica para tudo, não é possível que não consigam estabelecer métricas para definir o quanto querem ser diversos em cinco anos, né? Eu acho que é super razoável e super é factível fazer isso, só falta a vontade

É a intencionalidade de querer promover a mudança, de estabelecer essas metas e determinar que, por exemplo, até 2025, 30% do meu quadro de líderes será ocupado por pessoas negras. E, a partir disso, adotar as medidas que irão levar a empresa por esse caminho. 

Costumo dizer para as empresas com as quais converso que não tem problema nenhum se você disser que hoje não é diverso. Ninguém era até muito pouco tempo. O problema é não pensar em nada para mudar essa realidade. O problema é fazer uma palestra sobre diversidade na sua empresa e pronto, achar que promoveu a diversidade de fato.

Isso vale para a Justiça brasileira, onde a presença de pessoas negras, principalmente mulheres, é ínfima…
Acho interessante que o Brasil é um país no qual a população, de forma geral, entende que racismo é crime, mas até hoje não tem nenhum réu cumprindo a pena em decorrência do crime de racismo. É uma conta que não fecha, né? 

Porque sabemos que existe racismo e sabemos que racismo é crime, como é, então, que não tem ninguém cumprindo pena de racismo? 

Eu atribuo parte disso à ausência de pessoas negras no Sistema de Justiça, porque você só vai entender a demanda quando você está envolvido com ela. Se você não entende aquela causa, se não entende aquela circunstância, é difícil que você saiba julgar

Eu gosto sempre de citar aquele exemplo em que uma advogada pediu para adiar o julgamento porque estava grávida e, aí, a relatora no caso iria deferir o pedido porque, na verdade, não só a advogada estava grávida, como já estava no hospital para dar à luz. Só que o desembargador disse que gravidez não era doença. 

Então, assim, não fosse aquela mulher desembargadora, muito provavelmente o pedido da advogada teria sido negado. 

Entende a importância da diversidade nos espaços? No poder judiciário não pode ser diferente

Enquanto não tivermos magistrado negros que sabem e entendem da questão racial, não teremos julgamentos atendendo pelo crime de racismo. Precisamos de juizes negros e juízas negras que entendam as demandas, que entendam as causas raciais.

 

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