“Como intérprete de Libras, meu corpo preto é meu instrumento de trabalho”: a InterPrêta combate o racismo e leva inclusão a pessoas surdas

Dani Rosolen - 19 fev 2024
Jéssica Cardoso, fundadora da InterPrêta.
Dani Rosolen - 19 fev 2024
COMPARTILHE

“Quando uma mulher negra se movimenta, toda a sociedade se movimenta com ela.”

A frase de Angela Davis, pronunciada pela ativista política e filósofa estadunidense em 2017 em uma conferência da qual participou na Bahia, foi citada por Jéssica Cardoso na conversa com o Draft e serve bem para ilustrar o propósito de sua empresa, a InterPrêta.

O negócio social de comunicação em Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) impulsiona a acessibilidade, diversidade e inclusão de pessoas surdas ao mesmo tempo em que ajuda a combater o racismo estrutural, pois é gerenciado e operado 100% por mulheres negras. Sobre o recorte de raça, a empreendedora explica:

“Mulheres já têm geralmente as portas fechadas. Para a mulher preta, elas estão cadeadas. Por isso, quando a empresa contrata a InterPrêta, não está levando só a acessibilidade, mas fomentando a possibilidade de mulheres pretas terem uma renda de qualidade e serem valorizadas”

A InterPrêta oferece três tipos de serviço: interpretação simultânea, tradução (inclusão da janela do vídeo em Libras em materiais previamente gravados), consultorias de acessibilidade e capacitações de lideranças (para estarem preparadas ao atender stakeholders da comunidade surda).

ELA ATUAVA COMO ASSISTENTE SOCIAL QUANDO DESPERTOU PARA A NECESSIDADE DE SABER LIBRAS

Moradora do quilombo da Aldeia, em Garopaba (SC), a 90 quilômetros de Florianópolis, Jéssica se formou em serviço social e trabalhava nesta área no setor de habitação do município, com famílias em situação de vulnerabilidade. Foi em um dos atendimentos que a questão das Libras surgiu em sua vida:

“Durante um cadastro, vi que na família tinha uma criança com deficiência, mas os pais não sabiam o que era. Cogitei que ela pudesse ser surda.”

Jéssica fez o encaminhamento para um médico e o diagnóstico foi constatado.

“Essa situação me fez pensar que eu, como profissional dessa área, precisava aprender Libras porque esse seria o primeiro caso de muitas famílias que poderia auxiliar e [ajudar a] garantir direitos”

A assistente social chegou a fazer cursos básicos até descobrir que a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) abriria uma graduação em Letras-Libras. Ela passou na prova e começou sua segunda faculdade.

“Aos poucos, fui deixando o serviço social de lado para trabalhar como tradutora de Libras. Meu primeiro emprego nessa área foi em salas de aula de escolas do estado”, conta.

EM SUA JORNADA COMO FREELANCER, JÉSSICA SOFREU COM CASOS DE RACISMO E COM A FALTA DE TEMPO PARA MATERNAR

Depois, Jéssica começou a fazer frilas em eventos de forma autônoma, mas a entrada neste mercado não foi tão simples.

“Encontrei muitas barreiras como mulher preta para receber um valor adequado, percebi que ganhava menos do que as intérpretes brancas.” A necessidade, no entanto, fez com que aceitasse a situação.

“Em 2012, perdi a minha mãe e precisei recalcular a rota da minha vida. Eu precisava trabalhar, [então] mesmo sabendo que os valores não eram adequados, me calava”

Quatro anos depois, Jéssica teve sua primeira filha, Lara, fase em que vivia a situação mais crítica de sua carreira.

“Não conseguia maternar, porque trabalhava de 12 a 14 horas como intérprete freelancer para uma vereadora, não tinha nenhum benefício e ganhava mil reais por mês.” Ela resolveu, então, dar um basta e buscar outros frilas com melhores oportunidades.

“Mas sempre vivenciava a questão do preconceito. Eu usava black power naquela época e alguns contratantes perguntavam se eu não iria arrumar o cabelo para trabalhar”, lembra.

“E uma coisa que eu sempre digo é que, como intérprete de Libras, meu corpo preto é meu próprio instrumento de trabalho, então todos esses atravessamentos foram se acumulando.”

O NASCIMENTO DA SEGUNDA FILHA E A PANDEMIA IMPULSIONARAM A TRAJETÓRIA EMPREENDEDORA, ACELERADA PELA B2MAMY

Em junho 2021, nascia Zahara, a segunda filha de Jéssica.

Foi o pontapé que ela precisava para empreender.

“Pensei: pôxa, agora tenho duas meninas pretas que daqui a pouco vão estar no meu lugar no mercado de trabalho. Além disso, preciso e quero maternar, estar presente”

Somado a isso, o trabalho remoto, na pandemia, havia aumentado a procura por acessibilidade no ambiente online e ela achou que aquele era o momento ideal para montar uma empresa que atendesse essa demanda, mas com um diferencial: uma equipe formada apenas por intérpretes negras.

Durante suas pesquisas sobre o ecossistema empreendedor, ela chegou ao nome de Dani Junco, fundadora da aceleradora B2Mamy, que em trocas de mensagem com Jéssica pelas redes sociais disse ver potencial no projeto.

E foi assim que em fevereiro de 2022, Jéssica se inscreveu para o programa de aceleração.

“Mesmo tendo passado um processo seletivo, eu tinha vários traumas por causa do racismo, de pensar se aquele lugar não era para mim. Mas na primeira aula, a abertura foi apresentada pela Xan Ravelli. Quando vi uma mulher preta trazendo a trajetória dela, entendi que aquilo poderia ser mais do que um sonho”

A InterPrêta foi uma das finalistas do processo de aceleração, mas não chegou a receber a premiação financeira que o programa proporciona.

“Ganhei tantas outras possibilidades que não conseguiria calcular em dinheiro. Foi tão grandioso todo o conhecimento e conexões que tive. Além disso, os nossos clientes começaram a vir dali.”

AS INTÉRPRETES E TRADUTORAS RECEBEM DE ACORDO COM A TABELA DA FEDERAÇÃO

Assim que começou a mapear o mercado para formar uma base de mulheres negras intérpretes de Libras, Jéssica chegou a 20 interessadas.

“Hoje, são mais de 40 mulheres pretas cadastradas, que ano passado faturaram juntas 100 mil reais. Elas não têm vínculo empregatício com a InterPrêta, chamamos cada um para trabalhos conforme demanda.”

De acordo com a empreendedora, não são todas que têm a graduação em Libras, mas cursos pontuais de formação.

“Elas são fluentes na língua, mas não têm o certificado. Aí eu trago outro debate muito importante: não é que essas mulheres não quiseram acessar a universidade, porque a gente sabe o quanto é importante o diploma, mas o sistema não deixa a maioria de nós acessar — ou você trabalha ou você estuda”

As colaboradoras recebem por trabalho com base no valor estipulado pela Federação Brasileira das Associações dos Profissionais Tradutores e Intérpretes e Guia-Intérpretes de Língua de Sinais (Febrapils).

Intérprete da InterPrêta trabalhando em evento.

De acordo com Jéssica, no caso da tradução é pago a elas 60 reais por minuto e de 180 a 210 reais pela hora de interpretação. As mulheres nunca trabalham sozinhas, são no mínimo duas para até quatro horas de trabalho. O que fica com a InterPrêta é o valor das horas agregadas, como custos variáveis e fixos, a demanda de trabalho do processo de vendas e a coordenação de equipe.

DE CONSULTORIAS DE RECRUTAMENTO À GLOBO: OS CLIENTES DA INTERPRÊTA

Entre os clientes que a InterPrêta atende desde o início da operação estão a B2Mamy e a Matchbox, consultoria especializada em programas de recrutamento. Para esta última empresa, ela explica a demanda:

“A gente auxilia a empresa no processo seletivo. Desde o momento da inscrição, os conteúdos para os candidatos até o feedback, tudo é feito com tradução em Libras. E no momento da entrevista, a gente participa como intérprete fazendo a voz da pessoa surda” 

Já para a Globo, a InterPrêta ficou encarregada de promover a acessibilidade em Libras nas últimas edições do Negritudes e do Prêmio Multishow. “É um trabalho que traz muitos resultados por ser uma transmissão nacional.”

No pilar das consultorias, Jéssica cita como cliente novamente a Matchbox. “Geralmente, a gente leva uma pessoa surda para esses encontros, porque mesmo sendo fluentes na língua, somos ouvintes e não vivenciamos na pele o dia a dia delas.”

APESAR DE ACESSIBILIDADE NO AMBIENTE CORPORATIVO TER AUMENTADO, AINDA HÁ UM LONGO CAMINHO A PERCORRER

Desde a pandemia, Jéssica diz que houve sim uma maior conscientização nas empresas sobre acessibilidade e inclusão; no entanto, ela considera que isso ainda não é o suficiente

“A gente ainda está caminhando; falta um processo de conscientização de que a acessibilidade não é um custo, é um direito garantido por lei. Enquanto essa questão for vista como custo, será sempre deixada para outro momento”

Para ela, as lideranças deveriam refletir com mais profundidade sobre o assunto na hora de analisar e formar seus times:

“Mais de 10 milhões de pessoas são surdas no Brasil. Se não tem ninguém dentro da sua empresa com surdez, será que não há interesse em fazer parte do seu negócio? Ou é por que a organização não demonstra ser acessível?”

HOJE O SONHO É TER O PRÓPRIO ESTÚDIO

Assim como a conscientização é um desafio para a InterPrêta, que aos pouco vai sendo superado, a questão técnica também já foi um obstáculo.

“Quando começamos, a gente precisava equipar minimamente as mulheres com um celular ou computador com câmera de boa qualidade.”

Time de intérpretes no Museu do Amanhã.

A própria empreendedora começou a trabalhar usando um celular, o que não é o ideal, segundo ela, e seu único investimento no negócio, na época, foi um tripé de madeira feito pelo companheiro. Por conta desse limitador, no início da operação a empreendedora teve que reduzir a equipe a apenas mulheres que tinham o material necessário.

Em 2023, no entanto, Marco Lagoa, da Witec, fez a doação de 20 computadores com webcam para a InterPrêta, ajudando a ampliar o número de colaboradoras disponíveis para os jobs.

Agora, o sonho de Jéssica é conseguir um espaço físico, um estúdio em São Paulo, onde está a maioria dos clientes.

“A gente sabe que o home office é muito desafiador, principalmente para quem materna. Como trabalhamos com vídeos, o estúdio é algo fundamental e uma das principais metas para este ano.”

COMPARTILHE

Confira Também: