A pandemia e um ataque hacker derrubaram a CVC, mas a gigante do turismo acelerou sua digitalização e vem dando a volta por cima

Marcela Marcos - 15 set 2022
Tulio Oliveira, diretor de Tecnologia da CVC.
Marcela Marcos - 15 set 2022
COMPARTILHE

É difícil imaginar uma empresa com nome consolidado no mercado que, em tempos de intensa transformação digital, ainda atue de maneira bem-sucedida utilizando interfaces com mais de 30 anos de existência. 

No caso da CVC, para que uma transação fosse concluída, o vendedor precisava navegar por três sistemas diferentes, que se sobrepõem, mas que foram construídos na década de 1990. 

Mesmo assim, a companhia se consolidou como um dos maiores grupos de viagens da América Latina, mas, neste segundo semestre, passada a fase mais crítica da pandemia de Covid-19, os processos ficarão automatizados. Isso porque o grupo está empenhado em uma estratégia de transformação digital “que o consumidor final vai começar a perceber só agora, após mais de dois anos de trabalho”, como explica Túlio Oliveira, diretor de Tecnologia da CVC. 

Em outras palavras, trata-se de uma transição para virar turistech (quando os produtos e serviços oferecidos são turísticos, mas a base é essencialmente digital).

Em entrevista ao Draft, o executivo falou sobre a atualização dos sistemas de vendas e o novo design system (definido como uma nova biblioteca de componentes e padrões visuais que chega para trazer maior navegabilidade ao viajante). 

O diretor da companhia conhecida pelas (mais de 1 100) franquias com fachada amarela também antecipou planos como um programa de fidelidade – que vai integrar pontos acumulados em serviços de empresas parceiras – e comentou os aprendizados após um ataque hacker sofrido em outubro de 2021, que deixou a CVC inoperante por mais de dez dias. 

“A gente saiu em busca de ferramentas para nos auxiliar no processo de criar uma cultura de segurança espalhada dentro da organização”, diz Túlio. Leia a seguir a entrevista completa:

 

Em qual momento a CVC entendeu que seria importante inovar por meio da tecnologia? E qual é a diferença entre o que já vinha sendo feito e a transição para ser turistech?
Uma série de fatores convergiram em 2020, com nossa nova jornada de transformação digital, coincidentemente junto à pandemia. A CVC passou por alguns problemas contábeis antes desta data. Na mesma época teve a queda [nos negócios] da Avianca, óleo [nas praias] no Nordeste, que é a região onde temos um portfólio muito dedicado… 

No meio desse terremoto todo, quando a pandemia chegou, como a CVC é uma Corporation, ela se reorganizou societariamente. Alguns fundos que tinham participações importantes saíram, outros entraram e fizeram basicamente troca de conselho executivo inteiro 

O presidente foi o Leonel [Andrade], que chegou em março, abril de 2020. Nesse momento foi que iniciamos a nossa nova jornada de transformação digital. Hoje somos um conglomerado de mais de dez empresas em três países e muito disso se deve ao fundo americano Carlyle.

Mais do que expandir em número de lojas, a CVC quer fortalecer a integração entre canais digitais de venda (foto: Rony Bonani).

Por causa dessa estratégia, crescemos em volume de bookings [reservas], mas com pouca integração de sistemas. Então, no começo de 2020, a gente enxergou que era uma potência no turismo, mas que cada empresa tinha processos e sistemas isolados. 

A gente se inspira, por exemplo, no Itaú, que fez um processo de dentro para fora. O Bradesco fez o next, o Santander criou o Way… mas, no caso do Itaú, não se ouve muito falar, externamente, da transformação digital, porém, o banco, assim como estamos fazendo internamente, mudou o backoffice, sistema de precificação, que são coisas que não aparecem.

Não aparecem para o consumidor final, é isso?
Exatamente. Demora um pouco mais para aparecer, porque o volume e a quantidade de implantações são muito grandes e sequenciais. No nosso caso, o consumidor final vai começar a perceber só agora, após mais de dois anos de trabalho. A maior transformação que a gente tem é o Projeto Mapa, que é a troca dos sistemas de vendas das franquias.

A CVC Corp hoje tem inúmeras empresas, tem B2B, B2C, com mais de 1 100 franquias que são nosso carro-chefe e que têm três sistemas de venda que se sobrepõem uns aos outros, mas que foram construídos na década de 1990. Para o vendedor concluir uma venda, é preciso navegar por esses três sistemas. Essas plataformas foram muito importantes para a CVC e responsáveis pelo sucesso que tivemos até agora, porém, o que nos trouxe até aqui não nos levará adiante. 

No final de setembro, vamos trocar todas as plataformas de vendas, elimina três sistemas e coloca no ar o Projeto Mapa, com flexibilidade na área de pagamentos e com viés de User Experience que será muito mais intuitivo, para que o vendedor consiga ser produtivo ao vender uma viagem para o consumidor final 

Tenho, hoje, um time com mais de 60 designers, que redesenharam toda a experiência do cliente, desde o cadastro até o clique final. Hoje, só para este projeto, são 80 squads [equipes], com cerca de 500 pessoas trabalhando.

Como funciona a parceria da CVC com startups, como as do ramo financeiro? Quantas e quais são as parceiras?
Recentemente colocamos no ar o projeto Marketplace de Crédito. Nosso grade foco é o público de classe média, que costuma pagar as viagens em parcelas. Boa parte desses clientes está fazendo uma viagem pela primeira vez na vida, nunca tinha voado de avião e ficado em um hotel. 

Para atender a este público, um grande banco parceiro ajudava a financiar esse tipo de viagem. Mas, agora, colocamos no ar algo disruptivo no mercado, que é um leilão. 

Construímos uma plataforma para que todo banco ou fintech que tiver interesse em financiar qualquer um dos 12 milhões de clientes que embarcamos por ano vai poder se conectar conosco, obedecendo às regras da Lei Geral de Proteção de Dados 

Já tem uma fintech parceira, mas agora a gente vai abrir a plataforma para todos. A ideia é que eles se esforcem para oferecer a melhor taxa ao consumidor final.

Os serviços de companhias de viagem e turismo são especialmente pautados pela experiência do cliente, em momentos para os quais geralmente há um grande planejamento. Como a CVC se diferencia da concorrência, no sentido de proporcionar a experiência ideal ao viajante?
A plataforma de leilão é um grande diferencial, mas a força da CVC é descomunal. Temos um poder de negociação muito grande com nossos fornecedores, sejam eles companhias aéreas, hotelaria, marítimos… isso faz com que a CVC consiga proporcionar uma proposta de valor incomparável. 

Temos algumas centenas de milhares de assentos em voos fretados com as principais companhias aéreas desenhando um produto específico que só a CVC tem 

Por exemplo: eu compro assento para inúmeros voos no ano e pergunto à hotelaria que preço é possível fazer se eu colocar 100 mil pessoas daqui a três meses. É claro que costuma ser um preço bom. Depois disso, a gente desenha nossos pacotes. 

E, agora, com o novo sistema, teremos mais possibilidades de conexão com a área de hotéis.

Com a pandemia, teve alteração no perfil do público?
Não. Temos atualmente quase 30 milhões de clientes contatáveis em nosso cadastro, da classe A à D. É um espectro muito grande, mas que não mudou muito. 

Nossa estratégia é a massificação. Somos uma das empresas responsáveis por ter feito com que [a cidade baiana de] Porto Seguro, por exemplo, se tornasse um grande polo do turismo. Isso só foi possível porque temos volume, não somos focados em um nicho específico.

Como a inovação em tecnologia poderia ampliar a recorrência de clientes e atrair novos? Há métricas para medir a recorrência, aliás?
Sim, mas ainda é bastante incipiente. Quando o Leonel chegou, a gente começou a notar que não tinha uma cultura de dados correta. A gente embarcava 12 milhões de clientes por ano, mas a quantidade de cadastros era baixa perto desse número. 

Conforme começamos a melhorar nossa cultura de dados e investir em tecnologia, houve um salto de 5 milhões de clientes cadastrados para 30 milhões. 

Como está a rede de franquias e de fornecedores atualmente? Há perspectiva de expansão?
A gente tem cerca de 1 100 franquias. 

A CVC Corp é muito conhecida pelas lojinhas amarelas que se vê nos shoppings, mas aproximadamente 45% do nosso faturamento vem do B2B, de quase 10 mil agentes de turismo que compram os produtos da CVC

Temos, sim, uma estratégia de expansão, mas que é pontual e cirúrgica, a partir de uma análise geográfica do mercado, com uma expansão mais localizada. Não é uma estratégia do tipo “lançar mais 100 lojas por mês”.

Qual foi o aprendizado do ciberataque que a CVC sofreu em 2021 e o que está sendo feito para se prevenir de ataques hackers desde então?
Eu emagreci três quilos (risos). Dormia uma hora por dia. Tinha acabado de chegar ao setor de tecnologia quando sofremos o ataque. Foi naturalmente um momento muito difícil, porque ficamos inoperantes. Levamos doze dias para recuperar o sistema de vendas. 

O que eu enxergo é que, depois deste evento, a empresa passou a dar ainda mais importância à segurança da informação. A gente saiu em busca de ferramentas para nos auxiliar nesse processo de criar uma cultura de segurança espalhada dentro da organização 

Hoje estamos muito mais preparados que em meados de 2021, mas continuamos suscetíveis, como todas as grandes empresas. Enquanto estamos aqui correndo contra o tempo, tem muitos fraudadores criando os business cases deles, pensando em quanto tempo precisam se dedicar à determinada atividade de fraude para ter um retorno. Enfim… é uma indústria bilionária.

Como ficou a receita da companhia em 2021? Quais foram os entraves para o crescimento e, por outro lado, o que deu muito certo?
Segundo o relatório de resultados financeiros do segundo trimestre [de 2022], houve crescimento de 124% em reservas confirmadas na comparação com o mesmo período do ano passado, alcançando o montante de 3,8 bilhões de reais. 

O resultado foi impulsionado pela recuperação das reservas confirmadas para destinos internacionais no Brasil, que obtiveram um aumento expressivo de 315% frente ao segundo trimestre de 2021. 

Para o setor de turismo, a pandemia acabou. O único segmento que ainda não voltou 100% é o corporativo, porque as empresas passaram a segurar as viagens, mas é um segmento que vai se reinventar 

Dificilmente, hoje, você vai ter uma pessoa viajando para outro estado para fazer uma reunião e voltando para casa no mesmo dia. Provavelmente a conversa será feito pelo Zoom. Por outro lado, os encontros para eventos maiores vão continuar acontecendo. 

De modo geral, o segundo trimestre deste ano talvez tenha sido nosso primeiro trimestre “limpo” da pandemia, até porque tem o que eu chamo de “ressaca da não-viagem”, que é o fato de as pessoas estarem se mobilizando para fazer viagens maiores, até mesmo para viajar parentes e amigos dos quais ficaram distantes.

Como funciona o Chuí, o novo design system da CVC, anunciado como uma ferramenta para facilitar o acesso do viajante e do público interno das marcas do grupo às informações disponibilizadas nos canais de vocês?
A ideia foi do nosso diretor [de UX e Design Ops], Eduardo Lauria. A gente tinha uma área muito pequena de UX e, há um ano, quando trocamos o manager, ele trouxe outra visão para a área, no sentido de padronizar o design dos nossos componentes para interagir com o cliente. 

O desenvolvimento do Chuí faz com que as nossas áreas de desenvolvimento andem muito mais rápido e sejam mais eficientes na nossa visão interna. Já na visão externa, o retorno mais importante é a omnicanalidade 

A força das franquias é uma forte barreira para nossos competidores. O Chuí ajuda a fazer com que o cliente consiga navegar pelo nosso site, chegando ao produto que ele quer e que eventualmente não conseguiu concluir a venda na hora, na loja. Ele poderá concluir o pagamento pelo nosso aplicativo, por exemplo. 

É uma venda que começou no site, foi intermediada pela franquia — e será concluída no app.

Há outros planos para ainda este ano?
Sim! Vamos lançar um novo programa de fidelidade, em que o cliente pode acumular pontos nas compras conosco, mas também usar pontos que ele já tem no cartão de crédito, por exemplo, em descontos para comprar outros pacotes. Por outro lado, quem tiver pontos acumulados com a CVC poderá usar em qualquer um dos nossos parceiros, como a Gol, American Airlines, Qatar, ou no hotel Marriott, no MSC da Marítima… 

Este é mais um exemplo de transformação que começamos a implementar há dois anos e que o cliente ainda não viu, mas tem muita gente trabalhando para colocar no ar o mais breve possível.




COMPARTILHE

Confira Também: