De Machado de Assis a Annie Ernaux, elas levam literatura mesmo a quem não enxerga: conheça a Supersônica, editora de audiolivros

Karina Sérgio Gomes - 13 set 2023
As fundadoras da Supersônica (da esquerda para a direita): Maria Carvalhosa, Beatriz Bracher, Daniela Thomas e Mariana Beltrão.
Karina Sérgio Gomes - 13 set 2023
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Aos 13 anos, Maria Stockler Carvalhosa recebeu uma notícia cruel: ela não recuperaria mais a visão. 

O diagnóstico veio após um erro médico durante o procedimento para tratar sua hidrocefalia, o acúmulo anormal de um fluido (o líquido cefalorraquidiano, ou LCR) nos ventrículos cerebrais, pressionando o nervo óptico. 

Depois de sete meses de tratamento e sete cirurgias, um dos médicos chamou a jovem para passear no corredor e lhe deu a Bíblia em CD, conta Maria, agora com 21 anos, em entrevista ao Draft:

“Eu era uma criança que gostava de ler tudo. Tinha passado por uma tragédia, e por isso deveria ler a Bíblia? Senti muita raiva”

Sem vontade de ler a Bíblia, Maria recorreu à ajuda de amigos dos pais para dar conta das leituras obrigatórias da escola. Eles liam para ela – pessoalmente, ou enviando áudios por WhatsApp – obras como Metamorfose, de Franz Kafka, e A hora da estrela, de Clarice Lispector. 

Aqueles arquivos enviados por WhatsApp foram os primeiros “audiolivros” que a jovem conheceu. Hoje, Maria é uma das sócias-fundadoras da Supersônica, editora que publica obras clássicas e contemporâneas lidas por atores e atrizes do Brasil.

A TECNOLOGIA ASSISTIVA DO CELULAR PERMITIA A MARIA LER E-BOOKS, MAS TODOS OS LIVROS TINHAM “VOZ DE ROBÔ”

A deficiência visual não impediu Maria de optar pela faculdade de letras. “Aprendi que, sendo uma pessoa cega, precisava construir quem eu queria ser”, diz. “E esse caminho passava pela linguagem.”

Assim, em 2020, ela começou a cursar letras na PUC do Rio de Janeiro:

“Tive que aprender a falar e a me posicionar. Quando você é uma pessoa com deficiência, existe um silêncio muito grande e muita falta de compreensão. Por isso, a questão da linguagem é essencial”

Para dar conta do conteúdo durante a faculdade, Maria usa a tecnologia assistiva do celular para ler e-books em aplicativos de leitura – técnica que aprendeu durante o ensino médio.

“Foi um avanço enorme, porque comecei a ter autonomia nas leituras”, diz. “E não precisava esperar a produção de audiolivros, que estava muito devagar – e nem toda produção era boa.” O lado negativo da tecnologia de acessibilidade, diz, era que todos os livros tinham a mesma voz “de robô”.

Em 2021, a jovem recebeu um convite do editor Paulo Werneck, da revista Quatro Cinco Um, para escrever um artigo sobre a sua experiência com audiolivros. “Eu gelei. Pensei: ferrou, eu não gosto de audiolivros”, lembra. Em breve, porém, ela mudaria de opinião:

“Como os que eu tinha ouvido, nas minhas primeiras experiências, eram ruins, eu parei de procurar… Não conhecia muita coisa. Mas o convite me fez pesquisar sobre a história e ouvir audiolivros atuais – e gostei muito!”

Maria foi descobrindo a riqueza dos audiolivros bem produzidos. Uma das obras que chamaram sua atenção foi Só garotos (“Just Kids”, no original em inglês), da cantora e escritora americana Patti Smith, narrada por ela mesma na versão da Audible.

“Eu já tinha tentado ler esse livro várias vezes, mas nunca consegui entrar muito na leitura. Ouvir na voz dela foi uma experiência que abriu caminhos.”

CONSUMIDORA VORAZ DE AUDIOLIVROS, A CINEASTA E DIRETORA TEATRAL DANIELA THOMAS TEVE A IDEIA DE UNIR AS SÓCIAS

Um desses caminhos levou até a artista multimídia, cineasta, cenógrafa, diretora de teatro e dramaturga Daniela Thomas.

Consumidora voraz de audiolivros internacionais, Daniela leu o artigo de Maria e teve uma ideia: por que não começar a produzir obras nesse formato aqui no Brasil? Graças a sua experiência profissional, ela já tinha acesso a um vasto elenco de atores e atrizes que poderiam dar voz aos textos. 

Daniela então procurou então Maria, que sabia o que um bom audiolivro precisa ter e por sua vez estava fora do mercado de trabalho (assim como sete em cada dez pessoas com deficiência, segundo dados do IBGE de 2022). Maria afirma:

“Eu queria muito trabalhar, mas tinha medo de não conseguir me inserir no mercado… Quando a Daniela me chamou, foi uma oportunidade à qual me agarrei” 

Outras duas mulheres embarcaram na empreitada: a escritora e editora Beatriz Bracher, fundadora da Editora 34 e da Chão Editora; e a produtora Mariana Beltrão, com quem Daniela havia trabalhado na abertura dos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.

As quatro dividem entre si o fluxo de trabalho. Maria e Beatriz ficam responsáveis pela curadoria do catálogo da Supersônica. Daniela cuida da diretoria artística, acompanhando a gravação dos audiolivros; e Mariana é diretora executiva.

SER UM APLICATIVO DE AUDIOLIVROS OU UMA EDITORA: EIS A QUESTÃO

A primeira dúvida com que o quarteto de sócias se deparou foi se elas deveriam criar um aplicativo de audiolivros ou ser uma editora de audiolivros. 

Durante o desenvolvimento do negócio, foi ficando cada vez mais claro que criar um aplicativo, além de ser uma ideia mais cara, limitava as suas ambições. Mariana, a diretora executiva da Supersônica, levanta a questão:

“Por que impor ao nosso público baixar mais um aplicativo para ter acesso aos nossos produtos?”

De fato, o que não falta são aplicativos para consumidores de audiolivros: Audible, Storytel, Scribd, Google Play, Kobo, Tocalivros, Ubook, Skeelo (que foi pauta aqui no Draft)… 

Ao se posicionar como editora, elas poderiam escolher que audiolivros gostariam de produzir, decidir por quais plataformas disponibilizar a obra – e contar com a audiência desses aplicativos para chegar a mais pessoas. 

DE MACHADO DE ASSIS A ANNIE ERNAUX: A PRIMEIRA LEVA DE TÍTULOS DA SUPERSÔNICA

Antes de lançar os primeiros livros, as quatro sócias bateram na porta de todas as principais editoras. 

“Íamos apresentar a Supersônica e contar sobre a intenção de realizar audiolivros bem acabados e com bons atores dando voz a esses livros”, diz Mariana. “Foi muito legal, porque muitas delas abraçaram o projeto.”

Segundo a diretora executiva, o processo de produção do audiolivro não é muito diferente de um livro de papel ou digital: 

“Escolhemos o título e vamos atrás dos direitos autorais. Conversamos com a editora que publica o autor aqui no Brasil. Se é uma obra que está fora de catálogo, corremos atrás do autor ou da família que detém os direitos. Fazemos uma apresentação sobre a Supersônica e negociamos”

E assim, em agosto de 2023, a Supersônica lançou seus quatro primeiros títulos. Dois deles são livros mais antigos: O Amor em 5 Contos, uma seleção de contos de Machado de Assis (na voz de Sandra Corveloni); e O Livro do Xadrez, célebre novela do austríaco Stefan Zweig (na voz de Guilherme Weber);

As outras duas obras são de autoras contemporâneas. De Marilene Felinto, a Supersônica lançou As mulheres de Tijucopapo (na voz de Roberta Estrela D’Alva); e da francesa Annie Ernaux, ganhadora do Nobel de Literatura de 2022, O acontecimento (lido por Isabel Teixeira, que no ano passado brilhou como Maria Bruaca no remake de Pantanal).

CADA LIVRO É UM LIVRO: NÃO EXISTE FÓRMULA PRONTA PARA RECRIAR O TEXTO EM OUTRO FORMATO

Um livro dentro da sua cabeça: esse é o slogan da Supersônica. E quem teve a experiência de ouvir um audiolivro da editora percebe, de fato, como é diferente de ouvir um podcast, por exemplo.

Ao fechar os olhos, é como se o livro estivesse sendo lido por você mesmo(a), em voz alta, dentro da sua cabeça… A diferença, claro, é que a voz não é sua, e sim de um dos artistas convidados por Daniela para traduzir o texto em versão sonora.

No dia da gravação, Daniela acompanha o ator ou a atriz, dirigindo a narração. Juntos, em alguns ensaios, eles vão descobrindo qual é a voz do livro. Maria afirma:

“É um trabalho de tradução ou transcriação, como diria Haroldo de Campos. Você pega um formato e o transforma de maneira criativa em outro. Não pode ser exagerado nem criar ruído na obra original”

A sócia da Supersônica ressalta que não existe uma fórmula pronta. “Estamos aprendendo fazendo. Pensamos individualmente em cada livro e como ele merece ser tratado. Ainda não usamos efeitos sonoros, mas se em algum texto sentirmos que pede, podemos avaliar.”

No Brasil, não há números oficiais sobre o mercado de audiolivros, mas a startup alemã Bookwire (responsável pela distribuição dos lançamentos da Supersônica) registrou 74% de crescimento no país entre 2018 e 2019. Nos EUA, segundo relatório da APA (Associação Americana de Editores), a venda de audiolivros saltou 37% entre 2017 e 2018.

Segundo Mariana, a diretora-executiva, produzir um audiolivro muitas vezes não está na lista de prioridades das editoras porque não é barato — só o aluguel de um estúdio pode custar até 500 reais a hora. 

O CUIDADO COM AS PESSOAS DE BAIXA VISÃO SE ESTENDE AO VISUAL E À NAVEGABILIDADE DO SITE

Para criar o site, a Supersônica chamou a designer Fernanda Hoffmann Lobato, que implementou padrões web e articulou iniciativas federais de acessibilidade digital, e a psicóloga Lêda Lucia Spelta, deficiente visual, coordenadora da elaboração da Grafia Braille para Informática unificada para países de língua portuguesa.

Quem cuidou da identidade visual da marca, do site e das capas dos audiolivros foi o estúdio Radiográfico. Os designers trabalharam com cores contrastantes e recursos gráficos para tornar tudo atraente e acessível a diversos níveis de deficiência visual. Segundo Maria:

“Há uma preocupação a respeito de pessoas com baixa visão. É essencial que a navegabilidade disponibilize uma linguagem que permita que o público deficiente visual não perca as informações principais”

A previsão da Supersônica é lançar 20 audiolivros em um ano. O Cemitério dos Vivos, de Lima Barreto, acaba de ser lançado na voz de Laís Lacôrte. Para os próximos meses estão previstos Os Mortos, de James Joyce; Coração das Trevas, de Joseph Conrad; e Escute as Feras, de Nastassja Martin.  

Os fãs de Annie Ernaux, a vencedora do Nobel que virou fenômeno editorial (e esteve na Flip, em Paraty, em 2022), também podem aguardar ansiosamente. Em parceria com a Fósforo, que publica sua obra no Brasil, a Supersônica lançará mais quatro títulos da autora francesa – todos na voz da atriz Isabel Teixeira.

DRAFT CARD

Draft Card Logo
  • Projeto: Supersônica
  • O que faz: Editora de audiolivros
  • Sócio(s): Maria Stockler Carvalhosa, Daniela Thomas, Beatriz Bracher e Mariana Beltrão
  • Funcionários: 10 (mais as sócias)
  • Sede: Rio de Janeiro
  • Início das atividades: 2023
  • Contato: [email protected]
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