“As empresas conscientes dão mais retorno no longo prazo ao acionista, fidelizam mais o seu cliente e são mais resilientes”

Verônica Fraidenraich - 2 jan 2020 Verônica Fraidenraich - 2 jan 2020
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Com quatro décadas de experiência no varejo e passagens por Grupo Pão de Açúcar, Dicico e Carrefour, entre outras, Hugo Bethlem é hoje o diretor-geral do Instituto Capitalismo Consciente Brasil, uma organização sem fins lucrativos que funciona como chapter (espécie de filial) do americano Conscious Capitalism.  

Fundada em 2013, a unidade brasileira passou a aceitar associados em 2018 e, no ano seguinte, deu um salto no número de filiadas, de cinco empresas para 66. Elas não são certificadas, mas ganham o selo de apoio ao movimento. 

Essa expansão aconteceu, segundo Hugo, após o Congresso Latino-Americano de Capitalismo Consciente, realizado em março de 2019, em São Paulo, que deu visibilidade ao assunto e divulgou insights de uma pesquisa sobre empresas humanizadas que o instituto apoiou. 

Capitalismo Consciente foi tema de um Verbete Draft em 2016. A seguir, Hugo explica a gênese da ideia, conta um pouco sobre sua própria trajetória profissional e sobre como se aproximou do movimento, revela resultados da pesquisa e dá exemplos de empresas brasileiras que vivem o conceito na prática.

 

Você tem mais de 40 anos de experiência como executivo do varejo. Que aprendizados recolheu nessa trajetória?
A vida foi uma sequência de oportunidades no varejo brasileiro, em empresas que me deram a chance de ser um intraempreendedor, de inovar quando o conceito de inovação era incipiente, não havia startups… 

Eu diria que um dos maiores aprendizados que a gente tem ao longo da carreira de varejo é o de conhecer pessoas. O varejo é uma operação B2C, em que você precisa capturar a fidelidade do cliente — e isso é feito quando há engajamento do colaborador. 

Muitos dizem que no varejo o stakeholder mais importante é o cliente, porque é o único, depois do acionista, que põe dinheiro no negócio. Eu costumo dizer: “trate o cliente como rei, porque é ele que paga suas contas — mas trate o colaborador como cliente, porque é ele que trata o seu cliente”

Com o tempo, entendi que um negócio consiste em gerir e liderar pessoas – e não em gerir a máquina, o ativo, as caixas operadoras, a mercadoria. É verdade que o cliente vai lá para tudo isso, mas se ele não encontrar um acolhimento, dificilmente volta. E o varejo vive do repeat business [consumidor recorrente], não vive de cliente esporádico, que é muito mais caro do que o cliente já existente. 

Como o tema “capitalismo consciente” despertou em você?
Eu era vice-presidente do Grupo Pão de Açúcar, em 2005, mais ou menos, e o Abílio Diniz [então no comando do GPA] conheceu — por intermédio do Jorge Paulo Lemann — um guru em administração chamado Jim Collins, que escreveu talvez o livro de business mais vendido do mundo, Good to Great (2001), aqui chamado de Empresas Feitas para Vencer [o livro fala das empresas que conseguem dar um salto e passar de boas a excelentes]. 

O Abílio estava entusiasmado com as teorias do Collins. Ele [Abílio] sempre foi um obcecado pela excelência e achava que ao GPA não bastava ser “good”, tinha que ser “great”. Nos deu uma cópia do livro e nos incutiu esse desafio. E indiscutivelmente, o GPA teve, entre 2005 e 2012, seus melhores anos.

Em 2008, veio a crise do subprime, puxada pelo Lehman Brothers, e duas empresas “great”, a Circuit City e Fannie May, quebraram. Nós nos questionamos como empresas “great” quebram — e começamos a buscar uma resposta

Encontramos outro autor, na época não tão famoso quanto Jim Collins — um indiano, chamado Raj Sisodia [professor emérito da escola de negócios Babson College, em Massachusetts], que junto com outros dois autores havia escrito o livro Firms of Endearment (2007), cuja primeira versão no Brasil foi traduzida como Os Segredos das Empresas Mais Queridas

Em vez de 11, o livro fala de 18 empresas — e nenhuma quebrou durante a crise. Coincidentemente, ficamos sabendo que John Mackey, CEO e cofundador do Whole Foods Market, ao descobrir sua empresa citada no livro, se encantou com os conceitos e convidou Raj para juntos cofundarem o movimento Capitalismo Consciente, em 2008 [o instituto surgiria em 2010].

Qual é a história por trás do livro Firms of Endearment?
O livro foi deflagrado por uma pesquisa acadêmica que o Raj iniciou em 2003. Incomodado com o quanto as empresas gastavam em publicidade, mas não conseguiam reter o seu público, ele decidiu investigar aquelas que não investiam em anúncios mas tinham um índice de retenção violento. E que em vez do share of wallet [o quanto um consumidor gasta, em média, em uma categoria específica de determinada marca], capturam o share of heart [ou seja, criam um laço afetivo com o consumidor]. 

Entre as empresas citadas no estudo estão Whole Foods Market, Southwest Airlines, Patagonia, Amazon, Google, Harley-Davidson, The Container Store. Durante a crise do subprime, essas empresas não apenas não quebraram, como seus resultados foram extremamente alavancados. 

Em 2011, os mesmos autores refizeram a pesquisa para saber por que essas empresas tinham tido resultados tão bons. E o que eles identificaram é que essas 18 apresentavam quatro fatores em comum – propósito maior, líder consciente, orientação para stakeholders e cultura consciente

Até então, não havia se falado em capitalismo consciente, mas em humanização, longevidade e relações cuidar e amar. Ao fundarem o movimento, John Mackey e Raj decidiram escrever um novo livro que acabou virando a bíblia do assunto, Capitalismo Consciente – Como libertar o Espírito Heroico dos Negócios, de 2013, usando esses quatro pilares da teoria e aplicando na prática no próprio Whole Foods.

Afinal, o que é o capitalismo consciente?
O capitalismo consciente é acima de tudo capitalista. Mas a empresa tem que ter um propósito maior que a busca do lucro, senão, ela morre. Ela deve responder a três perguntas básicas. Por que existo? Que diferença eu faço para a sociedade? E  quem sentiria falta se amanhã eu desaparecesse? 

Também é importante ter um líder humano, consciente, que defenda o propósito da empresa, cuide do planeta e das pessoas que trabalham com ele. Não preciso ser especialista de varejo para ser CEO do varejo. Eu preciso entender de pessoas.

É possível ter um negócio lucrativo e ao mesmo tempo acabar com a pobreza no mundo?
Vamos voltar um pouco atrás. Em 1800, éramos apenas 1 bilhão de habitantes no planeta — e 90% viviam abaixo da linha da miséria. Hoje, somos mais de 7 bilhões e menos de 10% vivem abaixo da linha da miséria. Quem fez isso foi o capitalismo. 

O capitalismo é responsável, sim, por atender a ODS nº 1, que é reduzir a pobreza extrema ou acabar com miséria. Só através da geração de trabalho, emprego e impostos é que se vai acabar com isso. Não são as ONGs nem as empresas de impacto — elas fazem um bom trabalho, mas fazem muito pouco.

As praticantes do capitalismo consciente não geram lucro, geram riqueza. Lucro é a parcela que cabe ao acionista. O capitalismo consciente gera riqueza para todos os stakeholders e é mais nobre por diminuir o acúmulo de renda e distribuí-la melhor

Uma empresa consciente diminui a diferença entre o funcionário mais baixo e o mais alto, não empobrecendo o mais alto, mas enriquecendo o mais baixo — e não é socialismo. 

Como se deu a criação do Instituto Capitalismo Consciente no Brasil?
Em 2011, a gente convidou o Raj para vir ao Brasil. Em 2012, toda a diretoria executiva do GPA viajou para Boston, onde ia ter um evento do capitalismo consciente, e conseguimos fazer com que o Abílio desse uma palestra lá. A partir daí, conheci John Mackey e nos aproximamos mais do Raj. 

No fim de 2012, Abílio tomou a decisão de vender a sua ação de controle para golden share [ações de classe especial] do GPA para o Casino e eu decidi sair da companhia. Em 2013, conheci um grupo de empresários, executivos e empreendedores brasileiros que estavam formando a RLC, Rede de Líderes Conscientes, cujo principal expoente, André Kaufman, foi o primeiro presidente do instituto Capitalismo Consciente no Brasil. 

Nos juntamos e fomos até o CEO Summit, evento do instituto americano de Capitalismo Consciente, que acontece todo ano em Austin [capital do Texas], terra do Whole Foods. Lá, falamos com John, Raj e Doug Rausch, então CEO da entidade, e dissemos que queríamos fundar o chapter brasileiro – na época só existia um chapter internacional, na Austrália. Eles aceitaram, deram as regras e em outubro de 2013 registramos o Instituto Capitalismo Consciente Brasil.

Éramos 12 cofundadores. Todos incomodados com o jeito que os negócios estavam sendo conduzidos no Brasil e que achavam que podiam fazer algo para mudar isso.

Houve algum episódio que gerou um insight definitivo, para você?
As empresas conscientes dão mais retorno no longo prazo ao acionista, fidelizam mais o seu cliente e são mais resilientes. 

Esse foi o insight mais positivo que eu descobri ao me envolver com o tema. Quando entra uma crise e o nosso dinheiro encolhe, é natural que a gente prefira gastar em uma empresa em que acredite e ame

Eu percebi que as empresas que buscam o resultado de curto prazo, o lucro e acumulação a qualquer preço estavam fadadas a destruir as relações humanas. 

Qual é o papel do instituto hoje?
Fazemos um trabalho de “peregrinação”, “pregação”, em várias frentes. Organizamos eventos como o café da manhã bimestral, chamado Café Consciente, no restaurante Ráscal para divulgar o movimento. Tem também o Talk Consciente, no Unibes Cultural, em que convidamos especialistas para falar de temas como Educação e Formação Profissional, Equilíbrio Econômico, Social e Ambiental e Empresas Humanizadas no Brasil. 

Também dou palestras sobre o assunto em todo o Brasil, para universitários e empresários. Em breve, teremos podcasts semanais sobre o capitalismo consciente e vídeos no Youtube para difundir os quatro pilares do movimento. Além disso, já lançamos seis ou sete livros e vamos lançar mais dois – um deles baseado numa pesquisa das empresas humanizadas, que teria esse mesmo nome mas vamos mudar para Empreendedorismo Consciente. 

Esse estudo foi apoiado pelo instituto e realizado pela equipe do professor Pedro Paro, na USP São Carlos, para analisar as empresas humanizadas no Brasil, desmistificando [a ideia de] que “só gringo dá certo”. Segundo Raj, a pesquisa é mais profunda que a original, que ele fez nos Estados Unidos.

E sobre o que fala essa pesquisa?
O estudo analisou 1 115 empresas brasileiras que correspondem a 50% do PIB nacional. Ouvimos 900 mil consumidores, 136 mil colaboradores, 2 436 stakeholders diferentes e no fim pré-selecionamos 50 organizações que têm práticas humanizadas. 

Dessas, 22 se dispuseram a colaborar com a pesquisa e foram, portanto, sobre as quais aprofundamos a análise que mostra que a defesa de diferentes causas, a ética nos negócios, as práticas de sustentabilidade e o bem-estar social de funcionários proporciona maior lucratividade para as empresas. 

Um dos resultados preliminares revela que o desempenho financeiro das empresas humanizadas é seis vezes superior a longo prazo, quando comparadas às 500 maiores empresas do Brasil, avaliando a rentabilidade acumulada

A gente assumiu os gastos da pesquisa e sua publicação em livro. Tudo para criar mais visibilidade e tornar o movimento mais relevante.

Empresa humanizada é sinônimo de capitalismo consciente?
Sim. Quando descobri o livro do Raj (Firms of Endearment), a primeira edição já tinha sido traduzida no Brasil como O Segredo das Empresas Mais Queridas. Quando veio a segunda edição e o instituto já existia, compramos os direitos autorais, fizemos votação interna e o nome que venceu foi empresas humanizadas. Me parece redundante porque não deveria ter empresa desumanizada. Depois, a gente acabou fazendo a pesquisa das empresas humanizadas no Brasil e criou o site www.humanizadas.com.

Poderia dar exemplos de práticas adotadas por empresas brasileiras adeptas do capitalismo consciente?
Primeiro, não existe empresa perfeita e o capitalismo consciente não é a perfeição da empresa. Somos humanos, cometemos erros, mas na tentativa de acertar e não na maldade de errar. 

A Reserva, por exemplo, tem uma relação com o seu colaborador que é fantástica [o CEO Rony Meisler é presidente do Instituto]. As pessoas têm orgulho de pertencer, de dizer: “eu sou vendedor de roupa da Reserva”. Todos os homens têm direito a mais de 30 dias de licença paternidade e a marca se destaca na questão da diversidade, contratação de pessoas com deficiência, treinamentos e motivações.

Eles também privilegiam a cadeia produtiva brasileira, mesmo sendo mais caro do que comprar na China, e assumem a responsabilidade sobre todas as etapas da cadeia – não tem essa de que é terceirizado e por isso não precisa se preocupar com sua conduta 

Além disso, em 2016, eles lançaram a campanha 1P=5P, que hoje é um sucesso. A cada produto vendido, cinco pratos de comida são doados. Na Black Friday, eles dão desconto e doam dez pratos a cada peça vendida.

Que outro negócio você citaria como referência do capitalismo consciente no país?
O Magazine Luiza. Nos últimos três, quatros anos, Fred [Frederico Trajano, presidente da companhia] está fazendo uma revolução de transformar uma loja tradicional de eletrodomésticos e móveis em uma plataforma digital, com experiência física, pontos de contato humano [a compra é feita em plataformas digitais e retirada em qualquer loja da rede]. 

A ideia principal está no uso de celular que hoje qualquer pessoa tem, mesmo quem mora na comunidade e não possui endereço fixo, tem um endereço virtual e pode fazer compras online. O que a empresa criou como propósito: levar a muitos aquilo que era privilégio de poucos. 

O caso mais emblemático é a campanha #EuMetoaColherSim, relacionada à violência doméstica. O Magazine Luiza assume a responsabilidade pelo colaborador — a maioria, mulheres — não só quando elas estão trabalhando

A rede passou a vender colheres a R$ 1,80, mesmo número da Central de Atendimento à Mulher, 180, e teve 56 milhões de post voluntários nas mídias sociais relacionados ao assunto. A empresa também incluiu um botão de denúncia no seu app e já tinha lançado, internamente, o Canal da Mulher, para que seus colaboradores delatassem casos de maus tratos.

Não vou deixar de falar de uma empresa que faz um trabalho brilhante só porque ela não nos apoia financeiramente. Eu uso o exemplo do Magazine Luiza em todas as minhas palestras e eles não nos dão nem um centavo. Espero que me apoiem um dia, e que tornar-se praticante e associado do Capitalismo Consciente venha a ser tão relevante para as empresas quanto é ter um selo Great Place to Work ou do Sistema B

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