“As pessoas dentro do sistema penitenciário precisam de projetos de vida. É o que tento fazer hoje com a Humanitas360”

Marina Audi - 23 jun 2022
Patrícia Villela Marino, fundadora do Instituto Humanitas360 e do Civi-co.
Marina Audi - 23 jun 2022
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“O que você está fazendo aqui de novo? Você devia estar fazendo compras! Você devia estar tocando sua vida fútil!” 

A empreendedora social e filantropa Patrícia Villela Marino já ouviu, mais de uma vez, esse tipo de questionamento. Mas diz que nunca pensou em desistir.

Patrícia, 51, é fundadora do Instituto Humanitas360. Fundada em 2015, a organização atua para diminuir a violência e melhorar a qualidade de vida da população brasileira. Ela se dedica a causas consideradas espinhosas: bem-estar e capacitação da população carcerária por meio de cooperativas sociais e defesa da pesquisa e uso do canabidiol – a maconha medicinal.

O Humanitas360 tem três frentes de programas. O primeiro é Empreendedorismo Atrás e Além das Grades, braço dos projetos de Cooperativas Sociais em presídios, o marketplace Tereza e as visitas sociais virtuais LAB360, que iniciaram por conta da pandemia.

Outra frente, Informação e Pesquisa, reúne o estudo “Índice de Engajamento Cidadão Nas Américas”, o documentário Tecendo a Liberdade (2017) e o Guia para Pessoas Egressas do Sistema Prisional.

Por fim, o núcleo de Parcerias Institucionais apoia a pesquisa científica Cannabis For Kids. em parceria com UFABC, que testa o uso de canabidiol em 200 crianças autistas, e a iniciativa Apoiando os Catadores de Resíduos Sólidos, junto com a ONG Cataki e a UFMG.

Patrícia é também a cofundadora, gestora e mantenedora financeira do CIVI-CO – hub de negócios de impacto para criação e fomento de tecnologia social com incidência em políticas públicas. Hoje, mais de 70 organizações ocupam o coworking, em Pinheiros, zona oeste da capital paulista (o CIVI-CO já foi pauta aqui no Draft).

“Minha posição é de ser a grande guardiã dessa ideia-manifesto de que nós não somos naturalmente engajados. Nós nos tornamos engajados a partir do momento em que a gente conhece as dores e as dificuldades uns dos outros”

Por esses esforços, a ativista foi reconhecida com o Prêmio Humanitário 2020, concedido pelo The Trust for the Americas, afiliada da Organização dos Estados Americanos (OEA). 

Confira a seguir a conversa de Patrícia Villela Marino com o Draft:


Você é filha de uma advogada – Jane Rieper – e de um político – o ex-deputado estadual Floriano Leandrini, um dos criadores do MDB. Como era o ambiente na sua casa, durante a infância? Vocês conversavam sobre política, consciência social?
Eu sou fruto de uma casa com muitos antagonismos. Tenho 51 anos, sou de 1970; portanto, nós vivíamos um período ditatorial. 

O que se falava em casa, não se falava fora de casa; e, às vezes, o que você era em casa não era permitido ser fora de casa… Eu me lembro de ouvir que os vizinhos deduravam outros vizinhos quando as posições eram contra o regime

Meu pai era militante político e para essas tensões ficarem ainda mais nítidas, meu avô era um aeronauta bastante reconhecido e trabalhava para o regime. 

Então, digamos que dentro de uma mesma família nós tínhamos posições diferentes que coexistiam de uma maneira interessante. 

Eu me lembro de me esconder pra escutar as conversas sobre política, porque não eram conversas de criança, era um assunto subversivo para a época.

Digamos que os assuntos subversivos – o sonho de redemocratização do país – “aconteciam” dentro da minha casa, e eu gostava de me inspirar com aquilo. Mas era também uma casa conservadora, principalmente na pauta de costumes. E essa era – ainda é – a dicotomia do Brasil 

A gente é tão liberal ou sonha com liberalismo em algumas coisas… e somos tão conservadores em outras. 

Na época da sua infância, as mulheres não tinham tanta representatividade no mercado de trabalho. Você foi educada para ser protagonista? Ou coadjuvante?
Todas as oportunidades me foram dadas: nunca houve a menor dúvida de que eu iria para a faculdade, diferentemente da maioria dos lares brasileiros, alguns anos atrás.

Existia, sim, essa chamada para o protagonismo, mas com um certo encaixe dentro da cultura classista, machista e racista do brasileiro. E a minha família não fugia disso. É difícil fugir disso quando essa é a realidade posta… imposta. 

Portanto, fui educada para um protagonismo feminino com limites dentro do politicamente correto. Porque é esperado que a mulher se case, procrie, compareça às obrigações sociais acompanhando o marido… e poucas vezes o marido acompanhando a esposa

Isso mudou nas diferentes fases da minha vida. Hoje, o Ricardo gosta de dizer que é marido da Patrícia, mas durante uns bons 20 anos eu fui a esposa do Ricardo.

A escolha pela graduação em direito se deu por influência de sua mãe? Foi de alguma forma uma opção consciente em busca criar justiça social? E você chegou a trabalhar na área?
Tive, sim, alguma influência da minha família. Minha mãe conheceu meu pai na faculdade de direito. Quando ela se casa, logo fica grávida de mim e a primeira coisa nessa sociedade machista, classista e racista é que a mulher se dedique à casa, à gravidez… 

Então, minha mãe deixou a faculdade e meu pai seguiu e fez a carreira política dele. Minha mãe voltou à faculdade quando eu e os meus irmãos já éramos um pouco crescidos e a minha bisavó cuidava da gente.

Claro que quando optei pelo direito, minha mãe ficou supercontente. É como se eu estivesse seguindo um sonho. 

E já existia dentro de mim o que eu não conseguia definir – a vontade de lutar contra as injustiças. Mas eu não sabia muito bem como fazer isso, porque também tinha o meu outro lado de uma educação bastante conservadora

Aconteceu comigo um chamado, tanto é que a matéria na faculdade de que eu mais gostava era o direito criminal, que tem muito a ver com o que faço hoje, porque talvez fosse ali que eu visse as maiores injustiças. 

Isso me leva a terminar a faculdade, fazer o estágio obrigatório e logo já ir para o curso preparatório para Magistratura ou Ministério Público… eu ainda não tinha decidido.

Nesse momento, eu me vejo uma futura operadora do direito com bases muito conservadoras e com um idealismo nada conservador. Era como se duas pessoas falassem dentro de mim. 

Ao mesmo tempo, eu tinha um grande sonho ainda não realizado – ser missionária. Acredite: eu já quis ser freira! 

Hoje, ser missionária pra mim não tem um contexto religioso. Ser missionária é desempenhar uma missão naquilo em que acredito que posso estar a serviço de alguém e de alguma coisa.

Eu pensava que se passasse para Magistratura ou no exame do MP, poderia me liberar e fazer um sabático missionário. Esse era o plano. Mas minha vida não seguiu o meu plano, seguiu outro.

Hoje, vejo que eu seria uma operadora do direito extremamente conservadora e punitivista. Ainda bem que não fui! Eu ia ser um desserviço (risos). 

Quando você passou a se reconhecer como ativista social?
As minhas primeiras experiências de me apropriar de certas situações e me fazer de ferramenta e meio “a serviço de” foram nos meus aniversários que minha mãe fazia questão de comemorar em um orfanato. 

Todos os meus aniversários – até os 27 anos – foram comemorados no orfanato. Quando eu já era adolescente, vi que, já que a minha mãe não ia desistir daquela ideia dela, era melhor que eu entendesse aquilo como uma oportunidade transformadora pra mim, e não como um conflito 

Foi quando comecei a resgatar amigos, familiares – inclusive o Ricardo, no nosso último ano no Brasil, antes de a gente se casar – pra nos organizarmos e fazer aquilo acontecer para aqueles 300 meninos, de uma forma que não fosse simplesmente um evento, mas uma experiência de vida para nós… e para eles também.

Depois, fui aprimorar isso nos anos em que morei fora, me expondo a experiências de uma verdadeira filantropia – que não era uma caridade –, entendendo como isso podia ser sistêmico, e como podia transformar sistemas.

Quando voltei pro Brasil, durante anos tentei me reencaixar naquilo em que eu já não me encaixava mais… Mas mesmo esse desencaixe me ajudou a estabelecer alguns pressupostos para as ideias que eu defendo hoje

Então, teve esse primeiro tira-gosto no orfanato e depois um aprofundamento… Sabe quando você tem que deixar a coisa “baixar”? Pude elaborar melhor para ela realmente se tornar uma ferramenta de transformação interna e pessoal – e, depois, uma transformação nos diversos níveis em que a gente vive e convive.

Depois de se casar, você viveu cinco anos fora do Brasil: em Boston (de 1998 a 2000) e entre Nova York e Londres (até 2003). Como exercitava a sua faceta ativista nesse período? Como essa fase te ajudou no entendimento do que é a filantropia?
Foram meus primeiros anos de casada e eu poderia romantizar bastante, mas não vou fazer isso. Foi bem difícil. Cheguei nos EUA sem social security number e era simplesmente “a esposa do Ricardo”. Eu não podia fazer várias coisas, nem mesmo sair do país e voltar pra lá sem estar acompanhada do meu marido! 

Foi muito difícil pra esse espírito audacioso e aventureiro que existia dentro de mim se conformar… Por sorte, eu estava em uma comunidade acadêmica muito progressista 

O MIT fazia um convite para envolver também as e os significant others – termo que foi incrível descobrir. No Brasil, ou você era esposa ou marido de um acadêmico; lá, já tinha significant others, que não era nem um, nem outro! Podia ser um homem que era a “esposa” de alguém; uma mulher que era “marido” de outra pessoa. 

Eu me envolvi com a faculdade e passei a conviver com outras realidades culturais. Tinha meninas de culturas fundamentalistas cujos maridos não as deixavam fazer nada! Fui interceder e, com o tempo, uma professora me convidou a participar das aulas de Filantropia e Terceiro Setor da J. F. Kennedy School of Government, na Universidade de Harvard.

As aulas eram incríveis e ali eu percebi a filantropia sistematizada, com metodologia, como uma intervenção válida na política pública. Não é dar dinheiro; é se fazer a serviço de transformações. E se você ainda tiver poder econômico para contribuir, melhor ainda, porque potencializa o seu lugar de transformadora da sociedade. 

Essas coisas começaram a fazer sentido. Quer dizer, não era mais uma assistência direta, como os meus aniversários tinham sido. Era uma assistência direta com um nível de transformação sistêmica e de incidência em dogmas que precisavam ser mudados a partir de uma vivência e de um discurso pleno – não de um discurso vazio! 

A filantropia passa a ser um estado de viver as coisas, como se fossem óculos, lentes através das quais você vê o problema, enxerga a vítima sem vitimizá-la e sem se culpar. É nos responsabilizarmos pelas mudanças sistêmicas que, juntos, precisamos fazer acontecer 

Isso foi transformador pra mim. Comecei a pensar que era nesse lugar que eu queria estar.

Como foi a sua vida nos anos seguintes à sua volta ao Brasil? O que você fez nesse tempo? O que te movia?
Foram anos muito difíceis. Primeiro, voltar pro Brasil e tentar me encaixar num lugar onde não tinha encaixe… De novo, me encontro numa sociedade com certos padrões aos quais eu e o Ricardo não nos encaixávamos. 

Nós éramos casados já há alguns anos e não tínhamos filhos. As pessoas falavam: “Como assim? De quem é o problema: dele ou dela? Um casal que não dá um herdeiro?” 

Naquele momento, foi difícil e pesado. Fiz muito trabalho voluntário, fui conhecer outras realidades… mas eu não me expunha, porque já recebia tantas críticas e não estava preparada para receber mais

Eu ouvia coisas como: “A Patrícia gosta tanto da própria estética que não abre mão dela para engravidar”. Então, precisava arrumar um modo de sobreviver a essas críticas. E o que me dava isso era a minha espiritualidade, os meus trabalhos voluntários. 

Eu também acompanhava muito a vida corporativa do Ricardo. Fazendo isso, conheci vários problemas e pude me inserir como facilitadora de processos de solução social fora do Brasil, principalmente na América Latina, onde ele atuava muito. 

E fui me tratar, porque eu sabia que a situação de infertilidade era minha. Nesses tratamentos, eu me deparei com outro problema – fui parar nas mãos de um médico charlatão. Fui uma dessas mulheres que não recebeu o acolhimento que precisava… recebi a perversidade 

Isso me fechou muito, foi um trauma que eu tive que superar. Então, foram anos para eu me redescobrir.

De certa forma, colocar a mão na massa no trabalho voluntário, sem estar à frente na gestão, te preparou para o que viria a ser depois a Patrícia fundadora da Humanitas360?
Sem dúvida. Quando você tem a responsabilidade que eu tenho hoje com colaboradores e com uma organização, isso demanda muito. Enquanto pude me entregar a outros trabalhos, tive vivências que significam muito na minha vida. 

Por exemplo, trabalhei com a Gastromotiva e quando a gente a levou para dentro do sistema penitenciário, foi incrível. Vi o quanto as pessoas dentro do sistema precisam de projetos de vida… e é o que tento fazer hoje com a Humanitas360

Enquanto desenvolvi o Instituto Ilhabela Sustentável [criado em 2007] – na época um movimento de ambientalistas em prol de um desenvolvimento humano respeitoso ao meio ambiente –, vivi o que hoje se chama Justiça Climática. Hoje, sabemos que são os menos favorecidos e mais marginalizados que recebem toda a carga do desenvolvimento que não respeita o meio ambiente.

As experiências de entrar em lixões e participar da vida dos catadores de lixo que trabalham em galpões ou na rua também foram incríveis. Pude me apropriar delas para dizer que nós não podemos nos omitir de nenhum problema que existe no Brasil!

Pode-se dizer que esse período formou a Patrícia que não vem só com o cheque assinado, mas também com a empatia e o entendimento sobre as pessoas? Ao assistir aos episódios da websérie #EuSouTereza (2021), percebe-se nos depoimentos das mulheres das cooperativas sociais o quanto as reclusas podem ter autonomia dentro dos projetos…
Esses anos foram os da minha incubação. Se hoje a Humanitas360 é uma incubadora de cooperativas sociais dentro e fora do sistema carcerário, primeiro eu precisei passar pela minha incubação, para estar firme em acreditar que essa tese é validada e validável.

Foi o privilégio de ter sido convidada por algumas pessoas a fazer incursões que foram absolutamente importantes e contribuíram para que, no meu segundo tempo, eu pudesse fazer ainda mais.

Eu não acredito no “cheque pelo cheque”. O dinheiro é superimportante – mas na medida em que a gente não sabe lidar com ele, ele vira mestre. E, na verdade, o dinheiro tem que ser servo. Quando passa a ser mestre nas nossas vidas, todos ficamos obcecados por ganhos, por ganância 

É com esse cuidado e respeito que a gente tem que tratar o poder econômico, para que ele não tome o lugar de mestre – tanto na vida daquele que já o tem quanto na vida daquele que precisa dele.

Em 2011, você e Ricardo passaram a se engajar no debate sobre políticas de drogas e chegaram a fundar a Plataforma Latino-Americana de Política de Drogas, que veio depois e se tornar o Instituto Humanitas360. A defesa do uso medicinal do canabidiol é uma iniciativa paralela ou posterior? Como isso tudo começou?
Eu e o Ricardo sempre fizemos parte de grupos de discussão de sucessão familiar, dentro e fora do Brasil. Entre alguns pares era comum a ânsia de fazer mais, além do que as famílias – ou as corporações que essas famílias representam – já faziam. 

Foi nesse grupo que nós formamos a Plataforma Latino-Americana de Política de Drogas, que eu liderei. A ideia era: se as nossas famílias ou as instituições representadas por nós não querem se envolver nesse debate, nós, enquanto pessoas físicas, queremos! 

Juntos buscamos entender o que realmente fragiliza a América Latina. Era uma maneira de buscar na fraqueza da região como nós, enquanto famílias tão fortalecidas, podíamos exercer algum papel de melhoria.

A nossa percepção era de que o tráfico de drogas deformava as relações, descredibilizava muito o cidadão latino-americano para com as suas instituições e desvirtuava o próprio sentido de cidadania, porque o cidadão não se sentia protegido 

Começamos um ciclo de conferências, pesquisas. e a isso se deu o nome de Plataforma Latino-Americana de Política de Drogas. O objetivo foi abrir um debate com os EUA. Porque, se lá estava a demanda, nós, como fornecedores, tínhamos que “corresponder”. 

Antes, esse debate acontecia sem o posicionamento da América Latina, ou sem que as grandes famílias latino-americanas se posicionassem – inclusive internamente, em seus próprios países. 

Decidimos que a legalização e a descriminalização eram super necessárias para que a gente pudesse, pelo menos, desenvolver uma indústria, tirar as pessoas desse lugar de marginalidade e encarceramento e conseguisse ter, nos nossos países, uma quebra de dogma e de tabu… coisa que já vinha acontecendo nos EUA.

Então, foi a tomada de consciência de algumas famílias bastante significativas e com muita influência na América Latina.

Você foi produtora do documentário Ilegal (2014), que mostra a história da luta de brasileiros contra tabus e a burocracia para usar legalmente remédios produzidos a partir da cannabis, que ajudam a aliviar dores crônicas e crises epilépticas. E a partir de 2015, no Humanitas360, você une a problemática do sistema carcerário e da política de repressão às drogas ao conceito de projetos sociais e filantrópicos. Uma coisa levou à outra?
O nosso movimento enquanto Plataforma Latino-Americana de Política de Drogas tinha, no início, uma perspectiva de segurança. Com o nosso engajamento, pesquisas e encontros, nós nos deparamos com a necessidade de saúde pública. 

Temos esses dois pontos: conversamos sobre segurança, militarização, desmilitarização e leis propriamente ditas; e olhamos para o contexto humanitário. E nesse contexto há a perspectiva do uso medicinal da cannabis para melhorar a qualidade de vida de crianças, adultos, idosos e das famílias como um todo. 

A Plataforma Latino-Americana de Política de Drogas foi o embrião da Humanitas360. Foi uma vivência importante para entender o quanto a política de drogas foi imposta por outro país [os EUA] ao nosso continente, ao nosso país, sem ser debatida com a sociedade brasileira. E o quanto isso é negativo sob a nossa perspectiva nacional 

Isso tudo eu trago pra Humanitas360, em 2015, quando vejo a necessidade de a plataforma se constituir como personalidade jurídica. Então, converso com o grupo e parte dele vem para o meu conselho consultivo.

Desde o começo, o plano era ter o empreendedorismo como base para as ações do instituto? Como chegaram à ideia de aplicar uma metodologia de reinserção social para reduzir a reincidência no crime e o retorno de pessoas ao sistema prisional? E quais foram as dificuldades iniciais?
As minhas experiências anteriores foram quase sempre em empreendedorismo, junto com uma percepção clara de que um bom número de brasileiros e brasileiras não seriam, infelizmente, contratados pelo mercado formal, por falta de capacitação. 

Na maioria das vezes, falta escolaridade, segurança alimentar, segurança sanitária, segurança familiar… As pessoas teriam de se reinventar, buscar alternativas. Senão, o crime sempre seria uma alternativa, porque numa realidade capitalista todo mundo precisa pagar contas! 

Foi por isso que entendi que o empreendedorismo era uma via que precisava ser desenvolvida. 

Nas minhas incursões antes do Humanitas360, começo a viver a realidade do sistema penitenciário e entendo que pessoas presas por crime de tráfico não serão contratadas pelo simples fato de que se ela tem uma pena de multa, não vai receber de volta os seus direitos políticos. Portanto, não vai ter carteira de trabalho assinada.

Para que essa pessoa seja inserida ou reinserida na vida cível, ela vai precisar estar trabalhando… E se ela não for contratada pelos meios formais, vai ter que empreender. Foi esse o caminho que a Humanitas360 viu. 

E também quisemos trabalhar a construção de uma mentalidade coletiva que tirasse essa pessoa do individualismo… trazer a perspectiva do coletivismo, do comunitarismo, e de que juntos a gente pode fazer mais e melhor. Sempre acreditei nisso.

Esta é uma tese na qual a gente está trabalhando – existe uma rede de proteção que começa a ser formada e o tecido social totalmente esgarçado começa a ser costurado entre aquelas pessoas que se entendem, porque participaram dos mesmos problemas, dos mesmos perrengues

O crédito é da minha equipe, que foi buscar na lei de cooperativas sociais esse respaldo jurídico de que nós precisávamos para poder então embasar essa sistematização, para que fosse uma alternativa à política pública vigente da lei de execuções penais. 

O instituto começou em 2015; a primeira cooperativa social, a Lili, no Complexo Penitenciário Feminino II de Tremembé, é de 2018 (depois veio a Cooperativa da Penitenciária Masculina II de Tremembé). Como ela começou? Houve tropeços?
Para que em 2018 existisse esse marco legal – quer dizer, a vida jurídica da cooperativa social –, começamos a trabalhar em 2016. 

Foram algumas batalhas: para que a primeira cooperativa passasse a existir legalmente – tivesse seu registro reconhecido na Junta Comercial do Estado de São Paulo; a conta no banco pudesse ser aberta; e a própria Associação Brasileira de Cooperativas entendesse e aceitasse uma cooperativa de mulheres presas. 

Contei com alguns parceiros, como o escritório de advocacia Mattos Filho, que nos concedeu pareceres jurídicos respaldando a tese de que mulheres presas são mulheres em estado de vulnerabilidade; as pessoas não queriam enquadrá-las dessa forma. 

Em 2016, começamos a ir à unidade feminina de Tremembé para iniciar o nosso relacionamento com as mulheres e a equipe de lá. 

Fazíamos reuniões semanais com esse grupo para explicar que queríamos desenvolver com elas uma tese a ser comprovada de que um trabalho consistente de capacitação em competências socioemocionais e profissionais era um projeto de liberdade

Esse projeto começava dentro do cárcere e se expandia para fora do cárcere, através das produções que seriam vendidas, e toda a receita seria trazida de volta para elas – a Humanitas360 não ficaria com nada 

Só de falar isso, já surgia todo tipo de dúvida. “Como assim? Você está fazendo isso e não vai ficar com nada?” Entre 2016 e 2018 foi essa construção difícil, inclusive com a gestão anterior do governo estadual. Na mudança de gestão, eu me aproximei do novo gestor para que esse embrião tivesse condições políticas de estabilidade.

A ideia era desenvolver uma inovação, uma tecnologia social no estado de São Paulo, provida pelo capital filantrópico, com respaldo do Poder Público, que fosse transformada em capital cívico e entregue – por que não? – a esse gestor como um capital político. 

O gestor público tomaria parte do risco ao prototipar uma alternativa a um plano de execução penal. Eu assumo o risco financeiro – e também um risco emocional grande –, e juntos fazemos a tecnologia social e a inovação acontecer… Mas infelizmente não houve esse entendimento

Em dezembro de 2018, assino um acordo de cooperação técnica com o Conselho Nacional de Justiça [firmado em Brasília com o ministro Dias Toffoli, permitindo implementar cooperativas sociais nos presídios de todo o país]. Eu achava que fosse me dar mais respaldo perante a administração paulista, mas isso não aconteceu.

Em maio de 2019, somos informados que devemos sair das duas unidades penitenciárias onde trabalhávamos – a feminina, onde a cooperativa desenvolvia peças de casa e acessórios de costura, bordado e crochê; e a masculina, que era uma horta orgânica com tratamento de solo – colheita de quase duas toneladas de hibiscos.

Hoje, os pilares da Tereza são uma loja virtual, eventos beneficentes de arrecadação de doações para as cooperativas nascentes e a Casa Tereza (oficinas de produção fora dos presídios, para as cooperadas que deixaram o cárcere), além de parcerias com pontos de venda, como os restaurantes do Grupo Maní, da chef Helena Rizzo. Tudo começou com a ideia de vender os produtos da cooperativa feminina de Tremembé?
Nosso sonho sempre foi grande. A Tereza já era uma ideia junto com as cooperativas. Então, dentro do Plano Macro, ela sempre existiu. É preciso entender que essas cooperativas acontecem dentro do sistema prisional, com todas as dificuldades. 

Progressão de pena, por exemplo, é uma maravilha. Mas, para um negócio, gera uma certa dificuldade, porque a pessoa que foi capacitada e treinada passa para o outro lado do muro e não pode mais trabalhar onde ela adorava trabalhar antes 

Sempre tivemos que lidar com as dificuldades da lei de execução penal. Portanto, criamos uma ideia incubada pela Humanitas360 e que foi transformada numa pessoa jurídica independente, a Tereza. 

Ela é uma entidade comercial que preza pela produção de qualidade e pelos contratos comerciais que essas mulheres e as cooperativas não podem fazer, justamente pela restrição da sua liberdade. 

A Tereza é a pessoa jurídica para todos os atos da vida comercial das cooperativas: para as vendas acontecerem, para propagar essa narrativa – de forma que a mudança de paradigma não seja só um sonho, e sim uma ação afirmativa – e para a geração de renda voltar a essa mulher, seja no seu estado de privação de liberdade ou de liberdade condicional 

Você pode entender a Tereza como um guarda-chuva. A nossa ideia é ter várias cooperativas – cada uma pode, inclusive, ter um escopo de produção diferente. Estando dentro do sistema prisional, a pessoa tem restrições, então a pessoa jurídica da Tereza faz isso e retorna para as cooperadas, nas respectivas cooperativas. 

Por exemplo, hoje a Cooperativa Anahí substituiu a Cooperativa Lili. A Anahí vem com mulheres que começaram lá atrás e outras que se juntaram ao processo agora. Elas ainda estão tomando para si os conhecimentos, ainda não conseguem fazer toda a gestão contábil e tributária do seu negócio… Então, quem faz é a Tereza. 

E sendo todas cooperativas sociais, todos os ganhos têm a provisão do fundo da cooperativa. Dentro do cárcere, as mulheres já passam a ser contribuintes das suas famílias; ao saírem, não serão um peso, uma boca a mais a ser alimentada. 

Pelo contrário: dentro do cárcere elas já estão contribuindo para uma melhor alimentação das suas famílias. E, quando saem, no primeiro dia de liberdade, elas já participam da operação e da gestão do seu negócio, para crescer dentro dele 

Em algum momento, a Humanitas360 vai sair [da gestão] e a cooperativa terá a sua autonomia, que é o que acontece hoje na Anahí. Temos diferentes níveis de autonomia e processo emancipatório. 

A Humanitas é sempre a incubadora das cooperativas e de todas as questões de assistência social, jurídica, psicológica e de espiritualidade para as cooperadas. A Tereza, que é um spin-off do instituto, faz os acontecimentos da vida comercial desse negócio. 

Você falou antes de risco emocional em relação a esse projeto. O que você traz de mais especial do convívio com essas mulheres encarceradas?
O mais imensurável e talvez mais perigoso é o risco emocional, porque não tem como nós não desenvolvermos relacionamentos. O ser humano é absolutamente relacionável. 

É nas relações que nós nos melhoramos, nos aperfeiçoamos, erramos, aprendemos a perdoar… E esses relacionamentos acontecem entre pessoas completamente diferentes, com histórias de vida totalmente diferentes, uns com muitas possibilidades e outros com nenhuma. 

É por isso que sofri muito quando a gente não pôde mais trabalhar em Tremembé… [Patrícia se emociona] Era a primeira vez que aquelas mulheres, encarceradas por crimes, estavam sendo penalizadas por fazer alguma coisa certa nas suas vidas…!

Foi muito difícil me afastar do convívio com a equipe diretiva, com as guardas penitenciárias – que no início não acreditavam no trabalho e depois passaram a ser parceiras –, com a diretora de segurança – que antes via ali uma fragilidade no trabalho dela e, de repente, testemunha a melhoria do clima organizacional…

Essa oportunidade de fazer uma transformação tão grande foi abortada… Enquanto ser humano, isso é uma frustração, é uma missão não cumprida que eu guardo comigo – e que tenho esperança de poder retomar.

Por outro lado, trabalhar em outros estados é maravilhoso… [hoje estão ativas as cooperativas Anahí, em São Paulo, e Cuxá, em São Luís-MA; há quatro cooperativas gaúchas em implantação].

Você percebe que o Brasil é extremamente desigual [até] no único lugar onde podia ter igualdade – porque está todo mundo preso. Mas mesmo ali [no presídio], você vê a situação de desigualdade da mulher, que não tem as suas necessidades femininas atendidas

Conseguimos ter ali um voto de confiança para que coisas maiores pudessem ser discutidas… até a conformação de um negócio social. E a maior experiência foi essa: que a gente só vai aprender a viver na diversidade se entender e aceitar as nossas diferenças. 

As nossas diferenças não são para conflito, confronto. As nossas diferenças são para colaboração, compreensão – e compaixão uns com os outros.

Essa desconfiança inicial se repete a cada vez que vocês estruturam uma cooperativa dentro de uma unidade penitenciária?
É quase sempre assim. E não é nem só [desconfiança por parte] das detentas. Acontece com os próprios operadores do sistema, que olham com crítica, porque, supostamente, as coisas têm sido bem feitas durante tantos anos… Pra que mudar agora? 

O ser humano também é “preservacionista”. Se todo mundo tem feito da mesma maneira durante tanto tempo, qualquer mudança é uma instabilidade. E isso causa conflito, causa enormes diferenças. Mas a Humanitas360 nunca vai abrir mão dessa inserção 

É lícito que a sociedade civil organizada participe da pena. Há, inclusive, momentos de previsão legal para que isso aconteça. E é só assim que nós podemos fazer justiça social, justiça restaurativa, e institucionalizar, cada vez mais, a paz entre nós.

 

 

 

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