Brain4care, ou: o professor idoso que criou um jeito de monitorar a pressão intracraniana sem furar o crânio

Marina Audi - 12 nov 2019
Plínio Targa, CEO da Brain4care, e Sérgio Mascarenhas, fundador da startup.
Marina Audi - 12 nov 2019
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Pressão Intracraniana, ou PIC, é a pressão exercida pelo crânio sobre o tecido cerebral, o fluido cerebroespinhal e o sangue circulante do cérebro. Uma alteração da PIC ocorre, entre outras razões, por variações na pressão arterial — e pode levar à redução ou interrupção de suprimento sanguíneo, morte de tecidos, cefaleias, náuseas, visão turva (ou dupla) e zumbidos dentro da cabeça.

Até hoje, para um médico monitorar a PIC, é preciso furar o crânio do paciente. Como é um recurso extremo, acaba sendo usado com parcimônia — apesar da relevância, para muitos casos clínicos, de se acompanhar a pressão intracraniana.

Essa medida “medieval” pode estar com os dias contados. Com sede em São Carlos (SP), a Brain4care desenvolveu e comercializa — desde abril, em modelo de assinatura — o único sensor do mundo capaz de monitorar a pressão intracraniana de forma não-invasiva.

A solução é indolor e serve para avaliar o estado clínico das funções cerebrais do paciente, auxiliando no tratamento e predição de enfermidades e sequelas de traumas cranianos, tumores e AVCs (Acidente Vascular Cerebral).

O SENSOR SE COMUNICA POR BLUETOOTH COM UM APLICATIVO

O sensor capta o pulso da PIC e se comunica via Bluetooth, em tempo real, com um aplicativo (disponível para Android; a versão para iOS deve ser lançada em abril), que mostra a informação da onda — waveform, em inglês –, em tempo real, para o profissional da saúde realizando o monitoramento. Sincronizados na nuvem, os dados são analisados por algoritmos. Segundo o CEO, Plínio Targa, 50:

“Criamos uma arquitetura de sistema com inteligência analítica na nuvem para processar, analisar e extrair, dessas curvas, 16 parâmetros. Isso é uma tendência dos últimos 30 anos, em oposição aos números absolutos. Somos, praticamente, os únicos a conseguir fazer essa análise”

O índice “oficial” da PIC é um valor absoluto que, em pessoas sadias, varia de 5 a 15 milímetros de mercúrio. A solução da Brain4care não fornece esse dado. Mesmo assim, o sensor – com patente registrada no Brasil e nos Estados Unidos, aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e em processo final de aprovação pela Food & Drug Administration (FDA) – é considerado disruptivo por seu ineditismo.

A Brain4care não dá laudos porque não faz diagnóstico. O sensor entrega gráficos que mostram a morfologia do pulso da pressão intracraniana – como ocorre em um eletrocardiograma – e a tendência da PIC ao longo do período monitorado.

A ESTRATÉGIA INCLUI INVESTIMENTOS PESADOS EM CIÊNCIA

O CEO gosta de fazer uma analogia. Quando alguém põe um termômetro sob o braço, não é por um problema na axila, e sim porque aquele é um ponto onde se coleta uma informação que “reflete” outros órgãos. Com a pressão intracraniana seria a mesma coisa.

“Hoje, o atendente médico tira a sua temperatura, mede o pulso, a frequência respiratória, a pressão arterial… Seria possível também colocar nosso sensor e obter um novo tipo de informação. Nós destravamos o acesso a um novo sinal vital”

Para saber mais sobre esse “novo sinal vital”, a Brain4care já foi parceira em mais de 40 pesquisas no Brasil; outras 29 estão no pipeline (um time de 12 avalia projetos científicos). Nos próximos 18 meses, a startup realizará mais seis pesquisas nos Estados Unidos. “Começamos uma em Stanford e estamos prestes a iniciar outras duas no John Hopkins [hospital de Baltimore] e no Grady Health [em Atlanta].”

No Brasil, o médico Salomón Rojas, responsável pela UTI Neurológica e CTI da Beneficência Portuguesa de São Paulo, estudou a aplicação do sensor no pós-operatório de pacientes de cirurgia cardíaca (veja o vídeo explicativo).

“O mais importante nesse tipo de pós-cirúrgico é a garantia da complacência intracraniana”, diz Plínio, referindo-se à capacidade do crânio de tolerar aumentos no volume do tecido cerebral, de sangue que chega ao cérebro ou de líquor sem elevar a pressão intracraniana.

O uso do sensor já foi estudado no tratamento de hipertensão arterial causada por pré-eclâmpsia (complicação da gravidez), doença hepática — o mau funcionamento do fígado pode gerar acúmulo de substâncias tóxicas no sangue, com risco de aumento da pressão intracraniana — e edemas de pacientes de hemodiálise.

UM PROBLEMA DE SAÚDE DO FUNDADOR DEU ORIGEM À STARTUP

A healthtech surgiu em 2014, a partir da união de Sérgio Mascarenhas, professor universitário, Gustavo Frigieri e Rodrigo Andrade, seus alunos no mestrado na USP em São Carlos. Primeiro reitor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), da qual foi um dos idealizadores, Sérgio é pesquisador do Instituto de Física da USP e segue ativo aos 91 anos.

Em 2006, depois de um ano convivendo com uma suspeita de Mal de Parkinson, o professor foi diagnosticado com hidrocefalia de pressão normal (acúmulo de líquido cefalorraquidiano no cérebro). Uma válvula foi implantada para redirecionar o excesso de líquido do ventrículo do cérebro para outra parte do corpo.

O sensor não-invasivo desenvolvido pela Brain4care para monitorar a pressão intracraniana é preso à cabeça por uma faixa.

O episódio o motivou a investigar uma forma menos invasiva de se acompanhar a PIC. Inspirado pela lembrança de que alunos de engenharia usavam chips em vigas para aferir abalos estruturais, o professor se debruçou em um projeto de pesquisa, depois publicado na Alemanha, para comprovar que o crânio humano é expansível.

A constatação abriria caminho para se monitorar a PIC com um sensor externo, sem perfuração. Em 2015, Sérgio recorreu a outros dois ex-alunos da USP São Carlos – Plínio e Carlos Bremer, que atuavam com consultoria – para dar forma à empresa. No início de 2016, além de expertise, Plínio e Carlos aportaram R$ 1 milhão de capital-anjo, trouxeram um COO (Arnaldo Betta) e puseram mãos à obra.

NA SINGULARITY, “CAIU A FICHA” DO POTENCIAL DE IMPACTO DA SOLUÇÃO

Em outubro de 2016, Carlos e Plínio foram para o Exponential Medicine, evento da Singularity University, em San Diego. Impactados por tudo que viram de disruptivo rolando no setor, voltaram decididos a concorrer à aceleração da Singularity. E conseguiram: a Brain4care foi uma das sete selecionadas (de 500 inscritas).

Plínio e Arnaldo passaram dez semanas no Vale do Silício, no primeiro trimestre de 2017. Ali “caiu a ficha” do potencial da solução. Os mentores americanos calcularam que a Brain4care poderia impactar 1 bilhão de pessoas em dez anos.

Aproveitando o networking da Singularity, a dupla conversou com uma centena de pessoas para entender como fazer de uma descoberta científica um modelo de negócio.

“Concebemos que não seríamos uma fabricante de equipamentos médicos. Nossa contribuição seria criar uma plataforma de conhecimento no entorno da pressão intracraniana — porque ninguém sabia nada [a respeito] dela”

Concluíram também que o modelo precisava ser acessível. “Se o que temos salva vidas, reduz dor e sofrimento, precisamos de uma estratégia que atenda ao maior número de pessoas, no menor espaço de tempo.”

PARA NÃO TER “30 SÓCIOS”, A STARTUP CRIOU UM FUNDO DE INVESTIMENTOS

De volta ao Brasil, os executivos se dedicaram a organizar a empresa, desenvolver um sensor pequeno (inicialmente com fio e conectado a um monitor), desenhar a plataforma de inteligência analítica, montar um escritório em São Paulo e iniciar trâmites regulatórios.

Criaram também um plano de negócios com valuation da empresa e proposta de captação de uma rodada de seed money no valor de US$ 5 milhões com Family & Friends.

“Para não termos 30 sócios na empresa, decidimos criar um fundo de investimento específico, o Miletus. Sua razão de existir é ser o vetor de investimento da Brain4care”

O roadmap foi seguido à risca. O primeiro uso “valendo” do sensor com fio se deu em 2018, no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Na primeira fase, médicos e áreas impactadas utilizaram a solução de maneira mais restrita e fizeram testes para entender o processo de adoção.

A implementação total, na UTI do Sírio, ocorreu em janeiro deste ano. E, em abril, a Brain4care lançou para o mercado um novo modelo, sem fio. Considerada definitiva, a versão facilita a implantação e o uso do aparelho.

A BRAIN4CARE PRETENDE CAPTAR MAIS US$ 10 MILHÕES AINDA ESTE ANO

Hoje, a Brain4care tem três clientes em operação (Sírio e 9 de Julho, em São Paulo, e o hospital carioca Copa D’Or), outros sete em implantação e mais 12 em processo de contratação. Os clientes pagam R$ 3 500 por mês pelo uso de um equipamento (com um sensor é possível monitorar até 500 pacientes no período) e acesso à plataforma digital.

“Não cobramos por transação porque as pessoas têm de ter acesso. Precisamos que a solução seja utilizada para que a gente consiga evoluir as análises”

O break-even da operação Brasil está previsto para 2020, quando a Brain4care deve atingir 180 sensores comercializados. O plano para o biênio 2020-21 é avançar nos EUA e expandir para a Europa, onde o processo regulatório está prestes a começar. Para tirar tudo do papel, o fundo Miletus fechará uma segunda rodada de captação (de US$ 10 milhões) ainda em 2019.

“Nosso propósito é desafiar os limites da medicina, porque queremos viver histórias de saúde e felicidade”, diz Plínio. “Como não somos médicos, não viemos pela doença. Viemos por uma descoberta.”

 

DRAFT CARD

  • Projeto: Brain4care
  • O que faz: Oferece método não-invasivo para monitorar a pressão intracraniana
  • Sócio(s): Sergio Mascarenhas, Paulo Mascarenhas, Gustavo Frigieri, Rodrigo Andrade, Carlos Bremer, Plínio Targa, Arnaldo Betta, Deusdedit Spavieri Jr., Pedro Maffei, Renato Abe e fundos MCLC4 e Miletus
  • Funcionários: 34 (incluindo seis sócios-executivos e quatro estagiários)
  • Sede: São Carlos (SP)
  • Início das atividades: 2014
  • Investimento inicial: R$ 1 milhão
  • Faturamento: R$ 200 mil (2018)
  • Contato: contato@brain4.care
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