“A coisa mais difícil que eu tinha a fazer era provar para a favela o quanto ela era potente. A favela é potência, e não carência”

Marina Audi - 26 maio 2022
Celso Athayde no escritorio da Favela Holding (foto: Douglas Jacó).
Marina Audi - 26 maio 2022
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Agitador cultural, ativista social, empreendedor, escritor, investidor, produtor de cinema e fundador da Central Única das Favelas (CUFA), Celso Athayde, 59, acaba de ser premiado (na última segunda, 23) como Empreendedor do Ano de Impacto e Inovação no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça.

Um reconhecimento e uma trajetória difíceis de se imaginar em sua infância. Dos 6 aos 12 anos, Celso morou na rua com a mãe e o irmão e sobrevivia de pequenos furtos. Depois, viveu por dois anos em um abrigo público, até chegar à Favela do Sapo, em Senador Camará, na zona oeste do Rio de Janeiro.

Ali, Celso conheceu Bagulhão, ou Rogério Lemgruber, fundador da facção Comando Vermelho. Por influência do criminoso, o rapaz finalmente aprendeu a ler e teve contato com o conceito de revolução. Mas garante que jamais quis trabalhar no tráfico. Em vez disso, Celso foi fazer outros “corres”.

 Como agitador cultural da cena hip hop, ele criou o Baile Charme, embaixo do viaduto Negrão de Lima, em Madureira, zona norte do Rio; empresariou os rappers Racionais MC’s e MV Bill; e criou o Hutúz, evento que (entre 2000 e 2009) prestigiava rappers, DJs, grafiteiros, dançarinos de break e o basquete de rua.

Celso é ainda autor (ou coatuor) de oito livros. O nono, intitulado Favelês, será lançado neste ano. Teve também uma incursão pelo audiovisual – o mais notório trabalho é o documentário Falcão — Meninos do Tráfico (2006), codirigido por ele e MV Bill.

No papel de ativista social, Celso fundou a CUFA, em 1997. Hoje, a ONG está presente em 5 mil favelas do Brasil (e em outros 20 países), com o objetivo de promover atividades ligadas a educação, lazer, esportes, cultura e cidadania. 

Desde 2015, ele é o CEO da Favela Holding, que investe em startups nascidas nas favelas. Entre as 24 marcas estão a agência de live marketing InFavela; a rede de agências de turismo Favela Vai Voando; o instituto de pesquisa Data Favela; a empresa de entregas Favela Log; a produtora Favela Filmes; a rede social Black & Black; a plataforma de microinfluenciadores Digital Favela (que foi pauta aqui no Draft); e o recém-criado Favela Fundos.

Em abril, a Favela Holding realizou em São Paulo a primeira edição do Expo Favela. O evento reuniu centenas de empreendedores da favela, mais de 30 mil pessoas e personalidades do mundo dos negócios como Luiza Helena Trajano, Abílio Diniz, Neca Setubal e Luciano Huck.

Confira a seguir o papo de Celso Athayde com o Draft:

 

Como você via a si mesmo, o mundo e as pessoas brancas durante o período em que morou na rua (entre os 6 e 12 anos), no abrigo (dos 12 aos 14) e depois na Favela do Sapo, no Rio de Janeiro? Como era sua relação com o “mundo do asfalto”, como você costuma dizer?
Quando morei na rua, embaixo de um viaduto chamado Negrão de Lima, em Madureira, eu não tinha referência. E quando você não tem referência, não sabe bem o que está acontecendo. Eu não tinha instrução para entender o que cada coisa significava, os modelos, padrões e os desdobramentos daquilo. Não tinha nem condição de contestar, de refletir sobre algo que poderia ser diferente, porque só conhecia aquilo. 

A minha relação com as pessoas brancas era de amor, porque eram elas que me davam roupas velhas, comida e que empregavam a minha mãe. No Natal, minha mãe chegava com roupinhas rasgadas pra que a gente fizesse remendos e ficassem novas em folha. Era uma relação de agradecimento — exatamente como os escravos com os senhores que davam a eles um canto pra dormir

Era aquilo que eu tinha aprendido. Só depois que a gente cresce, passa a entender que aquilo era a reprodução de um processo. As pessoas que me ajudavam não tinham culpa por aquilo: ambas as partes só estávamos, inconscientemente, reproduzindo [essa dinâmica]: uns aceitando e os outros submetendo pessoas àquela realidade.

Aprendi a ser revolucionário na favela. Eu era de uma geração em que estava se formando o Comando Vermelho na Favela do Sapo, chamada de berço do crime.

O Bagulhão, fundador do Comando Vermelho, chamado Rogério Lemgruber, morava no meu bloco, o 38. Ele ensinava a gente a ser revolucionário. Ele mandava colocar em casa uma foice e um martelo, porque o Comando Vermelho vem das relações entre o Rogério com os presos políticos da ALN [Ação Libertadora Nacional] e do MR-8 [Movimento Revolucionário 8 de Outubro] – os movimentos revolucionários que roubavam banco, assaltavam carro-forte, sequestravam o cônsul pra financiar a guerrilha. 

Os detentos apresentaram às pessoas que, se fossem organizadas, poderiam fazer a mesma coisa, embora o objetivo não fosse a guerrilha, mas sim fazer uma caixinha, pagar quem estava doente, pagar enterro de bandidos… fazer movimentos sociais e também financiar fugas e pagar advogado. 

Um belo dia, o Bagulhão chega na favela – tinha fugido da Ilha Grande – e dá livros para um monte de gente, inclusive pra mim, dizendo que a gente tinha que ler e, em seis meses, responder à arguição. Quem não respondesse tomaria tiro na mão

Pra mim caiu Guerra e Paz, de Tolstói, que eu não consegui ler. Naquela época, eu sequer tinha ido à escola. E aquela ideia de revolução continuou na minha cabeça – eu não sabia qual revolução, porque não tinha lido livro nenhum e não sabia como era uma revolução. 

A única revolução que eu sabia que não queria fazer era através do crime, essa não me interessava! A forma como o CV se organizava me seduzia — já a finalidade, não. Eu sonhava em organizar coisas parecidas com aquilo, mas que tivessem outro fim… 

E com uma diferença: eu não queria hierarquia. Queria que as lideranças surgissem a partir do momento em que tivessem um percentual maior de acerto e as pessoas iam querer segui-las naturalmente, porque era mais seguro. 

Depois do período na Favela do Sapo, o seu retorno ao bairro de Madureira como camelô parece ter sido significativo em sua trajetória de empreendedor. Concorda?
Foi na Favela do Sapo que  comecei a trabalhar. Antes, eu vivia de roubos, de pequenos furtos na rua. Ali fui trabalhar numa rinha do Bagulhão… aliás não foi trabalho, era como se fosse [uma luta de] vale tudo. Eu lutava, os adultos apostavam e a gente ganhava uma bolsa. Chegou um momento em que não quis mais lutar, porque eu apanhava muito — sempre me machucava, porque eu não era bom de briga. Passei a servir café, maconha, enfim, fazer pequenos serviços ali. 

Depois, comecei a trabalhar com a minha mãe e meu irmão vendendo cachorro-quente, bolinho de aipim, canudinho, enroladinho, cuscuz. Minha mãe fazia doces e salgados e a gente ia vender com o tabuleiro no treino, no estádio de futebol, no campo de várzea. 

Tive a primeira chance de trabalhar a partir de uma necessidade. A gente recebeu um apartamento da Cohab, a prestação era baixa, só que a gente não tinha nem travesseiro… Arrumei um trabalho de vigilante noturno pra ajudar a minha mãe

Quando volto pra Madureira, eu já tinha tido a oportunidade de trabalhar como ambulante, vendendo nas ruas. Em Madureira, o trabalho era mais perigoso. Lá tinha venda de drogas, tinha que correr da polícia – por conta de roubo de cargas e pirataria, a DRFC [Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas] deflagrava operações…

Havia relações de promiscuidade tanto com a polícia – a guarda municipal e a delegacia local, para quem você pagava pra trabalhar – quanto com a “polícia especializada” que vinha junto com as marcas como Nike e Redley pra tentar acabar com aquilo.

Era um caldeirão de problemas, uma loucura. A gente não era apenas “um camelô”. A gente era camelô no bairro de maior arrecadação de ICMS do Rio de Janeiro e no local de camelôs mais forte do estado, fora do centro da cidade. Pra sobreviver ali, você tinha que realmente ter um diferencial.

Eu era muito jovem ainda, 15 anos, virei meio que o responsável pelos camelôs. Eu blefei para o subprefeito que eu era a única pessoa capaz de organizar. Ele não acreditava, mas insisti até que ele acreditou e me deu a chance de viabilizar um espaço de 57 barracas

Eu não era mais “brabo” da rua, nem perto disso! Mas dei um ponto pra cada “brabo” e disse que se eles continuassem com a bagunça, a gente perderia tudo. Então, passamos a estar ali. Fiquei com um único espaço, que era o meu, e cada um tinha o seu. Todos passaram a trabalhar sem protagonizar aquelas loucuras todas.

Por organizar, acabei tendo um certo poder – na prefeitura, eu falava em nome dos camelôs; para os camelôs eu falava em nome da prefeitura – construí esse diálogo e diminuí essas distensões. Daí comecei a fazer festas embaixo do viaduto onde eu havia morado para entreter os camelôs que acabei chefiando. Em épocas festivas, Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia dos Namorados, ao final do trabalho a gente ia pra lá.

Um dia, por conta da chuva, transferi a festa de sexta-feira para o sábado — e, quando vi, tinha 5 mil pessoas. Era a saída da [quadra da] Portela e do Império Serrano, o pessoal não tinha pra onde ir. A partir daí passei a fazer o baile embaixo do viaduto, que se tornou o Baile Charme, uma febre no Rio de Janeiro, um evento que tem até hoje

O Baile Charme tinha como propósito as pessoas dançarem, andarem bem arrumadas e não brigarem. Era um contraponto aos bailes funk, onde tinha brigas e mortes. Mas era como se fosse a mesma família que tivesse dois filhos – um gosta de natação e o outro de futebol. Um é mais popular, outro é mais elitizado, fala menos palavrão, tem menos agressão, é mais educado. 

Como esse envolvimento com o hip hop te influenciou? E como você influenciou essa galera?
Quando eu faço o Baile Charme – cujo discurso era os pretos dançarem arrumados e não brigarem –, pensei que aquilo só reforçava a ideia de que os pretos só sabem brigar entre eles. E eu não queria esse discurso pra mim.

Eu era camelô no Rio, mas comprava o material – moletom – no Brás, em São Paulo. Conheci muitos marreteiros paulistas. E se ficava tarde pra pegar o ônibus de volta, à noite eu ficava num baile de Soul Music, onde conheci muita gente do movimento black de São Paulo.

Até que conheci um cara chamado William Santiago, dono de um selo chamado Zimbabwe Records… ele tinha o sonho de ser a Motown [icônica gravadora de black music] brasileira. Um dia, sugeri a ele fazer alguma coisa de rap no Rio. Levei pro baile o Sampa Crew e fiquei apaixonado por aquele negócio, que eu nunca tinha visto.

Passei a frequentar São Paulo e comecei a lançar um monte de bandas de rap, junto com o William Santiago. Uma delas acabou explodindo em 1999 – o Racionais MC’s. Empresariei os Racionais durante anos. Depois lancei MV Bill, que trabalhava na minha loja, onde eu vendia o Racionais desde 1997

O Bill vendia o disco dos Racionais e ia pra São Paulo de ônibus buscar os CD. Até que, por agradecimento ao quanto o Bill era profissional, correto e ético,  resolvi lançar o disco dele. Mas eu não tinha nenhuma pretensão de que fosse um sucesso. Acabou que ele virou um sucesso, transformou a vida dele e o seu entorno.

Trouxe um pouco do que eu tinha vivido para o hip hop. Nenhum deles era meu ídolo. Eu via um monte de contradições. Diziam que não iam na Globo, mas iam na MTV, como se a MTV não fosse de um grupo importante – a Abril –, que tinha problemas como todo mundo. Antes de começar os shows, metade do público estava deitada no chão e tinha fumado crack, usado todo tipo de droga, inclusive pico na veia, coisa que eu nunca tinha visto no Rio de Janeiro.

Tudo aquilo me confundia! Como eu não era do hip hop e passei a me envolver, queria entender: por que as pessoas queriam fazer uma revolução? E que revolução era essa? Eu questionava aquela revolução, em que eu não queria que meus filhos estivessem. Eu queria fazer um outro tipo de revolução. Ou eu não estava entendendo as mensagens do povo do rap, ou o rap precisava rever sua forma de se comunicar, porque a gente estava levando a juventude pra uma tragédia.

A gente não estava “empoderando” as pessoas. A gente tinha o discurso, mas na prática éramos “os pretinhos da periferia que protestavam”. A gente ganhava dinheiro protestando, como uma “indústria da denúncia”. Denunciar pode ser bom, mas o que estamos produzindo efetivamente a nível de mudança?

A diferença entre mim e o povo do hip hop é que as minhas experiências eram de outro universo, que eles conheciam pouco. Por mais que fossem pobres, a maioria ali nunca tinha morado na rua, pedido esmola, nunca foi pra um abrigo público. Quem mora na rua dificilmente sai da rua. Ou dificilmente vence na vida. 

Era difícil também eles terem a visão que eu tinha, porque quem é do hip hop vem do movimento social, do movimento negro. E a esquerda disse pra eles que é preciso “criminalizar” o dinheiro, o lucro, transformá-los em pecados. O lucro é um patrimônio exclusivo do asfalto, então quem tem dinheiro está pecando. Nós temos o compromisso de sermos ferrados, nós temos como convicção demarcar uma posição de quem não tem nada e de reclamar de quem tem algo.

Eu tinha sido mendigo, pedi esmola a infância inteira e sabia qual era o valor do dinheiro. Não me lembro de ter pedido um abraço pra ninguém! Pedia dinheiro. No abrigo, de dia, tinha que ir pra rua conseguir dinheiro. Quando fui morar numa favela, tinha que pagar o aluguel, senão seria expulso e talvez tivesse de voltar pra rua

Sempre sonhei e lutei pra ser rico. Nunca achei que dinheiro era um pecado, porque sempre fui atrás, sempre pedi dinheiro e vivi dele. Ou seja: quando vou para o movimento hip hop, levo essas minhas reflexões: “Gente, se vocês quiserem ser pobres, OK. Eu não quero ser pobre, não. Quero ver um DJ abrindo uma companhia de música. Quero que um MC seja um rapper famoso. Quero que o grafiteiro vá pro MoMA [Museu de Arte Moderna em Nova York]. Quero que um dançarino de break monte uma companhia de dança”. 

Aí, faço uma ruptura com o hip hop, monto a CUFA. Meu caminho foi da rua para o camelô, depois para o Baile Charme. E eu uso aquele desejo de ser revolucionário que o Charme não me dava, mas o hip hop dava… mas também tinha uma frustração, porque aquela revolução era muito confusa. 

O hip hop já tinha me ensinado que eu tinha de fazer o dinheiro circular entre nós. Passou a fazer sentido pra mim que os pretos não podiam ser coadjuvantes do processo que eles criavam. E tudo que fazia sentido eu levei pra CUFA. 

O objetivo inicial da CUFA era promover atividades nas áreas de educação, lazer, esportes, cultura e cidadania para melhoria da vida dos moradores de favela, certo? Já existia alguma faísca de diálogo com o asfalto, as empresas? Algo parecido com a interlocução que você fez em Madureira entre o Estado e os camelôs — e com o que você faz hoje na Favela Holding?
Sim, desde sempre. Mas quando você me pergunta se a CUFA tinha o objetivo disso ou daquilo… ela nunca teve objetivo nenhum.

Se você me pergunta o que eu pensava naquela época, digo: “Não sei”. Naquela época, eu vivia o hoje. Se morresse depois de amanhã, estava tudo bem

Eu tinha um viés empreendedor desde sempre. Na favela vendia sorvete, picolé na praia, limão, limonada em campo de futebol. Fui camelô… aí quando vou trabalhar com os Racionais MCs, descubro que eu já era um negociador de baixa renda.

Quando eu monto a CUFA, começo a ter relação com grandes marcas, como P&G, e começo a fazer a Taça das Favelas [que existe desde 2012] com um monte de ações sociais.

Você fez uma pergunta antes sobre o meu momento de virada, quando me transformei em empreendedor… Um dos momentos mais importantes foi quando conheci o traficante Bagulhão – uma espécie de pai pra mim e uma referência pra molecada… tirando a contradição de ter como referência um bandido. Mas para aquele universo, ele não era “tão bandido assim”, porque é tudo muito misturado.

Não sei quem que escreveu a frase: “o homem é fruto do seu meio”, mas o meu meio era aquele e se eu sou fruto dele. A forma como enxergo os valores é partir daquele ambiente. Se aquilo pra você é um absurdo, para outros não é

Mais ou menos como a polarização atual de gente achando que o Bolsonaro é um “mito” mesmo, que chora de amor. Tem gente que diz que ele é um genocida e chora de ódio. Então, depende de que lugar você está vendo. 

Dito isso, foi o Bagulhão que me ensinou que eu tinha de aprender a ler, ainda que por uma veia comunista. Depois, descobri que ele não era comunista. Ele era botafoguense, fã do João Saldanha [jornalista, militante político e treinador de futebol falecido em 1990]. Ele tinha que ser comunista junto com o ídolo dele, que era o técnico do Botafogo e comunista! (risos) Mesmo assim ele me ensinou que existia revolução.  

Antes dele, quando eu morava na rua, conheci o Zeca – um coroa, um velho que tinha um buraco no pescoço e falava rouco. Segundo ele mesmo, ele era um empresário paulista que morava na Bahia e meio que obrigava a família dele a ir visitá-lo… até que os filhos e a esposa morreram em um acidente de avião. Ele se sentiu responsável, resolveu renunciar a tudo e foi morar na rua. Eu nunca confirmei se isso era verdade. Ele era alcoólatra e morreu nos meus braços e do meu irmão, na rua. 

Ele foi importante pra mim porque me ensinou que existia avião, como se comia no avião, como era a Disney. Contava das viagens que ele tinha feito… e tudo aquilo abria pra gente um monte de universos que a gente jamais imaginou. A nossa vida se limitava àquilo — e ele abriu uma cortina 

Mesmo se fosse mentira, ele contava com tanta propriedade que parecia verdade — e era isso que importava. Era como se dissesse: “olha aqui o mapa da mina, vai atrás dela que ela existe”. A condição dele de empresário me trouxe a ideia de “se esse cara abandonou tudo por conta disso, eu posso ser um empresário e construir a minha família a partir disso”. 

Esses dois períodos da minha vida me deram um direcionamento. E me fizeram sonhar com possibilidades reais de uma revolução de comportamento. 

Você tem falado sobre a mudança de narrativa que se propôs a construir para que a sociedade pare de olhar a favela como carência – o que implica em piedade ou pena – e passe a olhá-la como potência e parceira de negócios, o que exige um nível maior de respeito. Essa mudança de mindset veio antes ou depois de vocês entenderem que a CUFA poderia ter parcerias com empresas?
Em 2003, o Ronaldo Fenômeno e o Zinedine Zidane fizeram um jogo de futebol na Suíça [o Jogo Contra a Pobreza, para arrecadar fundos para as Nações Unidas]. Parte dos recursos viria para o Brasil e outra parte para a Argélia. 

O recurso do Brasil, o Ronaldo trouxe pra nós. Aí montamos uma base da CUFA na Cidade de Deus. Foi uma loucura, porque ao montar uma base você não tem nada dentro, não tem funcionário, não sabe nem como fazer… loucura. 

Aí, começamos a tentar buscar parceiros. Bati em São Paulo, falei com o Paulo Skaf na FIESP. Prontamente, ele disse querer ajudar. Eu pensei: “Como? Esses caras são todos racistas, são do asfalto!” Me deram os computadores e indicaram a empresa de ônibus Andorinha como alguém para fazer a entrega. Eu a procurei e na mesma hora eles se prontificaram a me ajudar e levar os computadores pro Rio.

Parei pra refletir: “Peraí, eu acreditei que eles odeiam a gente… e eles me tratam bem desse jeito? Não tem ninguém me apresentando a eles. Eles não têm nenhum interesse nisso, porque nem estou em São Paulo. Eles não nos odeiam! Vou entender isso direito!” E passamos a fazer um monte de coisas com um monte de gente.

Comecei a perceber que ninguém odeia ninguém. O que existe é um estranhamento a partir de um distanciamento, em que todo mundo vê todo mundo de um jeito. Era muito mais medo que eles tinham de nós e muito mais agressividade que a gente tinha, por estar respondendo a um modelo imposto pra sociedade. E o distanciamento só vai crescendo

Decidi que não ia reproduzir esse tipo de coisa e ia construir aquilo que eu acho que é importante, porque passei a acreditar que a interação é a maior forma de inserção e integração social. 

Eles não têm interesse na favela até que a gente entenda que a favela tem valor. Se a gente entender que a favela tem valor, eu não vou vender carência. Vinte e cinco anos atrás, todo mundo dizia que quem morava em favela, morava numa comunidade carente. Eu dizia: “A gente não mora em comunidade carente. Parem com essa conversa! Quem nasce numa comunidade é o quê?”

Hoje, o IBGE chama a favela de aglomerado subnormal, o nome técnico. Tá bom, então, você precisa me dizer o que é a pessoa que nasce em um aglomerado subnormal? Seria uma anormal, uma subnormal… ela tem que ser alguma coisa! Quem nasce na favela, eu sei que é favelado. 

Agora, o problema não está no nome, está na realidade. Se você trocar o nome e não trocar a realidade, não resolveu nada! Se você pegar o [bairro paulistano] Jardins e chamá-lo de “Favela” e pegar uma favela de palafita e chamá-la de Jardins, ainda assim ninguém vai querer morar ali. Porque a relação é com aquilo que você está vendo e não com o nome que você dá 

O problema é que o nome favela é estigmatizado pelo que acontece ali. Portanto, você só vai mudar esse estigma a partir do momento em que você mudar aquela realidade. 

A coisa mais difícil que eu tinha a fazer era provar para a favela o quanto ela era potente. É mais fácil convencer Caetano Veloso e Gilberto Gil sobre o que eu faço do que os meus próprios pais. Essa é a maior dificuldade, porque você está lidando com pessoas que foram criadas para serem soldados — e não para serem generais. 

Aparentemente, a partir dos anos 2010, dentro das favelas ligadas à CUFA você passou a trabalhar mais o empreendedorismo, a educação que dá possibilidade para as pessoas entenderem essa potência em termos de negócio. Em 2012 assina o manifesto chamado “Setor F” que coloca a economia da favela como uma revolução social. Esse movimento culminou em 2015, quando você passou a direção da ONG para Preto Zezé e passou a tocar uma empresa, a Favela Holding, atuando junto a empreendedores comunitários, fomentando e promovendo novas oportunidades de negócios, empreendedorismo e empregabilidade. Como foi esse caminho?
Prometi a mim mesmo que depois que eu saísse da rua, nunca mais pediria nada pra ninguém. Eu queria construir relações — e isso incluía a CUFA. Em 2015, começo a pensar em como pegar todo o ativo das empresas que gostam de nós e respeitam que a gente faz – porque nós sempre entregamos o que nos propusemos a fazer.

Em certo momento, vou na P&G e digo que não quero mais o “dinheiro do social”. Como eles distribuem produtos, proponho de montarmos algo de logística na favela. Aí a gente cria a Favela Log [que faz entregas e distribuição de produtos em favelas e periferias do país

Depois, procuro a empresa de passagem aérea FlyTur e a gente monta a Favela Vai Voando [empresa de viagens focada no público das favelas e e periferias] – hoje, temos quase 500 agências de viagens.

Aí monto um instituto de pesquisas e estratégias de negócios Data Favela [focado em identificar oportunidades de negócios para empresas que desejam desenvolver suas atividades nas favelas] com Renato Meirelles. 

Hoje, estamos com 24 empresas, com um monte de gente. Se você me pergunta se isso foi planejado, digo que não foi. Isso foi simplesmente a visão que eu vou tendo a partir de uma oportunidade. 

O que estou fazendo é construir impacto nas favelas – não necessariamente com esse nome. Como eu ajudo as pessoas das favelas a terem autonomia e possibilidade de serem autossustentáveis? Como faço para um cara que mora em Cidade Tiradentes não tenha que andar duas horas e meia pra ir pro trabalho no centro de São Paulo e mais duas horas e vinte pra voltar, pra ganhar um salário mínimo?

Precisamos construir postos de trabalho fora dos grandes centros pra levar qualidade de vida pra essas pessoas. 

Isso veio desde sempre. O que estou fazendo hoje é melhorar a minha entrega, à medida que tenho mais conhecimento, amplio meu networking e cada negócio vai me levando a ter mais inteligência para montar um novo negócio. 

No começo de 2017, a Favela Holding teve um grande impulso após a venda da participação na startup Avante. Você usou os 5 milhões de reais para semear o capital em várias iniciativas. Cinco anos depois, em fevereiro deste ano, vocês lançaram o Favelas Fundos. O que aprendeu entre uma e outra iniciativa? E como se deu o envolvimento de Evanildo Barros Júnior no projeto?
Eu sempre disse que a CUFA era uma organização social com fins lucrativos — e [por isso] me chamavam de mercenário, de corrupto.

Gente, se eu não tiver lucro como é que eu pago as pessoas aqui? Na CUFA as pessoas trabalham com carteira assinada. Não trabalha com esquema de voluntários, exceto em grandes eventos de um dia — e estou acabando com isso, inclusive

A única diferença entre uma empresa e uma ONG é que uma divide o lucro entre os sócios e a outra, não. O lucro da CUFA vai ficar na CUFA para ser reinvestido nas suas organizações e atividades… ou para ter caixa pra poder fazer a Taça das Favelas quando não houver patrocinador.

Quando vendi a minha participação na Avante, pensei em criar um fundo de investimento com esses 5 milhões de reais. Mas não um fundo convencional… eu queria ouvir um monte de gente da favela que tinha negócios e ia investir em todo mundo… Se acabasse o dinheiro, acabou. E comecei a investir. Onze dessas empresas prosperam.

Agora, peguei os sócios dessas empresas e falei assim: “Olha, vou montar um fundo de verdade… vou pegar uma pessoa que estrutura fundos e cada um vai botar um dinheiro aqui”.  Temos 20 milhões de reais já disponíveis para projetos e outros 30 milhões de reais empenhados. Os 30 milhões estão comprometidos, mas de repente, não tem tanta demanda. Vamos ver…

Decidi que sou um conhecedor de favela e não sou conhecedor de mais nada. Quem precisa conhecer são os meus sócios dos mais diversos segmentos. A minha experiência nesse modelo – chamar especialistas de áreas que a gente não sabe fazer – tem sido muito boa. E assim começamos a profissionalizar tudo que a gente faz 

O fato é que o fundo existiu em 2017 sem ser um fundo. Era mais um discurso de aportar em quem eu achava que tinha possibilidade de tocar. Agora, resolvemos refazer esse fundo direito, regulado, com as empresas oriundas dos primeiros investimentos.  Então, para fazer esse fundo, a gente chama quem conhece desse negócio.

O Evanildo só topou fazer porque ele viu a força das empresas que já temos. Ele percebia claramente que era preciso estruturar não só o fundo em que ele ia aportar, mas a própria holding, em que a gente pudesse ter uma governança de mercado e algumas empresas, inclusive, capazes de virarem unicórnios muito em breve. E quem sabe tenhamos um IPO nos próximos quatro anos. 

Resolvi fazer também outras coisas junto com o fundo, como a criação de uma escola de negócios da favela. Fico triste quando vejo que a favela não fala: trade, share, match, networking e nem nada disso. Como a gente é respeitado pelo mercado sem falar essas coisas?

Eu não quero vender sentimento. Quero vender entrega dentro da lógica de mercado. Quero falar como eles falam.

Em abril, a primeira Expo Favela reuniu mais de 30 mil pessoas. Foram selecionados dez projetos, entre os 300 expostos no Golden Hall, para participar do reality show “Expo Favela – O Desafio”, uma produção da Favela Filmes com a Rede Globo. Qual o balanço que você faz dessa iniciativa?
A Expo Favela começou exatamente com o objetivo de diminuir esse gap de que acabei de falar! 

Às vezes, vou a London School, MIT, Columbia, Harvard fazer palestras e, mesmo no Brasil, o público é todo branco. Ao meu lado, mediando estão empresários falando sobre impacto social na base da pirâmide. Eu fico imaginando o que estou fazendo ali? Às vezes, após a minha fala, alguns empresários dizem: “Gostei muito de investir nesses territórios que o Celso está falando. Eles não falam a nossa língua…”. 

Eu penso: “É verdade: eles não falam a língua de vocês… e não vão falar nunca porque eles não estão aqui, não foram convidados. Então, talvez seja melhor parar de falar sobre essas pessoas, porque vocês não se importam com elas. Se vocês se importassem, viabilizariam bolsas nessas universidades e nesses espaços de fala para poder entender essas pessoas… Nessa plateia não veio ninguém do meu mundo, ninguém do mundo para onde vocês estão direcionando essas reflexões”. 

Quando eu faço a Expo Favela é exatamente para ter no mesmo palco Abílio Diniz, Luciano Huck, Alok, Neca Setubal, Luiza Trajano, os presidentes da Vivo, da Claro e da GOL debatendo sobre esses mesmos temas — mas com a favela junto com eles! E, na plateia, a favela e o asfalto debatendo 

Entregamos e foi um sucesso absoluto de produção e conteúdo, inclusive, demonstrando que, na verdade, a favela é potência e não carência. 

Tivemos na feira 31 fundos de investimento, o que demonstra que não há preconceito, e muitos investiram. De lá saíram os dez empreendedores que melhor performaram na feira e viraram um projeto de reality show pra TV Globo, realizado pela Favela Filmes. 

O objetivo era construir um projeto de massificação da ideia de potência desse território. Algo que não fosse apenas um evento, mas um movimento crescente em que as pessoas começassem a mudar a percepção do que nós representamos.

Escrevi um artigo recentemente, “A economia das favelas: o Quarto Setor”…  é uma provocação sobre a economia da favela, uma população que consome e produz 137 bilhões de reais por ano. A criminalização e a cultura de que o lucro é um pecado só serve pra nós [favelados]. Aí eu crio o debate do Quarto Setor – que a economia que transforma a favela não é pecado, porra nenhuma!

Se nenhum dos três setores “tradicionais”, que eu respeito, consegue resolver as demandas que vêm da favela, então a favela precisa ser o Quarto Setor para dialogar com demais. Só que sua economia e potência precisam ser encaradas como um setor com iniciativa, valor e reputação à parte

A Expo Favela é o retrato disso: você tem lá todo mundo no palco. Alguém pode dizer: “Ah, mas esse é um evento da favela!”. Eu pergunto: “Quem é que disse isso?” Esse é um evento produzido pela favela, em que a favela tem protagonismo, mas todos os brancos, todos os ricos, todos os bilionários são bem-vindos na nossa festa. Porém, a festa é nossa!

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