Como ter um negócio rentável e sustentável, na área de jornalismo, sem usar a publicidade tradicional e sem vender o seu conteúdo? Foi pensando nisso que os jornalistas Clayton Melo, 43 e Denize Bacoccina, 51, chegaram ao modelo de negócios do projeto A Vida no Centro.
Primeiro, eles criaram um site e, aos poucos, evoluíram o modelo para oferecer os serviços que sustentam o editorial: patrocínio à plataforma digital, projetos de conteúdo temático, webseries, eventos e curadoria de marketing para empresas que buscam se associar à região central. Clayton conta: “Somos curadores do Centro de São Paulo. Ajudamos marcas a se inserirem nesse movimento de ressignificação e se conectarem com um público jovem, cosmopolita e que gosta de aproveitar a vida urbana”.
Já sobre o editorial, a dupla tem bem definido que ele é “intocável”. Denize diz: “O editorial é o produto para o leitor, mas não é sustentável como produto. Se quisermos vendê-lo, vai deixar de ter credibilidade. O leitor do editorial é o ativo para vendermos as outras coisas”. Ela lembra que essa forma de trabalhar não é nada nova, ao contrário: “Foi a receita das empresas jornalísticas durante todo o século 20: os jornais vendiam classificados para ter um jornal independente. Vendemos outras coisas pra ter um editorial independente”.
ANTES DE COLOCAR O SITE NO AR, ELES FORAM ATRÁS DE LEITORES
Quando se mudaram para o centro de São Paulo, em 2017, Clayton e Denize perceberam que existia uma cena criativa e cultural forte na região, mas que havia um vácuo de notícias sobre o assunto. E mais: muita gente tinha medo do centro justamente porque não acessava a informação de que a região estava mudando. Clayton fala:
“Ajudamos a resolver o problema da imagem do Centro de São Paulo ainda visto como um lugar perigoso, uma visão exagerada e que remete mais ao passado do que ao presente”
Ele continua: “Sim, o Centro tem problemas a resolver, mas a percepção do problema é muito maior do que a realidade e isso prejudica os negócios de uma vasta gama de micro, pequenos e médios empreendedores e, também, de grandes empresas. Há uma cena de empreendedorismo criativo intensa na região, com destaque para as áreas de gastronomia e cultura, e isso precisa ser mostrado”.
Com essas informações em mãos e com a experiência de quem estava morando na região, eles acharam que poderiam ter um bom negócio pela frente. Para testar a hipótese de que teriam leitores para um conteúdo focado no que há de bom e interessante no Centro da capital paulista, os dois foram para a rua durante a Virada Cultural para produzir conteúdo. Ali, validaram a proposta. Denize diz: “Notamos que tinha uma ideia de pertencimento para ser trabalhada e que isso era um fator de engajamento”. Eram pessoas que moravam ou trabalhavam no centro, sabiam que o local era bom, mas precisavam lidar com a desconfiança de familiares e amigos.
REPUTAÇÃO É O GRANDE NEGÓCIO
Com a ideia validada, eles começaram a produzir conteúdo próprio e continuaram a ver um crescimento orgânico da comunidade. E investiram todo o tempo e cuidado disponível para fazer crescer essa base de leitores. Denize fala:
“O modelo de negócios está calcado na reputação. Construir isso é demorado, mas planejamos ficar alguns meses sem receita, focados apenas em trabalhar essa reputação”
Ela lembra que durante esse processo eles receberam muitos conselhos para vender o conteúdo porque isso poderia gerar receita mais rapidamente. Mas não se renderam. “É preciso bancar a decisão. Isso exige de novos empreendedores planejamento financeiro, saber que não vai ganhar dinheiro no mês seguinte. Caso contrário, o futuro do negócio fica comprometido”, afirma a jornalista. Para começar o negócio eles investiram 50 mil reais de recursos próprios e muito tempo de trabalho. Em 2018, os frutos vieram: faturaram 120 mil reais.
Focar no editorial não significou não pensar no comercial. Durante esse período, Clayton e Denize visitaram agências e clientes em potencial para apresentar o projeto e sentir qual era a recepção. Eles sabiam que sem números e cases para apresentar seria difícil conquistar o dinheiro de patrocinadores. “Foi um momento para ouvir o que eles tinham a nos dizer, ver se aquilo fazia sentido e se havia potencial de conexão”, conta Denize. Embora ninguém tenha comprado, literalmente, a ideia no começo, eles perceberam que houve interesse e seguiram na construção da reputação.
A estratégia deu certo e os primeiros clientes que chegaram eram executivos e profissionais de marketing que acompanhavam o A vida no Centro como leitores e perceberam que havia uma conexão entre o que o veículo dizia e a mensagem que eles queriam passar. “O nosso cliente é uma empresa com a mesma visão de mundo que a gente. Ele fala através da gente com o consumidor que quer atingir. A nossa mensagem coincide com a visão deles”, afirma a empreendedora.
A partir da presença das marcas, surgiu a demanda de alguns clientes para colocar o conteúdo produzido pelo A Vida no Centro na página das empresas — um movimento sobre o qual eles não haviam pensado a respeito. Mesmo nessa situação, a independência editorial continua. “Não trabalhamos na linha de fornecedor de conteúdo. O que esse cliente quer é colocar as nossas dicas, com a nossa marca, dentro do ambiente digital deles. É um cliente maduro do ponto de vista do marketing. Ele não quer direcionar o conteúdo”, conta Clayton.
Os eventos são outra parte importante do negócio porque é um momento de aproximar os leitores das marcas, das empresas, do poder público e de outras pessoas que vivem ou trabalham no centro. Para isso, a dupla criou a marca Diálogos A Vida no Centro, que promove encontros com pessoas de diferentes áreas envolvidas nesse trabalho de ressignificação do centro de São Paulo.
O primeiro desses eventos, por exemplo, aconteceu em um prédio da região central totalmente reformado por uma empresa. Os presentes puderam conhecer o espaço e discutir com empresários que investem na região, vereadores, artistas e políticos questões relacionadas ao desenvolvimento urbano e, inclusive, questões de zeladoria, que não fazem parte da pauta do A vida no Centro. “No projeto editorial, não fomos para o lado hard news do jornalismo, o que não significa não olhar para os problemas. Podemos discutir esses temas de maneira propositiva. E o Diálogos A Vida no Centro faz isso porque é um espaço de conversa. Ali, a gente provoca o poder público para a ação”, afirma Clayton.
JORNALISTAS TAMBÉM PRECISAM PENSAR EM MVP
Ao criar o próprio negócio, Denize e Clayton abraçaram uma jornada que muitos jornalistas e profissionais de comunicação têm feito: a do empreendedorismo. Denize conta que nunca havia empreendido, mas que a experiência em cargos executivos de empresas a ajudou nesse momento. Jornalista há mais de 20 anos, ela já trabalhou no Correio Popular de Campinas, Gazeta Mercantil, O Estado de S.Paulo, BBC (em Londres e Washington), Isto é Dinheiro e na EBC. Hoje, além do A vida no Centro, ela trabalha em uma agência de vídeo alemã, mas faz um esquema home office durante parte do dia. “Eu ficava pensando no meu próximo desafio profissional porque eu queria algo diferente e via que as redações estavam acabando.” Mesmo sem a experiência empreendedora, ela acha que essa larga experiência em redações ajuda muito: “Na prática, o que a gente faz é discutir conteúdo”.
Já Clayton é o sócio que tem mais experiência tanto no empreendedorismo quanto no vocabulário e estratégia de marketing. Também jornalista há mais de 20 anos, ele começou na TV Gazeta, passou pelo jornal Meio & Mensagem, Gazeta Mercantil, IDG Now e Isto é Dinheiro. Acompanhou de perto, como jornalista, o surgimento de negócios digitais no Brasil. No meio dessa jornada, teve algumas experiências empreendedoras. Em 2003, fundou a Editora Toda Palavra, que produzia revistas customizadas e fazia comunicação institucional para empresas. “Vivi quatro anos desse negócio e foi muito importante porque me ajudou a desenvolver a prática de pensar com a cabeça de marketing”, diz.
Em 2016, ele fundou com outros sócios a startup Satartagro, projeto de conteúdo voltado para o agronegócio. Ficou lá até o final de 2018, quando passou a se dedicar em tempo integral ao A Vida no Centro. “Nesse meio tempo fiz cursos de empreendedorismo para me preparar um pouco melhor. Quando montamos o A vida no centro, já estava me sentindo pronto para empreender, inclusive sabendo que era preciso ter paciência até ter receita recorrente.”
Clayton e Denize acreditam que os profissionais de comunicação precisam olhar mais para o universo das startups para criar negócios que sejam sustentáveis e escaláveis. Não dá pra pensar apenas no editorial. Clayton diz: “A discussão de startup e jornalismo não está colocada. A gente foi testando e fazendo ajustes”. Ele prossegue:
“Jornalista tem que pensar como startup, criar um MVP, testar a ideia, validar e voltar. Não basta fazer um produto editorial legal”
Hoje, o A vida no Centro faz parte do We Work Labs, programa global do WeWork para startups de impacto social, e do Centro de Referência em Economia Criativa do Sebrae. “Nestes dois programas também ajudamos como mentores. E somos co-curadores do Festival Path”, conta Clayton.
O FUTURO DAS CIDADES FAZ PARTE DO BUSINESS PLAN
Consolidados como produtores de conteúdo sobre o Centro, com uma comunidade engajada, que interessa para eles e para os clientes, o próximo passo dos sócios, que já está em andamento, é colocar no mercado uma divisão de pesquisas com dados sobre o Centro de São Paulo, comportamento e estilo de vida.
Além de usar as pesquisas como um produto editorial, eles vão desenvolver relatórios que podem interessar a empresas, marcas e outros clientes. “O centro de São Paulo é um lugar gerador de tendência. O tipo de comportamento que começa aqui vai se espalhando por toda a cidade”, diz Denize.
Junto com as outras frentes de trabalho, eles acreditam que podem ajudar a resolver o problema de imagem que o Centro de São Paulo ainda tem e que é muito prejudicial aos negócios. Clayton afirma:
“Buscamos ressignificar a região como um lugar de encontro, respeito à diversidade, oportunidades, economia criativa, inovação e não mais um lugar do medo e do preconceito”
Ele ainda complementa: “Acreditamos que esse é o primeiro passo para que a transformação completa aconteça. Os desafios e problemas sociais ainda são inúmeros, mas a curva já virou e queremos ser um instrumento dessa virada, dando a visibilidade e conectando os atores desse processo”. O jornalista acredita que esse modelo de trabalho pode ser replicado para outros centros urbanos. “O Centro é um microcosmo do que acontece em São Paulo e também em outras metrópoles brasileiras”.
A partir desse ângulo, o A Vida no Centro se insere na discussão sobre o futuro das cidades, mirando os desafios das metrópoles no século 21, como a questão da mobilidade urbana, sustentabilidade, tendências, comportamento, moradia, tecnologias sociais, diversidade e o papel da economia criativa em todo esse processo
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