Como arejar a cultura de criatividade dentro de corporações centenárias?

Giuliana Tatini - 7 maio 2015Caio Del Manto, publicitário, trabalhou 15 anos em agências e há apenas dois é Head de Brand Strategy na Mondelez.
Caio Del Manto, publicitário, trabalhou 15 anos em agências e há apenas dois é Head de Brand Strategy na Mondelez.
Giuliana Tatini - 7 maio 2015
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(ATUALIZAÇÃO em 2/6/15: Caio Delmanto deixou a Mondelez para ser Chief Strategy Officer na agência Hello LOLA)

A pergunta que abre este post reflete o cenário desafiador enfrentado pela Mondelez, empresa nascida da divisão da centenária Kraft Foods, que no Brasil é muito conhecida pelas marcas da Lacta, parte da empresa desde os anos 90. A Mondelez apostou em um passo corajoso e incorporou disciplinas que muitas corporações deste porte entregam a outros parceiros. Criou, por exemplo, a cadeira de head of Brand Strategy and Creative Excellence, e foi buscar em uma agência de publicidade um planejador com 15 anos de experiência para comandar o processo de reposicionamento de marcas como Bis, Sonho de Valsa e Tang.

Caio Del Manto é publicitário formado na Escola Superior de Propaganda e Marketing e filho de psicólogos. Apaixonado por marcas (e pelo poder delas) desde moleque, começou sua carreira numa época em que o planejamento em agências trabalhava com tempo e profundidade. “Hoje o planejamento faz hits”, avisa, sem tom de crítica. Passou por uma série de agências: AGE Isobar, Fallon London, JWT, McCann, Ogilvy, Leo Burnett. E trabalhou com clientes como Nokia, GM, Unilever, Micorsoft e J&J. Dentro de uma corporação há cerca de dois anos, defende que a estratégia de marca é o norte da inovação e que a cultura de criatividade é a ponte para o futuro das corporações. Caio está feliz: em tão pouco tempo, já colhe resultados. Um deles, talvez o mais significativo do seu papel dentro da Mondelez, poderia ser resumido assim: “Sonho de Valsa —como o poder das marcas pode determinar os rumos da inovação em empresas tradicionais”.

O que faz o Head de Brand Strategy na Mondelez?
Quando cheguei na Mondelez há dois anos, esta posição era recém-criada e fazia parte de um movimento para trazer para dentro especialidades que pudessem chacoalhar o mindset da empresa, especialmente com relação a cultura de marca, cultura de criatividade e comunicação. Funciona como uma consultoria interna: a cada vez que um head de marketing ou presidente de categoria precisa rever o posicionamento de uma marca, somos chamados. Os Heads de Brand Strategy são sete pessoas, uma em cada região do mundo — duas na Europa. Eu sou responsável pela América Latina.

Como é o trabalho de reposicionamento de marcas tão tradicionais?
A maioria das marcas da Mondelez tem 70, 80 anos [Nota: Oreo tem 103 anos, Halls tem 85 anos, Tang tem 76 e Bis, 73]. Então usamos uma metodologia proprietária em que tudo começa da história da marca, ou melhor, da essência da marca através da História. Em vez de simplesmente olhar para o futuro e escrever um posicionamento a partir dos desafios de mercado e de negócio, partimos do que essa marca significou como base para a construção de um posicionamento para os próximos cinco anos. Aí, fazemos uma análise comum em qualquer empresa: que mercado esta marca quer construir, qual o insight do consumidor, qual a reinvenção na categoria que ela vai trazer etc. Mais importante, quando olhamos para o futuro, é o viés cultural, ou seja, qual o ponto de vista que essa marca tem que ter na cultura popular.

O consumidor não quer ver um discurso bonito na comunicação. Ele quer ver uma entrega real, no produto, de um pensamento maior e mais importante.

Qual seria um exemplo prático dessa busca por um ponto de vista cultural?
Vou ter dar exemplo das duas coisas: do olhar para o passado e para o futuro, que é o caso de Sonho de Valsa que acabou de sair (em meados de abril de 2015). Sonho de Valsa é uma marca que tem 77 anos e, desde que foi lançada, fala de amor, de romance. É uma marca consistente, que descreveu todas as mudanças no romance desde os anos 1940, mas uma marca que envelheceu junto com o conceito de romance. Pensando no futuro, uma das formas de criar mais relevância cultural é ter uma opinião, um ponto de vista — afinal, a marca nunca teve opinião. É aqui que começa um mergulho de investigação na cultura popular. A gente assistiu muito Hollywood, Disney até, e notamos que a lógica do romance está mudando. Estou falando de filmes como 500 dias com ela, que mostra um menino apaixonado e uma menina independente. Está sendo quebrada a expectativa de futuro romântico, as pessoas estão frustradas com o modelo de final feliz. A realidade é diferente disso, a realidade do amor é o agora. O novo posicionamento de Sonho de Valsa é pautado nesse ponto de vista. E propõe “Pense Menos e Ame Mais”.

campanha "Pense Menos, Ame Mais", do Sonho de Valsa

Origami da campanha “Pense Menos e Ame Mais”, do Sonho de Valsa

Você defende a ideia de que o objetivo da estratégia de marca não é vender mais, já que venda pode depender de uma série de fatores, de questões mercadológicas, até de qualidade de produto. Dentro desse ponto de vista, a marca seria ainda mais importante: ela agregaria um valor único e, aí sim, poderia mudar o negócio. Como esse novo posicionamento muda o negócio de Sonho de Valsa?
Este é um produto icônico, as pessoas amam Sonho de Valsa. Foi o primeiro bombom do Brasil, o primeiro chocolate do país acessível para uma população classe média. E tem volumes absurdos de venda. Não há, portanto, um problema de produto. Mas as pessoas têm um relacionamento, digamos, muito funcional: as pessoas adoram — e só. Queremos reforçar o relacionamento emocional que as pessoas tem com a marca. Como a marca envelheceu, os indicadores de que é uma marca inovadora, que tem uma opinião, que traz algo diferente pra sociedade foram se perdendo ao longo do tempo. A gente não quer que as pessoas olhem para Sonho de Valsa e falem “esse é um bombom que fala sobre romance”. A gente quer que elas digam “essa é uma marca que tem uma opinião sobre uma coisa que eu valorizo”. Dessa forma abre-se espaço para ir muito além do bombom: é uma marca, não um bombom. Posso criar outros produtos, formatos, serviços. Este tipo de reposicionamento pauta uma estratégia de inovação para o futuro daquela marca.

Por que mudar? A gente olha a inovação como valor. Não preciso mudar o bombom. Preciso repensar qual é o papel deste bombom na vida das pessoas.

A estratégia de marca tem, então, um papel muito mais ambicioso na Mondelez.
Esse é o nosso grande desafio e o de empresas desse porte. O consumidor não quer ver um discurso bonito na comunicação. Ele quer ver uma entrega real, no produto, de um pensamento maior e mais importante. O que dá esse norte à inovação do produto é a estratégia de marca: que papel essa marca quer ter na sociedade, que opinião ela tem e, por conta dessa opinião, que tipo de atitude ela vai inspirar. A equipe de inovação olha para isso e pensa produtos que entregam essa atitude, que materializam esse pensamento. Hoje, olhando o mercado e outras empresas, isto é mais discurso do que prática. Por isso é um desafio.

A estratégia de marca deixa de comunicar diferenciais de produtos para fora da empresa e passa a trazer para dentro da empresa necessidades e oportunidades que a sociedade está pedindo. É esse o rumo?
Sim. É pensar marca não como um asset de comunicação, mas no que ela vai trazer de valor para a companhia. É pensar a marca como um asset de negócio da companhia, que vai inspirar o trabalho de todo mundo: comunicação, inovação, marketing. Muitas das nossas marcas são líderes de categoria e é o papel do líder ditar o que vai ser o futuro.

É um sentido muito mais relevante para a palavra “inovação”, que muita gente confunde com novidade. Como inovar em marcas centenárias?
Tem vários jeitos de fazer! Sonho de Valsa é o mesmo bombom há 77 anos. Por que mudar? Para que mudar? Hoje em dia tem um pensamento de que tudo precisa mudar. A gente está tentando olhar a inovação como valor. Não preciso mudar o bombom. Preciso repensar qual é o papel deste bombom na vida das pessoas, a que ele se propõe. É o mesmo bombom, mas pode ser vendido de outra forma. Não é simplesmente “ah, vou criar um novo sabor”.

Você se formou profissionalmente dentro de agências de publicidade. Como é passar de agência para cliente?
Quando comecei a trabalhar há 15 anos em planejamento de agência, a gente trabalhava como consultoria de marca. Hoje o planejamento constrói hits. Isso em um ritmo cada vez mais acelerado: trabalhos que antes levavam um ano e meio hoje são campanhas de dois meses. Um reflexo, claro, do mundo digital. Outra coisa que mudou foi o fim de uma visão total da marca com a chegada das segmentação das agências. Quando cheguei à Mondelez foi como se voltasse às minhas raízes de planejador. Estou pensando uma marca, não estou pensando um hit. A resposta que vou dar no negócio não é daqui a seis meses, é nos próximos cinco anos. Me senti um pouco ingênuo até. Por um lado, tenho que pensar variantes de negócio que não considerava quando estava na agência. Por outro, tenho que respeitar muito mais a marca. Você passa a entendê-la com um peso maior, e de um jeito mais rico. Sem falar na mudança de ambiente: é uma empresa muito maior do que qualquer agência que trabalhei, e estou em uma posição regional e global. Tenho um trabalho de influenciar, de fazer a companhia e as pessoas acreditarem nas marcas e no poder da criatividade.

Como fazer com que as pessoas dentro da empresa acreditem nas marcas?
Com educação, com treinamento. No ano passado estive em vários países, indo lá e trabalhando junto, reescrevendo briefs, sentando e olhando para as estratégias das marcas e refazendo, uma a uma. Existe uma metodologia aplicada para inovação que é a Garagem, um modelo próximo da dinâmica de tecnologia. A gente junta talentos de várias áreas diferentes da empresa, conta com ajuda de parceiros como Contagious e Hyper Island, e faz uma imersão na marca. Dura de cinco a nove dias, concentrados 24 horas e juntos em um mesmo lugar. É um processo de co-criação em que chegamos a prototipar algumas das ideias.

Caio (ao fundo e à direita, de óculos) em uma das Garagens que fez para a Tang, em Buenos Aires, em 2014.

Caio (ao fundo e à direita, de óculos) em uma das Garagens que fez para a Tang, em Buenos Aires, em 2014, com gente do mundo inteiro: criativos, estrategistas, marqueteiros, programadores, especialistas em tendências, além de parceiros da Contagious, +Castro e Ogilvy.

Nesse tipo de processo você está buscando o quê? Desenvolver as pessoas ou chegar realmente a um protótipo?
As duas coisas são importantes. Existe um output de produto que é aplicado. Já desenvolvemos, por exemplo, mecânicas de promoções bem sucedidas assim. Mas o desenvolvimento das pessoas e de uma cultura de criatividade é tão importante quanto o resultado concreto. Quando a gente começa esse processo da Garagem, fazemos um check-in cuja regra única é “ninguém traz o crachá”. Ninguém fala o cargo, o que faz. Você é uma pessoa. Sem hierarquia. Queremos o ser humano, o que ele está sentindo, as suas expectativas. Ao longo dos dias, é muito difícil sair do mindset do seu trabalho e voltar a usar a sua capacidade criativa natural, seu repertório. Mas é esse o ponto. O recheio da Garagem é a criatividade natural de cada um e sua contribuição para co-criar com a mão na massa.

O que já mudou na cultura de criatividade desde que você chegou na Mondelez?
Muita coisa já mudou. O critério de julgamento para ideias melhorou muito. Falo no geral sobre a receptividade de ideias apresentadas por áreas internas, por consultorias de inovação, pelas agências de publicidade. As coisas que a gente está conseguindo aprovar e que já estão indo para a rua já mostram isso. Por exemplo, a campanha de Sonho de Valsa tem um beijo gay no meio do filme, e talvez tenha sido uma das primeiras marcas que levou um beijo gay para a TV. Esse tipo de ousadia, de ter uma opinião e causar impacto na cultura popular e na sociedade, enfim, o critério criativo de escolher essa ideia é fruto deste novo pensamento. O beijo gay foi o resultado natural da execução, ele não é um esforço para chamar a atenção. É claro que temos a noção de que é uma marca tradicional mostrando uma coisa nova. Mas nessa coisa nova a gente acredita.

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