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Do uso inclusivo de cosméticos à prospecção de petróleo em águas profundas: como o CESAR ajuda grandes empresas a inovar

Aline Scherer - 13 fev 2025
Eduardo Peixoto, CEO do CESAR.
Aline Scherer - 13 fev 2025
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Os anos 1990 foram efervescentes em Pernambuco. Em 1991, o movimento Manguebeat chacoalhou a cena cultural do Recife, abrindo caminho para uma nova geração de artistas (que teve em Chico Science & Nação Zumbi seu maior expoente) e atraiu para o estado as atenções de dentro e fora do Brasil.

Cinco anos depois, foi a vez de outra transformação na capital pernambucana.

Preocupados com a evasão de talentos atrás de oportunidades no Sul e Sudeste ou em outros países, professores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) criaram, em 1996, o Centro de Estudos e Sistemas Avançados de Recife, mais conhecido por seu acrônimo CESAR. Uma instituição privada, sem fins lucrativos e autossustentável, com a proposta de estancar essa fuga de cérebros e fomentar a a economia local por meio da tecnologia e da inovação. 

Passaram-se mais cinco anos e surgiu ali o polo tecnológico Porto Digital, em 2001, reunindo empresas para compor o ecossistema de inovação local e revitalizando uma área de prédios históricos. CESAR foi uma das primeiras instituições a integrar o Porto Digital, onde ocupa hoje uma área de 10 mil metros quadrados no Recife Antigo. O centro da capital pernambucana é onde também ocorrem os desfiles de blocos de rua de Carnaval. E o CESAR tem seu próprio bloco, o Dá o Load

“Entre os nossos valores estão a diversão e a irreverência”, diz Eduardo Peixoto, 59. Engenheiro com alma de cientista, Eduardo tem 23 anos de CESAR e os últimos três deles como CEO, cargo que assumiu em fevereiro de 2022. Ele é um exemplo daquelas mentes brilhantes que o CESAR ajudou Pernambuco a atrair de volta.

Por ano, a instituição realiza cerca de 130 projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação de empresas locais, nacionais e globais. O superávit é reinvestido na organização, em frentes como o laboratório de segurança cibernética, o grupo de estudos sobre inteligência artificial, e a construção do laboratório de computação quântica e de alto desempenho – as três principais linhas de pesquisa do CESAR. 

Na parte de Ensino, a instituição oferece graduações em Ciências da Computação e Design, e em Gestão da Tecnologia da Informação; tem um mestrado em Engenharia de Software e Design, e um doutorado em Engenharia de Software, além de cursos de especialização, extensão e corporativos. 

Leia mais a entrevista do CEO do CESAR ao Draft:

 

Como foi a sua trajetória antes de chegar ao CESAR?
Eu nasci em 1965, na década da corrida espacial. Meu pai é médico e foi fazer medicina porque adorava física e matemática, e quando eu era pequeno ele montava uns protótipos junto comigo mostrando como é que funcionava um foguete. E assim eu não tive dificuldade nenhuma na escola para aprender física, muito pelo contrário, é uma matéria que eu sempre gostei — entender as coisas funcionam, a natureza. 

Eu achava que queria ser cientista; como não tem uma graduação de cientista, fui fazer engenharia eletrônica porque, na minha cabeça pelo menos, era o curso mais de vanguarda na época. A ciência da computação ainda estava se estabelecendo 

Feita a graduação, entrei para Telecomunicações. Trabalhei na Philips, em desenvolvimento de produto. Depois fui para a Holanda, fiz o mestrado e comecei a me aproximar mais da área de computação. Trabalhei na definição e na construção de uma rede bastante popular hoje, chama CAN — Control Area Network, mas foi tão usada na indústria automobilística que ficou popularmente conhecida como Car Area Network, tem uma certa aproximação com a parte de redes de computadores.

Voltei para o Brasil, morei três anos em São Paulo, depois fui para a Suíça, ainda em telecomunicações, passei cinco anos e no final de 2001 encontrei o que eu queria fazer em Recife. Voltei, definitivamente, e entrei para o CESAR, que estava com cinco anos. Foi por currículo e indicação de pessoas com quem já tinha trabalhado antes. 

Acho que quando a gente faz o bem e trabalha bem, as coisas vão se conectando para frente da melhor forma.

O surgimento do CESAR ainda nos anos 1990, quando a internet engatinhava e não se falava em inovação como hoje, parece em retrospecto ter sido uma façanha. Pode contextualizar essa origem?
O CESAR surgiu dentro da universidade [UFPE], como um departamento de informática, que vinha se preparando para ser de classe mundial. Já era reconhecido a nível Brasil, pela vanguarda que tinha com tecnologia da informação e comunicação e, principalmente, por ter adotado muito rapidamente Java, linguagem de programação que trazia um sonho embutido. 

Havia diferentes plataformas e elas eram verticais: a plataforma da IBM; o Windows, da Microsoft, começando a ser usado de forma corporativa. Se a gente voltar um pouco no tempo, o software não era nem vendido. As empresas vendiam hardware, e davam software. 

O ponto é que a beleza do software é a adaptabilidade e agilidade de você construir outras soluções em cima dele – mas tem que ser por uma vertical. Então você fazia para um, depois tinha que refazer tudinho para outra plataforma, se fosse necessário – e o Java entrou como uma camada de “faça uma vez e rode em qualquer lugar” 

O sistema financeiro no Brasil sempre foi muito desenvolvido do ponto de vista computacional, por conta das flutuações da economia, a hiperinflação que a gente viveu e que estava sendo estancada ali naquela época [na esteira do Plano Real]; sempre foi um grande demandante de tecnologia da informação. 

E os bancos vinham aqui em Recife, pegavam os alunos que saíam da informática e levavam para São Paulo. Ou então eles mesmos, os alunos, olhavam para o lado e diziam: “Se eu ficar aqui em Recife, vou fazer o quê?” Provavelmente, sem demérito nenhum, se já existisse Uber, seria motorista de Uber. 

Na época, talvez você pudesse almejar ser vendedor em uma concessionária de veículos. Definitivamente, não era o que eu queria e nem o que queria muita gente [de tecnologia]. Então, havia um êxodo: os talentos saíam de Recife para empresas mais robustas do Sul e Sudeste ou saíam do país com uma alternativa melhor para suas carreiras. 

O CESAR foi criado em 1996, um ano depois do lançamento da internet comercial, para construir um ecossistema de inovação em tecnologia da informação e comunicação aqui no Recife, para reter talentos que, por sua vez, construiriam empresas que fariam isso virar um ciclo de realimentação positiva, fazendo com que esse ecossistema crescesse

Essa era a ideia: no primeiro momento reter e depois atrair talentos – os que tinham saído, trazê-los de volta; e outros que eram de fora e que viessem para cá também. Então, [surgiu] com essa pegada de olhar para problemas relevantes e ter uma conexão com o mercado. 

A universidade no Brasil é muito acadêmica, tem um olhar muito para dentro. O CESAR é sem fins lucrativos exatamente por isso: para ser essa ponte entre o mercado, que tem problemas interessantes e relevantes para resolver, e a universidade, que tem esse conhecimento. 

Em 2006, quando entendemos que as universidades públicas não seriam capazes de fornecer para o mercado as pessoas na quantidade e com o conhecimento necessário, o CESAR começou a atuar em educação, primeiro com um mestrado profissional em engenharia de software, e 2010 um outro mestrado, em design, e mais pra frente criamos também a graduação. 

Hoje, estamos perto de nos tornar um centro universitário. Mas a gente não foi rápido nem grande o suficiente, porque o problema realmente aconteceu durante a pandemia: a demanda por profissional cresceu enormemente e faltou – e continua faltando – pessoas no setor de TI 

A gente tem [atualmente] cinco cursos de graduação, dois mestrados e um doutorado, todos relacionados com tecnologia da informação e comunicação ou design.

Como a localização do CESAR dentro do parque tecnológico Porto Digital facilita o desenvolvimento de soluções? E como se dão essas trocas entre CESAR e o ecossistema de inovação local?
Mais ou menos cinco anos depois [da fundação], teve-se um entendimento de que o CESAR sozinho não seria suficiente. Mais focado em inovação, ele precisaria de outra instituição que trabalhasse efetivamente na articulação do ecossistema. 

E aí, foi criado o Porto Digital em 2001, com essa missão de levar a nova economia para o Centro Histórico do Recife, que estava meio abandonado, degradado – e [assim] a própria nova economia ajudasse na reconstrução do ambiente.

Teve um trabalho inicial de convencer as teles [empresas de telecomunicações] a botar infraestrutura cabeada, e então tentar atrair outras empresas para cá. Esse negócio foi devagar; quando pegou movimento, começou a andar bem mais rápido. 

Hoje, o ecossistema tem mais de 350 empresas que em conjunto faturam mais de 4 bilhões de reais. Tem mais de 15 mil pessoas trabalhando diretamente com o setor de TI aqui [no Centro Histórico de Recife] 

São empresas como a Accenture; o Banco do Brasil, que trouxe a parte do cloud deles para cá; a Deloitte está aqui, a NTT Data, a B3… E tem várias empresas que foram criadas a partir de um movimento de empreendedorismo local. 

A consequência positiva é a atração e a retenção de pessoas. O CESAR sozinho tem uns 1 300 colaboradores. Estamos também em vários outros lugares. Tem mais 700 pessoas aqui na região metropolitana de Recife, outras 600 entre Manaus, São Paulo, principalmente, Rio de Janeiro e Sorocaba, no interior [paulista]. 

O Porto Digital é o ambiente, o ecossistema, o responsável pela atração e pelo trabalho de articulação dos interesses das empresas de tecnologia instaladas aqui, e o CESAR é o centro de inovação e educação desse ambiente.

O CESAR coleciona premiações e mantém parcerias com diversas empresas. Que projetos você poderia destacar como exemplo?
Dos reconhecimentos externos, no ano passado a gente foi finalista no prêmio de inovação do SXSW com uma solução chamada Tradutor de Libras [Língua Brasileira de Sinais, usada por pessoas com deficiência auditiva]. 

Pouca gente sabe se comunicar dessa forma, então ficou uma comunidade muito fechada. E a gente entendeu que de forma inclusiva, olhando para o potencial criado com inteligência artificial, poderia trazer melhoria de qualidade nessa interação. 

Trabalhamos por três anos junto com a Lenovo e conseguimos construir uma solução onde o surdo gesticula com Libras, e um computador em tempo real vai produzindo o som em português, ou outro idioma, do que ele está falando 

Fazer a tradução para outra língua é bem tranquilo; a dificuldade maior é criar o banco de reconhecimento de Libras porque ela não é única, também tem variações dentro do Brasil, com sotaques. 

É muito esse fluxo: o mercado ter uma necessidade e trazê-la aqui para a gente resolver. Por que é importante para a Lenovo essa solução? Para ela dizer que os servidores dela rodam muito bem IA. E que bom que eles estavam querendo promover a qualidade dos servidores com uma solução inclusiva.

Este ano estamos concorrendo novamente no SXSW com outra solução inclusiva para o Grupo Boticário, de batom inteligente. E essa aí foi muito mais demorada, porque envolve hardware, reconhecimento facial, um monte de tecnologia embarcada para resolver um problema: permitir que pessoas com desabilidades visuais ou motoras passem batom sem borrar 

Imagina você passar batom em você mesmo com os olhos fechados? Ou então, com algum tipo de tremor na mão? Certamente você vai borrar. O Boticário estava tentando resolver esse problema com química, no sentido de “será que tem alguma substância que adere mais no lábio do que na pele?”. Eles não estavam conseguindo, então trouxeram esse problema pra gente. 

A gente fez, a partir do programa Summer Job, um experimento com estudantes universitários. Eles montaram um super protótipo e o negócio dava uma indicação de que poderia funcionar. O presidente do Boticário, na época, veio conversar com os alunos e ver a solução. 

A partir dali, começamos a iterar para transformar esse protótipo em um produto, que foi lançado ano passado. Ainda não comercializável efetivamente, mas que já permite que a gente faça um road show. No ano passado, o Boticário levou o produto a várias lojas; apresentou aqui [em Pernambuco] no Rec’n’Play, e este ano no CES, o Consumer Electronics Show em Las Vegas. E atraiu muito interesse. 

Você põe o rosto apoiado num determinado lugar do produto, aperta o botão, a máquina reconhece o teu rosto, o que é lábio, o que é pele, e vem com o batom e passa no contorno do lábio perfeitamente 

É uma máquina grande ainda, mais para demonstração. Como toda tecnologia, ela vai evoluindo, mas ali tem inteligência artificial, tem mecânica fina, um monte de tecnologia para entregarmos algo necessário e inclusivo do ponto de vista de quem gostaria de usar batom – e gostaria de fazer isso sem o auxílio de outra pessoa.

Outro exemplo que tem reconhecimento internacional é o que a gente chama de Gêmeos Digitais, em inglês Digital Twin, para a Petrobras fazer a prospecção de petróleo em águas profundas. A empresa às vezes faz isso com navios tanques, plataformas que ficam estacionadas e dali descem dutos de dois a três quilômetros de profundidade, conectados aos poços e o óleo já jorra direto para o navio tanque. Quando está cheio, a plataforma transfere para um outro navio e vai entregar na costa ou exportar. 

Esses dutos são muito caros e é preciso monitorá-los constantemente para evitar riscos de vazamento, com consequência enorme para o ecossistema marinho. Normalmente, o trabalho de engenharia é olhar para a fadiga de material e botar uma margem enorme de segurança para evitar qualquer tipo de falha. Não é a forma mais eficiente, mas quando se tem pouca informação, é o jeito que se faz. 

No gêmeo digital, a gente instrumenta esse duto com sensores e espelha num computador em tempo real para medir o desgaste em função de pressão, a variação de temperatura, a salinidade da água externa, a correnteza, a qualidade do petróleo que está passando por ali, se vem ou não vem com enxofre… 

Com essas informações, conseguimos calcular a durabilidade desse equipamento, dando uma sobrevida maior a ele, mas ainda com uma margem de segurança bastante elevada. Isso permite uma exploração de petróleo bem mais eficiente do que antes. Esse projeto foi premiado pela SPE, a Society of Petroleum Engineering, num festival do petróleo em Houston, no Texas. 

O setor financeiro hoje [também] é muito demandante de soluções, especialmente de segurança cibernética. A gente tem um centro aqui voltado para essa questão, o CISSA, Centro Integrado de Segurança em Sistemas Avançados. E a gente  tem feito coisas interessantes também com o setor automotivo, e de educação.

Falando em educação: o CESAR se anuncia como “o mais completo centro de inovação e conhecimento do Brasil”. Quais são as principais iniciativas nessa frente educacional?
Inovação e educação são indissociáveis. Quando a gente está inovando, a gente está aprendendo. Se você já sabia como fazer, está aplicando algum conhecimento que já foi desenvolvido. 

O método de Educação que a gente usa é a partir do PBL, Problem-Based Learning, o aprender fazendo, com a orientação de pessoas que estão atuando efetivamente no mercado de trabalho. 

A gente procura manter, dentro da parte educacional, uma proporção de um terço de colaboradores da inovação do CESAR como professores; um terço são profissionais de mercado, que estão em outras empresas, a maioria aqui do ecossistema; e um terço são pessoas voltadas exclusivamente à educação 

Uma métrica de sucesso na parte educacional é quanto tempo que esse aluno precisa para se empregar, para ingressar no mercado de trabalho – e a gente só consegue por conta desse mix, dessa completude de inovação na prática e educação.

Para startups, temos um programa chamado Tech Venture Building, em que a gente troca tecnologia por uma opção de participação na startup e programas de inovação voltados às empresas maduras já. 

O que a gente faz de mais importante, hoje, na linha de educação voltada para a TI é um programa de fomento no ensino médio para 170 escolas estaduais em 70 municípios aqui de Pernambuco. Dentro do programa do governo do Estado chamado Trilhatec – Florescendo Talentos. 

O objetivo é, em dois anos, impactar 25 mil pessoas, a partir de cursos introdutórios de tecnologia da informação e comunicação, que a gente chama de front-end e análise de dados, que são as posições mais demandadas hoje no mercado. 

O meu sonho, com programas desse tipo, é a gente criar outros polos de tecnologia pelo estado de Pernambuco – não somente aqui em Recife, na capital. Acho que tem muita gente pelo interior, e poucas opções de emprego relevantes 

Vai demorar, mas eu ficaria muito contente se eu visse acontecer a criação desses outros núcleos de tecnologia pelo interior do estado. Esse é um efeito colateral, muito mais importante do que o resultado imediato. Se você consegue formar vinte, trinta ou cinquenta pessoas numa única cidade dessas, a coisa começa a mudar.

 

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