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Como o rigor histórico de um jornalista deu origem ao Museu da Imprensa Automotiva

Ricardo Alexandre - 1 mar 2018
Marcos Rozen, na frente da sede do Museu da Imprensa Automotiva: um projeto com vida própria.
Ricardo Alexandre - 1 mar 2018
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O inesquecível aforismo do falecido roqueiro Frank Zappa, de que “escrever sobre música é como dançar sobre pintura” talvez revele muito da sina do jornalismo segmentado – de nunca transmitir a emoção verdadeira do assunto abordado – mas parece que não é o caso da imprensa automotiva. “É, disparado, a imprensa segmentada mais forte do jornalismo”, acredita Marcos Rozen, de 43 anos, que fez carreira como repórter da revista Autodata. “Por exemplo, por mais forte que seja o segmento de tecnologia no mundo de hoje você não se recorda de uma revista de gadgets como se recorda de várias revistas de carro, fortes, que estão aí até hoje. A imprensa automotiva soube se reinventar e se manter relevante, fugindo do puro serviço, renovando sua reportagem, falando de grandes carros, fazendo testes, cobrindo salões, promovendo eleições, entregando segredos e mantendo um apelo visual muito forte, que faz com que a publicação impressa sobreviva muito bem.”

Apesar dos 23 anos de carreira, o grande passaporte de Rozen para a história da imprensa automotiva não foi feito no papel, mas em um aconchegante prédio na Vila Romana, zona oeste de São Paulo: é o Museu da Imprensa Automotiva, o Miau. O projeto começou por motivações essencialmente jornalísticas (“eu sempre acreditei que o bom repórter precisa ter base histórica para não cometer erros que a gente às vezes vê por aí”, ele diz, “é preciso saber que há carros elétricos desde os anos 1920, que o DKW já tinha motor de três cilindros, por exemplo”), mas hoje é um programa cultural delicioso para quem estiver por São Paulo a fim de um mergulho no tempo e na mística que envolve o carro – “uma mística que a imprensa registrou e, mais do que isso, ajudou a manter”.

Rozen conta que, como repórter, cultivou desde o início o hábito de mergulhar nos arquivos de revistas e jornais antigos para subsidiar as pesquisas para seus textos. E levava para a casa todo material que julgasse relevante e que corresse risco de ser descartado na redação ou no campo de pesquisa. “Aquilo virou o meu banco de dados particular”, conta. “Com o tempo, os colegas sabiam do meu acervo e passaram a me procurar com coisas interessantes, e de doavam, de crachás a brindes distribuídos nas festas de lançamento, de revistas históricas a fitas VHS com campanhas publicitárias, de livros fora de catálogo a jingles publicitários feitos para o rádio.” Foram dez anos juntando preciosidades entre um acervo de mil itens. “Àquela altura, eram outros jornalistas que me procuravam para pesquisar quando estavam trabalhando em alguma pauta histórica.”

No piso superior, livros e revistas “para livre consulta” e também press-kits e materiais de trabalho dos jornalistas, além de um espaço para um café.

Foi por conta disso que surgiu o Miau – inicialmente um ambiente virtual que permitisse busca em um acervo físico. “Quando a página www.facebook.com/miaumuseu e o site www.miaumuseu.com.br entraram no ar, a coisa saiu das mãos dos jornalistas automotivos e chegou ao conhecimento do público em geral. Daí explodiu.” Era 2013, já no auge das redes sociais, o perfil oficial do museu chegou a 100 mil seguidores e o acervo, que começou com mil itens, chegou a inacreditáveis 10 mil peças. “Começou a tomar um corpo absurdo. Muita gente passou a me escrever dizendo ‘tenho uma coleção de revistas que era do meu avô’, ‘meu pai trabalhou na Jeep e eu queria doar o que ele preservou’ etc. O museu começou a ter vida própria. Eu praticamente não interfiro em nada”, diz ele, sorrindo.

Vivendo sua “vida própria”, o Miau começou a fazer exigências: um espaço físico próprio. “Estava difícil de administrar em casa. Eu já havia me mudado para o quarto menor do apartamento e o museu estava tomando conta de tudo. E chegar até os itens, que ficavam atrás de outros itens, que ficavam numa prateleira lá no alto, estava cada vez mais difícil.” Foi quando surgiu o predinho na rua Marcelina, construído originalmente para abrigar o ateliê da artista plástica Tatiana Blass. “Era perfeito, parecia que a arquiteta havia entrado na minha cabeça mesmo sem me conhecer.” O Miau abriu suas portas físicas em outubro de 2017.

O museu é dividido em dois pisos tematicamente demarcados. No térreo, há a história da evolução da imprensa automotiva no Brasil, desde os primeiros suplementos de jornais, do século 19, até os anos 1990. É uma viagem pela própria industrialização do Brasil – desde os tempos em que toda a indústria de carros era completamente importada, passando pelos incentivos à nacionalização dos anos 1950 e 1960, a reserva de mercado da ditadura até os recentes anos de liberalismo econômico, com incentivos à importação e à competitividade. Tudo contado por meio de fotos, capas de revistas, trechos de reportagens, itens de memorabília e muita história de bastidores. “Eu procurei organizar o trajeto como se fosse uma grade reportagem de revista, contando uma história a partir de fotolegendas”, diz Rozen. “Eu geralmente estou ali por perto, para ajudar no que for preciso, mas o visitante consegue ler ‘sozinho’ com facilidade.”

É importante notar que não estamos em um museu sobre automóveis, mas sobre a imprensa automotiva. Em uma visão panorâmica e histórica como a proposta pelo Miau, com revistas e jornais diferentes lado a lado, ficam claras as tendências de narrativas, onde figuram propagandas dos carrões importados dos anos 1940, as fotos preto-e-branco delicadamente retocadas pelos coloristas, as tendências de design que, às vezes privilegiavam as fotos artísticas, às vezes os cliques mais informativos, a ousadia de reportagens que entraram para a história, as chamadas brigando pela atenção do leitor, os verbos no imperativo etc.

“Uma das minhas intenções foi realmente mostrar todo o trabalho, o esforço, que há na preparação de uma revista ou de um jornal”, conta Rozen. “Um trabalho pesado que tem pouco a ver com o glamour que é normalmente associado à imprensa automotiva.” O passeio pela ala térrea termina com um delicioso espaço para exposições temporárias – a primeira foi sobre os 50 anos do Opala, com direito a assistir a um minidocumentário a respeito do carro de dentro de um Comodoro 1988.

Um dos destaques da ala térrea é uma vitrine totalmente dedicada ao lançamento do Fiat 147 no Brasil. Reunindo o kit de imprensa original de 1976, as fotos de divulgação impecavelmente preservadas e até a máquina de escrever que alguns jornalistas ganharam como brinde durante o evento. A campanha do primeiro carro brasileiro da Fiat foi um marco não apenas para o mercado publicitário (com sua lendária campanha colocando o “carrão pequeno” em situações inusitadas e em monumentos históricos brasileiro) mas como um momento especialmente promissor da indústria brasileira. “É importante esse olhar para o passado procurando preservar todo o contexto em que os carros foram lançados”, diz Rozen. “Porque hoje nós olhamos para eles como carros antigos, simplesmente, mas como era o Brasil na época em que eles eram modernos? Como ele se inseria na sociedade? Tudo isso é recuperado aqui.”

Vitrine inclui o material de imprensa original do lançamento do Fiat 147 no Brasil, de 1976, e outras raridades.

O piso superior é dedicado a livros e revistas “para livre consulta”, com duas paredes repletas de volumes a respeito do mundo do carro e a cultura em torno dele, e também press-kits e materiais de trabalho dos jornalistas. “Um visitante muito misterioso, um tanto impaciente chegou ao museu e mal quis olhar para as peças do térreo”, lembra Rozen. “Insistia apenas que queria consultar a coleção da revista Quatro Rodas dos anos 1970 e 1980. Passou o dia fazendo isso, sem falar com ninguém. À noite, já na hora de fechar, eu não me contive e perguntei pra ele porque aquele interesse. E ele contou, emocionado, que ele queria rever os exemplares que o falecido pai dele assinava e que o transportavam para a infância, para o convívio com o pai, que lia as revistas com ele ainda menino.” Histórias assim têm se somado ao cotidiano de Rozen desde outubro, quando o Miau abriu suas portas. Gente com memória afetiva ligada à imprensa, fãs de carro, colecionadores, estudantes, pesquisadores, restauradores e, como sempre, jornalistas trabalhando numa nova pauta ou buscando assunto para um novo texto. Porque a imprensa automotiva ainda tem muita estrada pela frente.

O Museu da Imprensa Automotiva abre suas portas nos finais de semana (sábado, das 13h às 18h; domingo das 11h às 17h, com preço promocional de meia-entrada, R$ 15, para todos). Durante a semana, o Miau funciona com visitas agendadas pela página oficial no Facebook. O museu fica na Rua Marcelina, 108, Vila Romana, São Paulo.

Esta matéria pode ser encontrada no Mundo FCA, um portal para quem se interessa por tecnologia, mobilidade, sustentabilidade, lifestyle e o universo da indústria automotiva.

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