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Que atire a primeira pedra quem nunca se viu na rua com um guarda-chuva virado pelo vento e vontade de jogá-lo na primeira lixeira que aparecer. O problema é que o item provavelmente vai parar no aterro e levar cerca de 200 anos para se decompor completamente. Só o tecido de nylon, por exemplo, demora em torno de 30 anos…
Melhor sorte tem o guarda-chuva — e o meio ambiente — quando cai nas mãos da CÓS – Costura Consciente, ateliê de Porto Alegre que produz jaquetas e outros produtos com o nylon de guarda-chuvas descartados.
A história da CÓS começa em 2018, quando Marina Anderle Giongo (hoje com 37 anos) aceitou o desafio de montar uma unidade do Banco de Tecido (negócio social de circulação de resíduos têxteis) na capital gaúcha. Na época, ela fazia doutorado em design, pesquisando marcas de moda sustentável, e aproveitou o momento para realizar o sonho de abrir um ateliê.
Com o apoio de bolsistas da Unisinos, o espaço passou a reunir costureiras interessadas em atender marcas locais e aprender novas técnicas. Aos poucos, o grupo percebeu que estava diante de um modelo de negócios. Marina afirma:
“Como já tinha marcas encomendando produtos para o grupo, vimos que havia uma oportunidade de negócio. Então, foi esse grupo de costura, de formação e de troca que acabou originando a CÓS”
No início, as peças eram simples: saquinhos de pano, ecobags, embalagens. Com o tempo, vieram projetos mais ousados e, hoje, o ateliê produz até peças de alfaiataria.
Em 2021, a CÓS foi procurada por uma empresa de guarda-chuvas para dar destino a um estoque de peças que não poderiam ser comercializadas. Ainda se vendo apenas como prestadora de serviços, a ideia inicial era criar um produto que a marca pudesse incluir no próprio portfólio. Mas a negociação não avançou.
No mesmo ano, Liz Unikowski, então sócia da CÓS (ela deixou a sociedade em 2022), viajou ao Canadá para participar da Competição de Criação de Negócios Sociais e levou como exemplo uma capa de chuva feita com tecido de guarda-chuva. O protótipo chamou atenção e gerou pedidos. A partir daí, elas entenderam que poderiam ir além da prestação de serviços e ter uma marca própria usando o nylon de guarda-chuva como matéria-prima.
Hoje, a coleção da CÓS inclui jaquetas (a partir de 348 reais), chapéus (168 reais), pochetes (124 reais), shorts (148 reais), bolsas (72 reais) e nécessaires (50 reais), todas feitas com tecidos impermeáveis reaproveitados. Além dos guarda-chuvas, a marca trabalha com resíduos de pranchas de kitesurf e está testando o uso de paraquedas.
Os produtos são vendidos no e-commerce da marca e em lojas parceiras, como a Endossa, em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. A CÓS também esteve presente na COP30, em Belém, dentro do projeto Biomarketing, do Mercado Livre.
“Cada vez mais estamos nos posicionando como uma marca de design autoral, com produtos legais que geram conversas e conscientização”, diz Marina.
Trabalhar com upcycling traz desafios. O primeiro é o acesso à matéria-prima. Quando o estoque de guarda-chuvas de 2021 acabou, o ateliê teve dificuldade em repor material, mesmo comprando de cooperativas de reciclagem.
Até que, em 2024, as ruas de Porto Alegre ficaram alagadas em uma tragédia climática sem precedentes. O ateliê ficou com 1,10 metros de água e Marina não pode acessá-lo por um mês. Os tecidos e o estoque foram perdidos. As máquinas de costura estragaram e o prejuízo foi calculado em cerca de 40 mil reais.
“Foi um caos. Não tinha mecânico para arrumar as máquinas. Nós mesmas fizemos a limpeza e manutenção básica olhando vídeos no YouTube”
Com ajuda de amigos e apoio de programas do Sebrae e outras instituições, Marina conseguiu recuperar o essencial e seguir em frente. Enquanto isso, passou a costurar em um abrigo de imigrantes, produzindo cobertores, agasalhos e roupas íntimas para doação. Coincidentemente, esse local possuía um ateliê de costura, que ela pôde usar para manter a produção da CÓS.
“Ficamos quase dois meses usando o ateliê deles enquanto não conseguíamos nos reorganizar”, diz Marina. “Foi um processo entender que não daria para voltar ao mesmo lugar, até porque eu fiquei com medo de acontecer de novo. Acabamos mudando para uma sala menor, na mesma quadra, porém no terceiro andar.”
No meio desse caos, a mesma empresa de guarda-chuvas que havia feito doações em 2021 entrou em contato: tinha cerca de 30 mil peças danificadas pela enchente.
“Tivemos dois dias para fazer a triagem. Eu nem sabia se a gente ia conseguir aproveitar, mas resolvi arriscar porque, se desse certo, seria muito bom”
Os guarda-chuvas foram desmanchados em dez dias e o tecido passou por uma lavagem industrial. O processo custou 20 mil reais, cobertos por um financiamento coletivo em formato de pré-venda, que contou com 103 apoiadores. O material rendeu 5 777 guarda-chuvas reaproveitados, cerca de meia tonelada de tecido, suficiente para produzir 1 500 jaquetas.
“Esse episódio da enchente nos ajudou a entender a nossa potência para transformar resíduo. A gente foi percebendo que às vezes nem vale a pena bater na tecla de que é reciclado. É mais legal deixar as pessoas olharem o produto e só depois contar que é feito de guarda-chuva.”
O ATELIÊ ATENDE MARCAS E JÁ PRODUZIU ROBES PARA O CASAMENTO DE UMA INFLUENCER
Além da marca autoral, a CÓS atua em outras frentes da moda sustentável: projetos de reaproveitamento de resíduos têxteis e costuráveis de empresas, oficinas de formação com ONGs e empresas, e produção sob demanda em pequena escala.
Recentemente, a empresa desenvolveu os robes que as madrinhas usaram no dia do casamento da influenciadora Mari Krüger. As peças foram feitas com sobras de outros ateliês, incluindo aquele que confeccionou o vestido da noiva.
Entre os clientes atendidos pela CÓS estão marcas do Rio Grande do Sul, como Dreher 1989, Elisa Graeff, Lilian Maus e Mão Negra Ateliê. E nem sempre o material de trabalho é tecido, explica Marina:
“Já costuramos saca de ráfia, plástico, saca de papel, além do nylon dos guarda-chuvas e o material das pranchas de kitesurf”
Agora, ela está atrás de sacas de papel para desenvolver bolsas para o Instituto Ling. “Hoje, todo mundo recebe farinha e grãos em saca de plástico. Então, estou numa cruzada pela cidade atrás de saca de papel para fecharmos as bolsas. São 50 peças e já conseguimos fazer 31.”
Esse trabalho de estudar e buscar matérias-primas, bem como pensar em soluções a partir do que surge, é a alma da CÓS, que neste ano faturou 240 mil reais.
AS COSTUREIRAS ESCOLHEM OS HORÁRIOS DE TRABALHO E GANHAM POR PEÇA PRODUZIDA
Com uma equipe enxuta — composta por Marina e Isabela Genz Meinhardt, que começou como estagiária e hoje é seu braço direito —, a CÓS mantém um modelo colaborativo com as costureiras. Elas se cadastram por meio de um formulário que define acordos básicos e cria um vínculo educacional com o ateliê.
A rotina é organizada por WhatsApp: há um grupo geral e outro exclusivo para a produção. Toda semana, são publicados os turnos disponíveis (em geral, seis vagas por vez, conforme o volume de trabalho). As mulheres escolhem os horários em que vão costurar e recebem por peça produzida.
Elas entram com noções básicas de costura e manejo de máquina e, conforme ganham prática, evoluem para modelagem e montagem de peças mais complexas. Também participam do processo criativo. Afinal, são elas, as costureiras, que põem a mão na massa e sabem o que é ou não viável na prática.
“Criamos peças que a gente consiga executar e entregar”, diz Marina. “Tem coisas que vamos aperfeiçoando aos poucos ou fazemos por encomenda.”
Ao escolher trabalhar com resíduos têxteis, a CÓS ajuda a reduzir o descarte de toneladas de material nos aterros. Desde 2019, segundo Marina, o ateliê já evitou a destinação de mil quilos de resíduos que seriam descartados. Os números incluem também 19,5 mil peças produzidas e 101 costureiras cadastradas na rede.
Outra forma de contribuir com o ecossistema da moda consciente é educar o cliente sobre as limitações técnicas e a durabilidade dos materiais. E, quando necessário, recusar resíduos pouco adequados (corino, por exemplo, a CÓS não aceita porque é um sintético que não é durável).
“Muitas empresas nos veem [apenas] como uma grande solução para encaminhar o resíduo… Mas temos por política não pegar nada que a gente não consiga encaminhar, porque não vamos pagar aluguel para guardar resíduo alheio”
Em um setor ainda marcado pelo desperdício e pela pressa, a CÓS faz o movimento oposto: trabalha com o que já existe, valoriza o tempo de quem produz e mostra que é possível unir moda e responsabilidade sem abrir mão da beleza e nem da viabilidade.
A oferta de crédito a empreendedores da Amazônia Legal pode ajudar a conter a devastação da floresta? Lucas Conrado, diretor do Estímulo, conta como o fundo quer fomentar os negócios da região (e, indiretamente, a preservação da natureza).
Fernanda Covos, Talita Victorino e Bruna Coimbra se conheceram na Riachuelo, mas queriam criar outra relação com a indústria da moda. Hoje, as três empreendem a Orgâniccas, que produz camisetas com algodão da agricultura familiar do Nordeste.
O mercado ainda não estava pronto quando a Positiv.a surgiu, em 2016, oferecendo um kit de limpeza sustentável por assinatura. A empresa reajustou a rota, lançou novos produtos e agora sonha em atingir um em cada cinco lares do país até 2030.
