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Qual o tempo ideal para planejar e pôr em prática um projeto com o envolvimento de dezenas de artistas e empresários e a expectativa de chacoalhar uma metrópole? Que tal dois meses e meio?
Esse foi o intervalo entre a concepção e o lançamento do Mapa das Livrarias de Rua de São Paulo, iniciativa que uniu livreiros de 37 endereços da cidade em torno de uma divulgação maior em um mês no qual as vendas costumam cair bastante.
“As livrarias representam um pouco de civilidade em São Paulo”, defende o editor João Varella, 40, da editora Lote 42. Ele e sua sócia e companheira, a designer Cecília Arbolave, 40, cuidaram da publicação coletiva. Poucos têm uma visão tão ampla do cenário editorial brasileiro. À frente da Banca Tatuí e da Livraria Gráfica, os dois conhecem também os percalços dos livreiros.
“Se a gente pode sonhar com uma coisa melhor para essa cidade, acho que tem a ver com mais livrarias ocupando pontos do mapa”
Desde 2023, João e Cecília se reúnem com donos de outras livrarias para debater estratégias de sobrevivência em um mercado marcado pela desregulamentação, a concorrência com gigantes do comércio online e um número ainda baixo de espaços de convivência literária.
E um dos períodos críticos para eles é novembro, quando fica impossível competir com os descontos oferecidos diretamente por editoras, na Festa do Livro da USP. Este ano, uma ideia que surgiu em cima da hora cresceu além do esperado e recolocou as lojas no mapa. Nesse caso, de forma literal.
A chama se acendeu no final do primeiro semestre deste ano, quando Cecilia foi aos Estados Unidos para participar de um seminário em Princeton. Passou pela Filadélfia e, visitando livrarias, recebeu de um vendedor um mapa ilustrado das casas independentes da cidade.
O material estava esgotado, guardado como relíquia. Cecília enviou uma foto aos colegas paulistanos e a reação foi imediata. João relembra:
“Rolou uma eletricidade, uma vontade de fazer isso por aqui”
O plano ficou no ar até que, em agosto, durante um encontro dos livreiros, foi decidido tocar o projeto adiante, mesmo com o calendário apertado. O objetivo era lançar na própria Festa do Livro da USP.
“Acho que tenho esse mal do jornalismo, prazo curto me motiva”, brinca o editor com formação de repórter. “Além disso, mais do que ter ideias, meu verdadeiro prazer está na conclusão delas. Gosto de fechar e depois decidir qual o próximo passo.”
Para viabilizar rapidamente o projeto, as livrarias participantes (no início, menos que as 37 que toparam o desafio no final) fizeram uma vaquinha. Cada uma aportou 600 reais, o que permitiu começar, de forma modesta, projetando uma tiragem de 15 mil exemplares.
Nesta fase, convidaram a ilustradora Isadora Ferraz, que já havia desenhado, por conta própria, a fachada da Banca Tatuí. Todos gostaram do modelo e ela topou, por um valor simbólico, recriar as demais lojas no papel. Já a diagramação ficou com outro parceiro da Lote 42, o designer gráfico MZK.
Não demorou, porém, para surgir interessados no mapa e a verba restrita deixou de ser problema. “Uma coisa é pedir apoio, dizendo que o projeto precisa de dinheiro para existir”, diz João. “Outra, bem diferente, é afirmar: vai acontecer, quer entrar ou não?”
Primeiro, Wellington “Teco” Rehder, da Gráfica Viena, propôs imprimir o mapa de graça. João conta que depois ofereceu aos representantes das livrarias devolver o investimento da vaquinha, já que o orçamento estava coberto. Ninguém aceitou. Todos concordaram em usar o excedente no projeto, levá-lo a outro patamar.
Assim, contrataram uma produtora e uma assessora de imprensa. O financeiro e uma parte da logística ficaram sob a responsabilidade de Adalberto Ribeiro, da Livraria Simples. Julia Souto e Tereza Grimaldi, da Livraria Miúda, se dedicaram à comunicação, inclusive em redes sociais. E Rene Pacheco, da Mundos Infinitos, criou o site, onde disponibilizaram a versão digital.
Mesmo sem conflitos, o editor lamenta algumas ausências. Nem todas as livrarias que ele gostaria de dar destaque ficaram na seleção final. Algumas não aceitarem participar, por diferentes razões. Mas outras não foram lembradas a tempo.

As folhas do mapa foram fechadas com uma máquina usada para dobrar bulas de remédio (foto: Divulgação).
“Não existe um levantamento firme de livrarias de rua na cidade”, justifica, dando os sebos de exemplo como espaços que ficaram de fora. “Precisávamos de parâmetros claros para a coisa andar.”
Também foi definido que não haveria “refação” das artes, para evitar atrasos. A visão da Isadora sobre as fachadas prevaleceria. Um único ajuste foi feito: a Eiffel queria manter uma coluna que existe na frente de sua loja. Mesmo que cobrisse parte da entrada, era importante para os proprietários ter essa identificação visual.
A dobra dos mapas exigiu uma estratégia criativa e prática. Uma máquina dobradeira comum, de livros, deixaria tudo muito volumoso. A solução veio da indústria farmacêutica. Por sugestão de Teco, procuraram uma gráfica especializada em bulas de remédios, com equipamento capaz de compactar a publicação sem danificá-la.
A logística da distribuição foi outro desafio que não deixava respiro para erro. Em 26 de novembro, abertura da Festa do Livro da USP, todos os 40 mil exemplares precisariam estar no local e em cada uma das 37 livrarias. O material chegou ao destino no mesmo dia.
O mapa (também disponível em PDF) revela o surgimento de uma nova geração de livrarias independentes, com curadoria e identidades bem claras. “O livreiro tem um peso enorme e essas são casas com vocação própria”, afirma João.
Ele cita exemplos como as especializadas em temas que vão da literatura latino-americana ou para o público infanto-juvenil a livros do universo do feminismo, do futebol e dos mangás. Ao mesmo tempo, reconhece a desigualdade geográfica que o mapa evidencia.
“Fora do centro expandido, tem muito menos livraria. É reflexo da concentração econômica e cultural da cidade”
João destaca que a estratégia de manter a gratuidade do produto nunca foi contestada. “Ele vai ser mais efetivo se chegar na mão de qualquer pessoa. Isso é democrático.”
O formato escolhido também já carrega uma mensagem que transpassa o valor estético, como um ato político.
“Em um mapa, você escolhe o que será representado, qual rua terá nome, qual prédio aparece”
Dar cartografia às livrarias era, para o coletivo, uma forma de afirmar sua presença e relevância.
Na primeira semana, os resultados atestaram as escolhas. O site oficial recebeu cerca de 5 mil acessos, sendo 40% de fora da cidade de São Paulo.
As participantes também anunciaram crescimento, tanto na visitação, como em vendas e número de seguidores nas redes sociais. Até um grupo de Porto Alegre se inspirou na ideia para lançar um mapa semelhante.
“Foi maravilhoso, não teve um atrito interno, tomamos decisões baseadas no consenso e isso é uma coisa rara em um projeto coletivo”
João completa: “Claro, valeu também nossa experiência, saber como é o processo, entender o mercado. Na verdade, levamos nossa vida toda pra fazer esse mapa em apenas três meses”.
A bagagem faz mesmo diferença. Em 2014, quando foi tema de uma reportagem do Draft ainda no início da empreitada, só com seis títulos no catálogo, Cecilia e João se referiam à editora Lote 42 como um “laboratório de livros”.
Desde então, abriram a Banca Tatuí, a Sala Tatuí, a Livraria Gráfica, organizaram edições cada vez maiores de feiras de publicações independentes, como a Miolo(s) e a Printa Feira, e foram convidados para eventos internacionais (em especial, a tradicional Feira de Frankfurt, na Alemanha).
Este ano, a Lote 42 foi a primeira editora latino-americana a vencer o prêmio V.O. Stomps-Preis. Concedido a projetos inovadores pelo Museu Gutenberg, na cidade alemã de Mainz, a honraria destaca o apreço do casal de editores por buscar formatos e linguagens desafiadores.
“Mesmo assim, se analisarmos pela ótica das instituições tradicionais, a gente ‘não existe’ no Brasil”
João afirma que o mercado editorial brasileiro prefere oferecer mais do mesmo, o que ele chama de “mentalidade fordista”, em alusão ao industrial Henry Ford.
No exterior, seu trabalho tem repercutido. O segredo é não ter receio de fazer o incomum, aproveitar-se da força que o Brasil tem em outros campos, aquilo que o professor e pesquisador João Queiroz se refere como “literatura expandida”.
“Quantas vezes nos convidaram oficialmente para a Flip, as bienais do Rio, de São Paulo, de Minas, de Pernambuco, a Feira de Porto Alegre, Flipoços, todos os eventões? Zero”, cutuca. “Não me querem aqui, tudo bem. Lá fora, já estamos no mapa”.
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Daniel Lameira vinha de um burnout pensando em largar o mercado editorial. Até que um papo com Adriano Fromer levou os dois a fundarem a Seiva, uma escola e editora para inspirar pessoas a se reconectarem com elas mesmas pela via da arte.
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