Paulo Werneck, d’A Feira do Livro: “O bacana de um evento na rua é impactar gente que não entraria em um festival literário com catraca”

Karina Sérgio Gomes - 7 jun 2023
Álvaro Razuk (à esq.) e Paulo Werneck, a dupla à frente d'A Feira do Livro.
Karina Sérgio Gomes - 7 jun 2023
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Meia dúzia de limões, um cacho de bananas. Um quilo de batatas, um maço de rúcula fresquinha. Para arrematar, um pastel, um caldo de cana e… um livro. 

Endereço de uma das mais tradicionais feiras livres de São Paulo, a praça Charles Miller, em frente ao histórico estádio do Pacaembu, abriga a partir de hoje, quarta, dia 7, e até domingo, 11 de junho, a segunda edição d’A Feira do Livro, realizada pela Associação Quatro Cinco Um (que edita a revista literária de mesmo nome) em conjunto com a Maré Produções.

“O nosso desejo de realizar A Feira do Livro na praça Charles Miller nasceu do interesse de unir um patrimônio histórico ao debate literário”, diz Paulo Werneck, presidente e fundador da Quatro Cinco Um. 

Essa combinação de literatura e patrimônio histórico não é inédita na trajetória de Paulo: durante três edições ele foi curador da Festa Literária de Paraty (Flip), realizada em meio ao casario colonial da cidade fluminense. No caso d’A Feira do livro, o cenário é outro.

“Estamos na frente de um patrimônio da arquitetura brasileira, em um local que já foi palco de manifestações políticas, da luta pela democracia e de gols do Pelé. Isso tem um peso e traz um lastro para A Feira” 

Além dos estandes das editoras presentes, a programação gratuita inclui mesas com a presença de cerca de 60 autores convidados. Um deles é Itamar Vieira Junior, autor de Torto Arado, romance vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos.

Outros nomes confirmados são o escritor e xamã Davi Kopenawa Yanomami, autor de A Queda do Céu; Richard Zenith, que escreveu uma monumental biografia de Fernando Pessoa; Jericho Brown, poeta dos Estados Unidos ganhador do prêmio Pulitzer em 2020; e a francesa Fatima Daas

NA PRIMEIRA EDIÇÃO, PARA DRIBLAR A FALTA DE PATROCÍNIO, OS SÓCIOS INSCREVERAM O PROJETO EM UM EDITAL PÚBLICO

Paulo e seu sócio, o arquiteto Alvaro Razuk, tiraram do papel a primeira edição da Feira do Livro em junho de 2022. Naquele momento, não conseguiram patrocínio.

Para erguer as barracas da Feira, além de investimentos dos sócios e das editoras interessadas em participar, eles tiveram a ideia de inscrever o projeto no Arranjo Produtivo Local (APL), um modelo de política pública utilizado por grupos de empresários de um mesmo segmento para resolver um problema coletivo.   

“Fazemos parte de um grupo de editores independentes que trabalha para a valorização do livro e toda sua cadeia — o editor, o autor, o ilustrador. Fazer um livro embute muitos esforços que nem sempre estão visíveis para o público final”

Paulo contactou a Secretaria de Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo para verificar como poderia utilizar a APL para o mercado editorial. Inscreveram-se em um edital público voltado para o recurso e foram aprovados. 

A aprovação na APL não custeou os gastos totais (750 mil reais) da realização da primeira edição, mas uma parte significativa, 100 mil reais, foi garantida com uma emenda da deputada estadual Marina Helou enviada a partir da aprovação do edital.

“Além do dinheiro, a aprovação da APL nos reconhece como um agregador de empresas do setor de livros. Com esse reconhecimento podemos entrar em novos editais pedindo recursos para realizar ações que auxiliem o setor editorial.” 

A FEIRA DO LIVRO 2023 ESTÁ MAIOR, COM MAIS AUTORES, EDITORAS E UMA NOVA PRAÇA DE ALIMENTAÇÃO

Circulando pela primeira edição, Paulo reparou em pessoas se aproximando do palco para ouvir uma mesa porque foram fisgadas pela conversa e outras entrando no estande de uma livraria porque um livro despertou a atenção. 

“Chamamos isso de janela de oportunidade: pessoas que não estavam ali pela Feira, mas que conseguimos fisgar por alguns minutos para o mundo do livro” 

O sucesso da primeira edição ajudou os sócios a conseguirem, por meio da lei de incentivo, patrocínio de Itaú, Suzano e Uol. “Com a primeira edição conseguimos demonstrar para o mercado, que o evento é viável, de alto nível e com um clima positivo”, diz Paulo.

O número de autores convidados em 2023 cresceu 20% em relação a 2022. Neste ano, as 94 tendas e 23 bancadas que abrigam os 144 expositores (contra 127 em 2022) foram montadas formando em um desenho radial, circulando a rotatória da praça e aproveitando melhor o espaço. 

“Esperamos que as pessoas circulem mais pelos estandes com esse novo desenho”, diz Alvaro Razuk, sócio da Maré Produções e d’A Feira do Livro. 

Outro ponto foi aprimorado: em 2022, havia poucas tendas de venda de comida, o que obrigava o visitante a deixar o local quando a fome apertava. O problema teria sido resolvido agora com uma área destinada à alimentação. 

CURADOR DA FLIP DURANTE TRÊS EDIÇÕES, PAULO PERSEGUIU, DESDE A INFÂNCIA, O SONHO DE SER EDITOR

Paulo tem 46 anos e uma vida dedicada à produção de livros. Filho do jornalista Humberto Werneck, desde pequeno ele sabia que queria ser um editor. Ainda criança, com 8 anos, começou a criar suas próprias revistas em quadrinhos. 

A habilidade o levou a ser editor do jornal do colégio Equipe, onde estudava. Entre os seus 17 e 18 anos, editou, com um grupo de amigos, a revista Emplastro Poroso, de literatura e cultura pop, que  chegou a ser encartada na Carta Capital. 

“Nunca conseguimos produzir industrialmente, mas foi um incentivo. ‘Olha, essa zoeira que vocês fazem dá para ser feita profissionalmente’”, conta. 

Na hora de cursar uma graduação, Paulo chegou a frequentar três faculdades: Filosofia, História e Letras — que considera o melhor curso para formar editores. Não terminou nenhuma. “Não é algo de que eu me orgulhe”, ele diz, e contextualiza: 

“Era uma época de crise das universidades públicas: muitos professores foram aposentados e não houve concursos para novos, o que fazia as aulas serem muito disputadas… Mas não acho que a faculdade seja inútil, pelo contrário. No curso de Letras, aprendi lições que uso até hoje”

Nessa mesma época, Paulo conseguiu o seu trabalho dos sonhos: um estágio na editora Companhia das Letras. Trabalhou na empresa por seis anos. Depois, seguiu para a (hoje extinta) editora Cosac Naïfy, cultuada por suas edições primorosas. 

Em 2010, Paulo aceitou o convite de Otávio Frias Filho (1957-2018), diretor de redação da Folha de S.Paulo, para criar o caderno semanal “Ilustríssima”. “Depois de 11 anos editando livros, tive a experiência de fazer jornalismo profissional e ter a vivência de redação”, diz. 

Em 2013, o editor foi convidado para assumir a curadoria da Festa Literária de Paraty (Flip). Ficou três anos na função, à frente das edições de 2014, 2015 e 2016 – até sair para fundar a revista Quatro Cinco Um e a associação homônima.

ELE SACOU UMA LACUNA DE MERCADO: FALTAVA UM VEÍCULO VOLTADO A LEITORES VORAZES DE LITERATURA

Enquanto ainda trabalhava na Folha, Paulo percebeu que a quantidade de livros que recebia no jornal era inversamente proporcional ao número de páginas disponíveis na imprensa para falar sobre literatura. 

“Tinha um espaço editorial diminuindo enquanto o número de publicações aumentava”, afirma. 

Faltava um veículo para leitores vorazes, que atendesse a vontade deles em saber das novidades do mercado editorial e se aquele lançamento comentado do mês é, de fato, bom ou não. 

“Os leitores não abandonam os livros. Existe ‘ex-fumante’, ‘ex-alcoólatra’, mas não existe ex-leitor. Ler é um hábito que não se larga”

De olho naquela lacuna de mercado, ele decidiu criar uma publicação com resenha de livros. Paulo diz que a primeira pessoa que procurou para contar sobre o projeto foi João Moreira Salles, fundador da revista piauí

O editor vislumbrava realizar algo na própria piauí. João propôs outro caminho: “Cria sua revista que eu te dou carona”, disse. Assim que a primeira edição do projeto saísse, ele a enviaria aos leitores com a edição da piauí junto por seis meses. Aquele parecia ser um começo promissor para alcançar o público qualificado da revista, que gosta de histórias e textos longos. 

Para dar o pontapé inicial, Paulo e sua sócia à época, Fernanda Diamant (hoje dona da editora Fósforo e da livraria Megafauna), saíram “passando o chapéu”, atrás de doações para concretizar a ideia. Conseguiram levantar 800 mil reais com 12 doadores para custear a produção dos primeiros exemplares. 

DEFENDER O MERCADO EDITORIAL TAMBÉM É LUTAR PELA DEMOCRACIA

A revista Quatro Cinco Um chegou ao mercado em maio de 2017, inspirada pelos benchmarks London Review of Books e The New York Review of Books. O nome faz referência a Fahrenheit 451, romance de Ray Bradbury sobre uma sociedade distópica em que os livros são proibidos e incendiados. 

A revista mensal é editada pela associação sem fins lucrativos de mesmo nome. Os sócios preferiram esse modelo de negócio em vez de abrir o CNPJ de uma editora. 

“A revista foi criada em momento de crise do jornalismo e do mercado editorial brasileiro, que só piorou com as notícias de falência da Saraiva e da Cultura… É ilusório achar que você vai criar uma revista literária que dará lucro”

Paulo diz que aprendeu sobre o modelo de negócio sem fins lucrativos enquanto trabalhava na Flip. “O Brasil precisa ter mais negócios como esse, de pessoas que se juntam para defender uma causa. A nossa causa é defender o livro.”

Defender essa causa foi uma luta ainda mais árdua durante os quatro anos do governo Bolsonaro, em que os livros, os intelectuais e as universidades (bem como a classe artística em geral) estiveram sob ataque contínuo. Paulo crê que as pequenas editoras se uniram no período. 

“As dificuldades que passamos nos últimos anos deixam claro que a solução para o Brasil passa pelo livro. Somos uma classe bem unida. Não existe democracia forte com um mercado editorial fraco”

Pode-se dizer que o setor vive hoje um bom momento. Em 2022, segundo dados do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e da Nielsen Book, a venda de livros movimentou 5,78 milhões de reais, com uma arrecadação de 270,69 milhões de reais. Isso significa um aumento de 6,16% nas vendas e de 15,18% no faturamento em comparação com os resultados do mesmo período de 2021. 

A pujança pode ser atestada também pelo sucesso da Bienal do Livro de 2022, que em julho atraiu 660 mil pessoas, movimentando 374 milhões de reais na cidade de São Paulo.

A revista Quatro Cinco Um, segundo a audição do IVC, vende uma média de 9 mil exemplares por mês, sendo 3 mil assinantes. A audiência do site é de 60 mil visitantes mensais. O preço da assinatura varia entre R$ 4,50 a 45 reais por mês. Outros planos agregam um clube do livro (80 reais) e o projeto “Ouvinte entusiasta” (22 reais), que ajuda a financiar o podcast 451 MHz, com episódios quinzenais. 

Mesmo sendo uma iniciativa sem fins lucrativos, todos os colaboradores recebem por suas contribuições com a publicação, ainda que, segundo Paulo, muitas pessoas se voluntariam para escrever de graça. “É tentador, mas aceitar essas ofertas contribuiria para a precarização do trabalho intelectual.”

PARA SEGUIR EM FRENTE, O CAMINHO AGORA É DIVERSIFICAR AS FONTES DE RECEITA

Dentro dessa causa de defesa do livro e com esse modelo de associação, Paulo percebeu que poderia atuar em mais frentes. 

Além da revista e da feira, a associação, desde 2022, comanda o braço brasileiro da editora portuguesa Tinta-da-China. Sob sua gestão já foram publicados nove livros; a meta é lançar um título por mês. 

“Percebi que, com esse formato, consigo realizar muito mais projetos do que se tivesse um único objeto. Posso fazer revista, feira, livros, filmes sobre literatura, livraria, biblioteca, programa de distribuição de livros… Uma lição do empreendedorismo, incluindo o social, é diversificar as receitas para sobreviver”

A associação, afirma o fundador, está cada vez mais estruturada. Paulo divide a liderança com o pai, o jornalista Humberto Werneck. Eles recebem um salário respectivo às funções desempenhadas na associação; todo lucro obtido tem de ser reinvestido no próprio negócio. 

“Deste modo a gente consegue doações e parcerias incríveis, porque construímos uma ação coletiva em defesa de algo que acreditamos: o livro.” 

DRAFT CARD

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  • Projeto: Associação Quatro Cinco Um
  • O que faz: Defende o livro no Brasil com a revista literária Quatro Cinco Um, a editora de livros Tinta-da-China e a Feira do Livro
  • Sócio(s): Paulo e Humberto Werneck
  • Funcionários: 12-15
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: 2017
  • Investimento inicial: R$ 800 mil
  • Contato: [email protected]
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