“Decidi contribuir para que outras mulheres negras sentissem o que eu estava sentindo ao acessar direitos econômicos”

Maisa Infante - 15 fev 2024
Aline Odara, criadora do Fundo Agbara.
Maisa Infante - 15 fev 2024
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Como tantas mulheres negras do país, Aline Odara, 37, precisou ajudar na casa e assumir responsabilidades desde cedo. 

Criada em Campinas (SP), aos 8 anos ela já ajudava o padrasto a fazer salgados para vender. Aos 15, realizava trabalhos esporádicos, como animar festas infantis e vender bijuterias. Aos 18, conseguiu seu primeiro emprego com carteira assinada, em um call center. 

Uma bolsa do Prouni (Programa Universidade para Todos) permitiu que Aline, aos 27, entrasse no curso de Ciências Sociais da PUC Campinas; ela também estudou pedagogia. Mesmo assim, estava desempregada há um ano quando, em 2020 – dois dias antes do lockdown por conta da Covid-19 –, foi chamada pela prefeitura de Campinas para assumir o cargo de professora de Educação Infantil.

“Foi muito transformador ter dinheiro. Ainda que o salário de uma professora no Brasil não seja alto, era o maior salário que eu tinha ganhado até então. Eu me senti muito potente porque foi a primeira vez que saí daquele imediatismo material de como vou pagar as minhas contas para pensar no futuro” 

O curso desse futuro mudou ainda em 2020, quando Aline deu seu passo decisivo rumo ao empreendedorismo social. Naquele ano, ela criou o Fundo Agbara, que se anuncia como o primeiro fundo filantrópico para mulheres negras do Brasil. A iniciativa a levou a ser reconhecida em 2023 como a conquista do prêmio Empreendedor Social da Folha de S.Paulo, na categoria “Soluções que Inspiram”.

Com recursos filantrópicos de instituições nacionais e internacionais, o Agbara atua no fomento a iniciativas de mulheres negras de todo o Brasil com programas de mentoria, capacitação, educação e transferência de renda. Segundo Aline, mais de 2 500 mulheres já foram impactadas pelas ações do Fundo. 

Programas como o Avança, Preta!, que está em sua terceira edição, promovem formação-técnica e política cidadã direcionada a mulheres negras que possuam iniciativas de geração de renda há pelo menos um ano. Na última etapa, os projetos selecionados recebem um aporte financeiro. 

Em 2022, o Agbara teve uma receita de 900 mil reais; o valor de 2023 ainda não foi divulgado. Para 2024, Aline diz que os recursos já estão garantidos: “É a primeira vez que isso acontece. Assim como quando eu acessei direitos econômicos consegui pensar no futuro, agora o Agbara consegue pensar no futuro também”. 

A seguir, ela fala mais sobre sua jornada, os preconceitos vividos dentro de uma família interracial, as atividades do Agbara e a importância de engajar pessoas brancas na luta contra o racismo estrutural. 

 

Você criou o Fundo Agbara em plena pandemia. Como foi isso?
No começo da pandemia eu estava desempregada já tinha um ano, fazendo bicos. Dois dias antes do lockdown, fui chamada para assumir uma vaga na prefeitura de Campinas como professora de Educação Infantil. 

Minha família estava passando por muita dificuldade financeira, morando em quitinete e consegui ajudá-los a sair dessa situação. Também fui fazer alguns cursos que eu queria sobre raça e epistemologias negras. 

Eu me senti tão potente, minha autoestima se fortaleceu tanto que decidi contribuir para que outras mulheres negras também sentissem o que eu estava sentindo ao acessar direitos econômicos

Quando uma amiga me pediu a máquina de costura emprestada, sugeri fazer uma vaquinha pra ela ter a própria máquina. Ela topou, só que eu tinha feito muitas vaquinhas naqueles primeiros meses da pandemia e já estava envergonhada de pedir dinheiro para as pessoas. 

Então, pensei em sistematizar essas vaquinhas. Se vinte amigos doassem 20 reais todo mês durante um ano, eu teria 400 reais para fortalecer a iniciativa de alguma mulher negra. E aí nasce o Fundo Agbara, no dia 1º de setembro de 2020. 

Em cinco dias, eram 60 doadores recorrentes; em três meses, quase 300. Aí convidei Fabi [Fabiana Aguiar, gerente geral do Agbara] e amigas próximas para se juntarem ao Agbara.

Desde então, o fundo se fortaleceu. Como foi esse crescimento?
Logo no começo percebi que era um fenômeno porque havia muitos doadores, a mídia local de Campinas querendo nos entrevistar e algumas instituições, como a B3 Social, entraram em contato e ofereceram algum tipo de suporte. 

Aí eu entendi que esta nova tecnologia que estava nascendo – e que, apesar de nova, tem raízes ancestrais -, era poderosa. 

A população negra mobiliza recursos há muito tempo para financiar suas lutas. A gente é um legado das irmandades cristãs negras e estava ali, nascendo de forma ressignificada

Logo entendemos que se nos desenvolvêssemos institucionalmente poderíamos acessar recursos maiores, e foi o que começamos a fazer. Então, nos formalizamos, começamos a pensar em Teoria da Mudança, planejamento estratégico e mensuração de impacto, coisas que eu não tinha a menor ideia de como fazer, não tinha a menor ideia que existiam. 

Teve muita coisa intuitiva também, e o fato de ser o primeiro fundo de mulheres negras no Brasil era algo muito promissor. Por ser inovador, as pessoas se disponibilizaram e um ano e meio depois, em janeiro de 2022, conseguimos nossos três primeiros investidores institucionais. De lá pra cá a gente vem formando e aumentando a nossa equipe. 

Como o Fundo atua hoje?
São cinco frentes. A primeira é de fomento, com programas que transferem renda entre 1 250 reais e 10 mil reais, além de oferecer formações técnicas e políticas, mentorias em empreendedorismo, empregabilidade e fortalecimento da sociedade civil.

A segunda frente é de advocacy, porque precisamos pensar em legado a longo prazo. Queremos influenciar na criação de políticas públicas que beneficiem a população negra, em especial mulheres negras. 

Isso surgiu ano passado, então estamos em um processo de constituição da frente e articulação em redes para conseguir fazer incidência sobre o poder público. 

Nossos principais temas são justiça econômica e a democratização do campo da filantropia e do investimento social privado, porque os recursos ainda estão concentrados nas mãos de poucas organizações – e essas organizações não são negras 

A terceira é o nosso núcleo de pesquisa e memória da mulher negra, o NUPEMN. Foi fundado em setembro e já estamos conduzindo uma pesquisa sobre filantropia negra para mapear organizações de pessoas negras e entender a realidade de suas atuações. 

Temos a hipótese de que atuam sem recursos, fazendo uma luta autogerida e autofinanciada. Essa primeira pesquisa sai no final do ano. 

O núcleo também foi criado no sentido de entender que a gente criar os nossos dados, salvaguardar as nossas memórias, é um importante dispositivo contra a subalternização

A quarta frente é de projetos especiais. Temos um jantar anual para captar recursos; tem o festival Agbara, que já teve três edições com programação artística cultural, uma feira de economia criativa, workshops.

A quinta é nossa consultoria, com workshop, palestras e formações para o setor privado. Há duas vantagens em pensar no desenvolvimento da nossa consultoria: diversificar a receita e fazer uma incidência no setor privado para que repensem tanto a empregabilidade e contratação de pessoas negras, quanto inserir negócios de pessoas negras na cadeia de fornecedores das empresas. 

Este ano estamos começando a estruturar, pensando em um plano de negócios para essa consultoria. 

Como o Fundo Agbara se mantém?
Já temos grandes investidores como a Fundação Tide Setubal, Próspera Social, Global Fund for Communities Foundation, Movimento Bem Maior, Instituto Ibirapitanga, Visa e Wellspring Foundation for Education. São recursos filantrópicos e a maioria deles é para a estrutura do Agbara. 

Também temos alguns parceiros para programas específicos. O jantar do ano passado, por exemplo, teve apoio do Nubank, iFood e G10 Favelas. Agora, queremos expandir a nossa captação cada vez mais para fora do país, pra conseguir pensar em sustentabilidade financeira. 

Você vem de uma família empreendedora?
A minha mãe me teve com 18 anos e foi mãe solo adolescente. Ela se casou com o meu padrasto quando eu tinha 5 anos. Ele foi salgadeiro, padeiro, tivemos um negócio de venda de marmitex. Minha avó e tias sempre trabalharam com costura e minha mãe trabalhou de tudo: foi empacotadeira, vendedora de roupa, faxineira, caixa de lotérica. Então, venho sim de uma família de empreendedores.

As mulheres que você ajuda hoje têm a mesma história da sua família?
É a mesma história, com a diferença que sou uma mulher parda, ou seja, negra de pele clara. Meu pai é negro e minha mãe é branca. 

A família da minha mãe, apesar de ser de origem pobre, é uma família branca e isso tem algumas vantagens que pessoas negras não têm quando a gente pensa em vida produtiva 

Se pra minha mãe foi difícil, pra uma mulher negra com certeza é pelo menos três vezes mais difícil. São semelhantes as dificuldades enfrentadas, mas a gente sabe que o quesito raça faz muita diferença quando pensamos em oportunidades. 

Quando você começou a se interessar pela questão da raça?
Como cresci em uma família branca, apesar de ser clara eu sempre soube que não era como eles, até porque eles faziam muita questão de deixar isso evidente com as ofensas racistas, falar dos traços, do cabelo. 

Um espaço que era para ser de segurança, o berço familiar, acaba reproduzindo muita violência, pensando em famílias interraciais. 

Com 15 anos, um tio começou a se relacionar com uma mulher preta retinta, a tia Rosângela, uma mulher maravilhosa, divertida, que foi funcionária pública, fez faculdade, teve oportunidades. Ela entra na família em um lugar de respeito porque tinha conquistado coisas que a maioria, ali, não tinha. Então ela se torna uma referência. 

Um dia, ela me chamou de canto e falou “Você sabe que não é como eles, né? Então, você tem que parar de querer se comportar como eles”. Foi a minha primeira lição racial. Daí comecei a me localizar no mundo 

Aí, depois que comecei a conviver no meio universitário o meu processo de letramento racial foi mais intenso porque fui conseguir dar nome para as coisas que eu tinha passado a minha vida inteira. 

Consegui estruturar o pensamento, sistematizar as ideias, buscar autores que legitimavam o pensamento. Porque não adianta a gente falar, temos que provar que temos estudo. 

O que era esse “se comportar como eles” que sua tia Rosângela falou?
Alisar o cabelo, achar que eu ia ter acesso aos mesmos espaços que eles, conviver muito com pessoas brancas. 

Apesar de ter crescido em regiões periféricas, ter estudado em escola estadual com 80% da sala de pessoas negras, as minhas melhores amigas eram brancas, as referências que eu buscava eram de pessoas brancas. 

Isso também contribuiu para o racismo que passei, porque sempre busquei me inserir em espaços brancos – na adolescência e na minha vida jovem adulta 

Buscar se referenciar muito em pessoas brancas: é isso que ela quis me dizer ali naquele momento. Eu estava com a ideia de fazer tatuagem, por exemplo, e ela me disse: “Você tem que pensar bem, porque você não acessa o mercado de trabalho como eles”

Ela foi me despertando para coisas sobre as quais eu não tinha pensado. 

O que é o letramento racial para mulheres negras, por que é importante e como funciona?
Todas as formações que o Agbara faz são formações políticas também. Não política partidária, mas no sentido de pensar estruturas de poder. Então, elas têm formação sobre raça e gênero. 

E é importante porque quando estamos liderando iniciativas, o sucesso depende muito da nossa autoestima e da nossa confiança. Isso foi tirado da população negra. 

Quando você faz parte de um grupo que é o tempo inteiro minorizado – as nossas práticas, traços, história, religiosidade são julgados como inadequados –, isso mina a nossa autoestima. E autoestima e autoconfiança são elementos essenciais para conduzir e fazer uma boa gestão. 

Só que autoestima não é algo mensurável de forma simples. A gente sabe que pra conseguir financiamento, muitas vezes são exigidas metodologias de mensuração que não conseguem dar conta destes elementos subjetivos 

As instituições buscam números, resultados quantificados e qualificados. Tem uma luta dentro do campo da filantropia para nós mesmas conseguirmos dizer o que é impacto e o que é avanço para a população. 

Enxergamos alguns elementos que o campo não enxerga como avanço, mas a gente sabe que são essenciais. Autoestima e autoconfiança fazem parte e por isso a gente tem essa jornada de letramento racial. 

Além disso, tem uma jornada antirracista para pessoas brancas que oferecemos duas vezes por ano. 

Qual o papel das pessoas não negras na luta contra o racismo?
A Cida Bento [fundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT – e autora de O Pacto da Branquitude] sempre diz que o problema do negro no Brasil surge da relação entre pessoas brancas e pessoas negras. 

A gente entende que o racismo estrutural é concentração de poder, um poder que é material, econômico e que é simbólico, diz respeito a conhecimento, reconhecimento, prestígio. E esse poder está concentrado nas mãos de pessoas não negras, especialmente pessoas brancas. 

Conseguir lutar contra o fim do racismo estrutural prevê que esse poder tem que circular, tem que mudar de mãos. E pra esse poder chegar nas mãos da população negra, o outro lado também tem que estar disposto a dividir esse poder 

É esse o papel. Na prática, é fomentar, apoiar, abrir mão dos próprios acessos, colocar isso à disposição da comunidade negra, prestigiar e privilegiar pessoas negras. 

Há muitas coisas a serem feitas, mas a primeira é a conscientização de que é necessário uma mudança – essa circularidade de poder que depende, especialmente, de pessoas brancas. 

O que é considerado impacto no Fundo Agbara?
Ganho em autoestima e autoconfiança; domínio de ferramentas técnicas de gestão; aumento da capacidade de articulação em rede; e aumento na receita da instituição ou negócio. 

Qual você considera a maior conquista do Fundo Agbara até hoje?
O Agbara por si só é uma grande conquista. Dentro do movimento negro costumamos falar que é o sonho das nossas ancestrais. 

A maior conquista é poder continuar honrando a luta de pessoas que morreram para que a gente estivesse aqui hoje 

Atender mais de 2 500 mulheres, ter credibilidade, receber um prêmio como o da Folha de S.Paulo, ter uma equipe de 13 pessoas, conseguir fazer circular dinheiro entre as mulheres que a gente atende, contratar mulheres negras, tudo isso é uma grande conquista também.

Como a sua família vê essa conquista?
Ah, tudo mudou. Além de terem extremo orgulho pelo que eu faço e pelo que o Agbara vem se tornando, houve uma mudança material. Hoje eu consigo fortalecer minha mãe, meu irmão, meu padrasto. 

Ajudei minha mãe a comprar seu apartamento. Foi uma virada nas nossas vidas. Tem o orgulho pela relevância social do meu trabalho, mas também tem uma mudança concreta. 

Você sente que está criando novas referências para as gerações mais jovens?
O [ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania] Silvio Almeida falou no podcast do Mano Brown que as pessoas negras têm o compromisso de ressignificar o que foi o passado, mostrar a nossa potência e produção, porque a história negra não se resume ao que aconteceu de 1500 para cá. 

No continente africano havia produção de ciência, produção de cultura, vivências riquíssimas. Mesmo aqui, em território brasileiro, ainda que escravizadas, as pessoas continuaram a produzir experiências ricas que contribuíram para a formação da nossa sociedade 

Então, é preciso olhar e ressignificar o que foi o passado, mas também dar outro sentido para a nossa experiência futura. A luta para mudar o jeito que nos enxergarão futuramente é um compromisso com o que foi e o que virá. Vamos ser ancestrais de outras pessoas. O que estamos deixando pra elas?

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