O Brasil tem uma população carcerária de mais de 850 mil pessoas. Apesar do número expressivo, o tema ainda é cercado de tabus e poucos conhecem as condições dentro dos presídios. Foi depois de viver essa realidade de perto que Péricles Ribeiro, 45, criou a Loja do Preso, especializada na venda de produtos para detentos do sistema prisional.
Nas vitrines da loja, em Belo Horizonte, estão manequins masculinos e femininos usando peças de roupas sóbrias de apenas uma cor. O cliente que entra conversa com as atendentes pelo balcão de madeira. As estantes exibem pacotes de biscoito, pão de forma, xampu, sabão em pó, repelente, caderno, roupas e uma variedade de produtos. Todos os itens têm uma coisa em comum: podem ser enviados para as pessoas em privação de liberdade.
Nem todos os produtos são permitidos em todos os presídios: cada instituição possui suas próprias regras. Péricles explica, citando as regras de alguns dos presídios da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH):
“Cada unidade tem uma lista do que pode entrar e como pode entrar. Por exemplo, em Martinho Drummond, só entra o creme antitranspirante. Na Nelson Hungria, só entra o roll-on de vidro transparente. Em Bicas 1 e Bicas 2, tudo tem que ir dentro de saquinhos. Se você quer mandar um pacote de biscoito, você tem que tirar da embalagem e virar dentro de um saquinho transparente”
A Loja do Preso facilita esse trabalho para familiares e amigos de presidiários. “A pessoa vem e compra tudo pronto. Se não puder nem precisa vir, a gente resolve tudo pelo WhatsApp”, diz Péricles.
Atualmente, o estabelecimento envia cerca de 400 kits por mês para presídios em todo o estado de Minas Gerais, além dos kits que os clientes retiram diretamente no local.
Péricles sentiu na pele a diferença que faz poder contar com esses produtos quando foi preso por tráfico de drogas, em 2016.
Durante os 83 dias que passou na penitenciária, era a esposa Michelle de Almeida, 41, quem preparava o “jumbo”, nome que os presidiários dão ao kit de mantimentos que podem receber por correio ou durante as visitas. Com certa frequência, o jumbo que chegava para Péricles vinha sem alguns dos produtos devido às rigorosas regras de padronização.
Ao sair da prisão, ele começou a buscar um trabalho, mas como seu caso foi notícia em jornais e programas de televisão, tudo ficou mais difícil:
“Já fui bancário, já tive casa lotérica, já fui motorista, já trabalhei na Fiat… mas quando saí não consegui emprego. É como se diz, né? O meu filme estava queimado…”
Alguns meses depois, um amigo o convidou para trabalhar como chaveiro no bairro de Lourdes, um dos mais ricos da capital mineira. Sua esposa começou a trabalhar para uma costureira da região na mesma época.
Num dia de maior demanda, Péricles foi até o local onde sua esposa trabalhava para ajudar com as roupas. Entre uma costura e outra, a chefe perguntou ao casal o que eles fariam se pudessem abrir um negócio e foi surpreendida pela resposta: roupa para preso.
“Michele explicou que quando eu fui preso ela não podia entrar com qualquer roupa, que tem uma série de regras, inclusive pro visitante”
Após ouvir o caso, a chefe propôs então comprar os tecidos e ajudar na confecção. Em pouco menos de um mês, eles produziram cerca de 250 peças. “Fizemos o kit calor, com bermuda e camisa de malha, e o kit frio, com conjunto de moletom”, conta Péricles.
Para conseguir vender, eles imprimiram alguns cartões no computador e panfletaram na porta de dois presídios na cidade de Ribeirão das Neves, na RMBH. Venderam tudo em 15 dias.
“Recuperamos o dinheiro e fomos lá na casa dela [a costureira]: ‘aqui, a parte do tecido que você nos ajudou’, cerca de 2 200 reais. Ela falou ‘não precisa me devolver nem um tostão: pega esse dinheiro, arruma um cortador, uma costureira e começa a fazer mais’”
E assim foi. À medida que as encomendas chegavam, os clientes começavam a perguntar por outros itens: rádio, balde, produtos de higiene…
“Cheguei a fazer uma mini loja dentro do carro porque as pessoas sempre pediam outras coisas”, conta Péricles, rindo. Foi quando ele teve a ideia de abrir uma loja de verdade.
A família ajudou com a documentação e assumiu algumas contas, já que o casal tinha dívidas e não podia assinar os contratos. A Loja do Preso foi inaugurada em abril de 2018.
A Loja do Preso fica no primeiro andar de um prédio comercial do Barro Preto, região centro-sul de Belo Horizonte. O lugar não é tão óbvio assim, a começar pelo nome estampado acima da porta de entrada: PJL confecções e uniformes.
PJL é um lema entre os detentos e significa Paz, Justiça e Liberdade. “Não está escrito Loja do Preso para não expor”, justifica Péricles, sobre a importância de resguardar as pessoas do preconceito.
“Muitas vezes a pessoa vem aqui na loja pra descarregar. Ela sabe que aqui ela pode falar o que quiser que não vai ser recriminada, ninguém vai falar mal do filho ou do esposo dela que está na cadeia. Tem gente que vem aqui comprar pilha, mas fica 40 minutos, uma hora. E vai embora leve”
O preconceito também foi um obstáculo na busca por um ponto comercial. “Quando o pessoal do prédio soube que a gente ia abrir uma loja pra preso, teve muito preconceito. ‘Vai trazer vagabundagem pra cá’, ‘vão assaltar o prédio’, eram coisas que a gente ouvia…”
Apesar do conflito, ele se manteve firme e não abriu mão do ponto estratégico, próximo ao Fórum de Belo Horizonte, destino de muitas pessoas com pendências na Justiça.
Péricles diz que aumentar a clientela e fazer o negócio crescer exigiram muito trabalho.
“Sexta e sábado eu levantava às 3 horas da manhã e vinha para o centro pegar a van que leva o pessoal nos presídios de São Joaquim de Bicas [município da RMBH]. Eu ficava lá até as 6 horas, panfletando. Depois ainda ia para Ribeirão das Neves panfletar para o pessoal na fila dos presídios de Abranches, Dutra, Drummond e Alkimin”, conta Péricles.
Outra ideia que alavancou o negócio foi a instalação de faixas na porta dos presídios. Além de chamar a atenção dos clientes, a ação atraiu o olhar da imprensa. “O Pablo Tiago [repórter] do SBT viu a faixa e me ligou. Ele veio aqui no mesmo dia. Foi nossa primeira reportagem, em setembro de 2018.”
Nas semanas seguintes, a Loja do Preso foi notícia em veículos de renome local, como o jornal Super Notícia, a 98 FM e a rádio Itatiaia.
“Minha esposa falou que na hora que eu estava ao vivo na Itatiaia, a loja estava fazendo fila. Não sobrou nada”
Mas a expansão mesmo veio durante a pandemia da Covid-19: quando a crise sanitária se instalou e as visitas nas penitenciárias foram suspensas, a Loja do Preso passou a oferecer entrega via Sedex. “Foi o boom da loja, teve muito boca a boca entre os familiares”, afirma Péricles.
Foi nessa época que eles contrataram a primeira pessoa. Atualmente, são duas funcionárias e uma estagiária trabalhando na loja. Péricles e Michelle contam ainda com prestadores de serviço: um cortador, uma costureira e um profissional de contabilidade.
Neste ano, a Loja do Preso vive outro momento de expansão, fruto de uma presença cada vez maior nas redes sociais. O perfil no Instagram já tem 36 mil seguidores e conta com parcerias de peso, como os vídeos produzidos pelo grupo de artistas do O Sistema sobre as situações vividas dentro das cadeias.
No ano passado, a Loja do Preso saiu do vermelho. “É o que as estatísticas falam, que depois de cinco anos você começa a ver o lucro da empresa”, diz Péricles.
Recentemente, a empresa começou a desenvolver um modelo de franquia. No ano que vem eles farão a mudança para um espaço maior, no mesmo prédio, a fim de atrair gente interessada em ser um franqueado ou franqueada da Loja do Preso em outras cidades de Minas e do Brasil.
Péricles também sonha em criar um projeto social para oferecer formação profissional para ex-presidiárias e ex-presidiários, com cursos de computação, TI, serralheria, pintura e outros trabalhos que poderiam dar uma formação sólida e um salário digno.
A ideia dele envolve ainda a criação de um podcast para contar a história dessas pessoas:
“A gente tem que mostrar para a sociedade que o ex-presidiário tem condição de dar a volta por cima”
Um dos objetivos é fazer com que a ressocialização não seja “só uma palavra bonita”, como ele pontua: “Isso de ressocialização não existe, a não ser que a família da pessoa já tenha uma empresa. Aí ela sai da prisão e vai trabalhar na empresa do pai”.
A luta de Péricles é para que ex-presidiários tenham a chance de recomeçar. “A lei fala que a pessoa tem que ficar presa, pagar pelo que fez — e, depois, seguir a vida. Então, ela tem que ter oportunidade.”
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