“E daí se seu filho ou sua filha é gay? O amor não se sujeita a condições. A começar pelo amor dos pais pelos filhos”

Tatiana Ferraz - 4 dez 2020
Tatiana, criadora do podcast "Relaxa, mãe".
Tatiana Ferraz - 4 dez 2020
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Nunca me esqueço do dia em que, grávida de uns cinco meses e ainda gravando reportagens para a TV Record, escutei de uma entrevistada, que já era mãe: “Você está prestes a entrar no paraíso”.

Sério. Na hora não entendi ou entendi perfeitamente… Algo de extraordinariamente maravilhoso iria acontecer na minha vida e eu seria transformada em um ser superior em alguns meses.

Querem spoiler? Não, não é bem assim.

Veio a Lucília. Primeira filha desejada pra caramba, amada, em um casamento super legal. Mas quem disse que ser mãe é adentrar no universo da fofura?

Cara, maternidade é um rasgo na alma. Uma catarse. Uma reviravolta tsunâmica na consciência animal do nosso instinto selvagem

Por isso me irrita um pouco esse papo de que “não gosto de criança, por isso não quero ter filhos”.

Não. Criança é criança… Filho é outra coisa.

AS OUTRAS MÃES ME ODIAVAM, PORQUE EU ERA A MÃE DAQUELA MENINA “TERRÍVEL”

Mas este não será um texto sobre maternidade. Será um texto sobre como fazer planos para os filhos e imaginar um futuro ou uma personalidade simplesmente não funciona.

Filhos são independentes. Filhos crescem, aparecem e acabam te ensinando muito. E quando você menos espera, eles estão fazendo discursos existencialistas, brigando por suas convicções, discutindo preconceitos, militando por causas que…

SIM, formamos cérebros para o mundo. Filhos são assim.

Então vou pular direto para o Relaxa, mãe, um projeto que nasceu – vejam vocês – da minha não surpresa ao saber que minha filha era lésbica

Lucília sempre foi diferente. Dava um trabalho danado. Mal comportada na escola (apesar das notas altas). Eu sempre era chamada. As outras mães me odiavam, porque eu era a mãe daquela menina terrível.

Mas ela sempre me deu orgulho. Dona de uma inteligência, de uma esperteza, de uma sedução absurda para conseguir tudo o que queria. Musical, teatral, tangueira, fadista (dramática), mas, acima de tudo, cheia de vida. Brilhava por onde passava. Seduzia, mas também incomodava.

QUANDO MINHA FILHA DISSE QUE ERA LÉSBICA, BATEU UMA INSEGURANÇA: “E AGORA?”

Um dia, aos 15 anos mais ou menos, Lucília me chamou no quarto e me dirigiu a seguinte frase:

— Mãe, você sabe.

Eu soube. De fato, aquela baladeira que saía sempre, tinha um monte de amigos, nunca tinha namorado. Nunca tinha levado um só menino para casa, um ficante, que fosse. Ela era sapatão. E, a partir daquele momento, eu “sabia”

Não sei dizer direito o que passou pela minha cabeça imediatamente. Mas hoje, se fosse para apostar, eu diria que passou aquele filminho de aniversário de buffet, sabe?

Aquele que a gente faz colocando a foto da gravidez, do parto, dos vestidinhos lindos, foto na piscina com os primos, no colo dos avós. Tudo isso ao som de “sou eu assim sem vocêêê”. Tão bonitinha, tantos sentimentos, tão gracinha, tão terrívelzinha…

BUM! Ela tem “sexo”. E gosta de mulheres, não de homens. 

Por alguns momentos, tive uma espécie de medo, de pavor, de insegurança, de confusão mental sobre o que exatamente aquilo deveria significar. E como toda mãe, a primeira coisa que me veio à mente foi “ela vai sofrer”

Mas também veio aquele pensamento do tipo “por que tinha que ser a minha filha”? Por que ela não é “normal”!? Eu via nas redes sociais fotos de filhas de amigas minhas com os namorados e sempre ficava imaginando que comigo seria igual. E agora?

Hoje, já experiente e adulta madura, eu penso: cacete, o que é ser “normal”?

CONTEI AO MEU MARIDO… E A REAÇÃO DELE ME PEGOU COMPLETAMENTE DE SURPRESA

Esses pensamentos hoje me dão até vergonha. Passaram pela minha cabeça, mas foi tudo muito rápido. Na sequência, quando ela me perguntou se eu iria contar ao pai dela, respondi que claro que sim, pois não podia “arcar com isso sozinha”.

Lucília e Tatiana em dia de jogo do São Paulo.

Pensei que ao contar ao pai dela seria um choque. Sim, porque ele é de família muito tradicional, portuguesa, uma cultura cheia de pudores, regras tradicionais familiares.

E imaginando que ele iria ficar chocado,  fui preparada para isso.

Mas, para a minha surpresa, lembro até hoje de ele ter feito uma cara do tipo “Hã? E daí?”. Em seguida, a frase que veio como uma flecha de um cupido: “Eu quero é que ela seja feliz”.

Casamento de muito tempo é assim. A gente perde algumas coisas, mas ganha uma espécie de “super gêmeos – ativar!” quando o assunto diz respeito aos dois. Mais precisamente, aos filhos.

A gente se conhece há tanto tempo, já amou tanto esses filhos, que parece haver no outro uma espécie de “outro eu”. Uma outra opinião sobre assuntos relacionados às crias.

Essa cara e essa frase do meu marido, que vieram minutos após a revelação da Lucília, me deram uma paz absurda e uma vontade de sair por aí dizendo que minha filha é sapa e que eu estou “cagando” para isso

E foi assim mesmo.

COMECEI A ENXERGAR EM MIM UM POTENCIAL QUE NÃO CONHECIA: AJUDAR PESSOAS

Onde dou aulas — ambiente universitário e muito diversificado — eu fazia comentários sobre isso. Fazia graça. Me apresentava dizendo que tinha um casal de filhos e que os dois estavam solteiros. Mas só moças podiam se candidatar (meu outro filho é hétero).

E sempre que apareciam assuntos desse tipo eu lidava com bom humor, falava da minha filha com naturalidade, fazia piadinhas entre mãe e filha e compartilhava tudo isso nas conversas dos corredores da faculdade e nas redes sociais.

Foi aí que comecei a enxergar em mim um potencial que não conhecia: o de ajudar pessoas.

Não que eu seja uma pessoa rara ou especial. É que às vezes a gente tem vontade de fazer algo para ajudar alguém, não tem?

Aí ficava pensando… Sei lá, contadora de histórias? Trabalhar em hospital? Ser voluntária em alguma ONG? E ficava por isso mesmo. Mas comecei a perceber que talvez tivesse um dom de — através de textos — sensibilizar pessoas para que fossem mães ou pais como eu. Ou seja, “de boas” com a orientação sexual dos filhos.

Comecei a perceber isso quando, ao publicar textões”nas redes sociais, obtinha muitos likes e muita gente dizendo “como eu queria que minha mãe lesse isso” ou “como eu queria que meus pais fossem assim”. E aí surgiu o Relaxa, mãe

A ideia foi reunir em um blog textos relacionados a essa visão de que “e daí seu filho ser gay?”. Comecei a ter contato com histórias de pais e mães que não se conformavam com a ideia de ter filhos namorando pessoas do mesmo sexo. E eu só me perguntava: mas gente, qual é o problema?

Por que é tão importante o que uma pessoa faz entre quatro paredes, ou as preferências, ou as intimidades? O importante é ser legal, é ser limpinho (sempre disse isso a meus filhos: seja limpinho!), ter caráter, ter bom coração, ser honesto. E orientação sexual não tem absolutamente nada a ver com caráter. Simples. 

A MENSAGEM QUE EU PASSO: O PRECONCEITO NÃO PODE COMEÇAR DENTRO DE CASA

Meu blog acabou virando um canal no YouTube. Gravei alguns vídeos com meu celular mesmo, editando em casa. Com o canal “Relaxa, mãe” saindo em algumas reportagens, os vídeos acabaram tendo muitos views.

Um dos vídeos chegou a 13 mil visualizações! E recebi muitas mensagens de apoio de filhos homossexuais, mães que eram exatamente como eu, contando suas histórias… Mas também mensagens de mães que estavam sem chão por terem se dado conta de que seus filhos “não eram ‘normais’”…

Sem nunca “dar uma de psicóloga”, respondia (ainda respondo) a todas as mensagens. Como amiga. Dizendo que não estamos sozinhas, que somos muitas, que o preconceito não pode começar dentro de casa, etcétera, etcétera.

Depois de um tempo, o canal ficou meio largado. Não dava para conciliar aulas, trabalhos, casa, cachorros, gatos, filhos com produção, edição, sonorização etc. Mas o bichinho estava instalado: só faltava uma ideia genial e um pontapé de ânimo para continuar com tudo. 

A Lucília, minha filha, sempre foi entusiasta da ideia. Encorajada por mim, nunca teve medo de se expor. Pelo contrário. Ela embarcou na minha ideia de falar sobre isso abertamente porque é assim que se combate o preconceito. 

A SOCIEDADE EVOLUI. QUEM, DA MINHA GERAÇÃO, NÃO FAZIA PIADAS HOMOFÓBICAS?

Namorar pessoas do mesmo sexo, apresentar um namorado gay ou uma companheira lésbica não deveria assustar ninguém. Todos nós pensamos assim.

Em um dos (poucos) comentários haters que recebi, um cara disse: “Você incentiva sua filha a ser gay”. E eu, com muito bom humor, lembro de ter respondido: migo, se sem incentivo ela já é tão sapatona, imagina se eu incentivasse, hahaha!!!

É assim. Ninguém deve ter vergonha. É um assunto normal, mas que durante muito tempo foi tabu. É cada vez menos. Sim, evoluímos demais.

Na minha geração pouco se falava sobre isso, e tenho certeza de que muito mais gente se escondia. Hoje são tantas pessoas legais, tantos movimentos, tantas celebridades se assumindo e dando coragem.

Eu sou otimista. Sou testemunha de uma época. Não escondo que ainda existe violência, que em muitos países  (ou mesmo regiões brasileiras) a aceitação não evoluiu muito. Mas estamos melhores do que ontem.

Eu, por exemplo, mudei demais. Quem, da nossa geração, não fazia piadinhas homofóbicas quase sem perceber que eram homofóbicas?

Hoje, temos mais consciência. E meus netos vão viver, sim, num ambiente mais tolerante.

O “RELAXA, MÃE” VIROU PODCAST PARA CONTAR MAIS HISTÓRIAS DE ACOLHIMENTO

Eis que um produtor e apresentador (e amigo) fantástico, o Danilo Gobato, que entende tudo de produção e áudio, me convenceu a fazer do “Relaxa, mãe” um podcast. De fato, a maneira mais útil de reunir em temporadas tantos assuntos, tantas histórias.

Na primeira temporada, contei a minha história. O meu ponto de vista, a minha filha, o pai dela, a reação da família, as reações das pessoas aos meus textos.

Na segunda temporada, estou contando outras histórias — sempre felizes — de famílias que acolheram os filhos e não estão nem aí para que o que os outros possam pensar.

A ideia é compartilhar histórias boas, sim. Já existem muitos grupos que falam de preconceito, que fazem denúncias, que divulgam desgraças contra LGBTs. Sigo e apoio todos eles — mas esse não é o papel do “Relaxa, mãe”

O “Relaxa” é um cantinho para que a gente possa compartilhar nossas histórias, e que pais e mães se sintam acolhidos e fazendo parte de uma rodinha saudável de gente saudável, trocando ideias saudáveis sobre o que é a vida sem preconceito.

Utópico, eu sei. Mas possível!

 

Tatiana Ferraz é coordenadora de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, doutoranda no Programa de Saúde Baseada em Evidências (PGSBE)/Unifesp, mestre em Comunicação e criadora do “Relaxa, mãe”. Siga o projeto também no Instagram: @relaxamaepodcast.

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