Ele criou um projeto que leva a comunidades carentes itens que não entram na cesta básica: teatro e contação de histórias

Plinio Meirelles - 2 jul 2021Plinio Meirelles, ator e criador do projeto "Quem Conta Um Conto Aumenta Um Sonho".
Plinio Meirelles, ator e criador do projeto “Quem Conta um Conto... Aumenta um Sonho”.
Plinio Meirelles - 2 jul 2021
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Todo mundo que se importa já doou uma cesta básica. Ou comprou um remédio pra alguém ou — ao menos — entregou 10 reais no semáforo.

Não importa muito se depois surge uma dor na consciência, uma culpa por sentir-se privilegiado ou uma crítica a essa “cultura da esmola”. Também não importa se a doação é feita pra aplacar a própria dor ou a dor de alguém (ou um pouco de ambas).

Quem de fato consegue olhar para o lado entregou, pelo menos uma vez, alguma coisa sua para o outro. A questão que bagunçou minha vida, lá no início de 2014, é que passei a achar isso muito pouco.

Naquela altura, eu já havia trabalhado bastante na área de desenvolvimento social em comunidades vulneráveis, seja no terceiro setor ou no setor público. Já havia visto um pouco de tudo. Também havia lido bastante sobre as políticas públicas e pensado sobre formas de ajudar as pessoas a acessarem seus direitos. Direito básicos e negligenciados. Direito a comida, a saúde, a educação

Às vezes, as respostas pareciam óbvias. Noutras, não conseguia sequer imaginá-las. Em ambos os casos, a execução era quase impossível. No capitalismo em que vivemos, realmente não há lugar pra todo mundo. 

O que se faz, então, nesses casos é “apagar incêndios”. Entrega um benefício pra uma família, manda uma cesta básica praquela outra, denuncia a violência pro conselho tutelar… Todos esses casos, tão ilustrativos quanto clichês, reduzem o tamanho da complexidade das questões.

São, afinal, pessoas. Com dores, saberes e que se parecem muito com qualquer outra pessoa repleta de privilégios — mas que são separadas pelo nosso abismo social.

É PRECISO OLHAR PARA O SER HUMANO POR TRÁS DAS URGÊNCIAS

Na verdade, o que as políticas de garantia de direitos fazem é atender a necessidade, a urgência e a violação. Não o ser humano.

Olhando praquilo eu me perguntava: e o sonho? Onde está? Onde está a vontade e o desejo? Onde cabe?

Neste modelo, as perguntas eram feitas diretamente para o ser humano, para o homem ou a mulher do outro lado da mesa. Do que você gosta? O que você sabe? Quem é você?

Ficava claro que, quando as necessidades mais básicas não estão garantidas, essas perguntas nunca são feitas de fato. Primeiro a gente come, dorme, acha um teto pra morar e paga os boletos… Depois, a gente olha pra dentro e pra fora e pensa sobre o que, afinal, é a vida…

Não me dei por satisfeito. Eu queria entender por que aquelas pessoas me eram apresentadas apenas pela falta. Mas e a sobra? O que tinha ali? Quais eram as histórias que ensinaram, que tinham valor, que tinham potência?

LEVANDO O TEATRO PARA DENTRO DA CASA DOS MORADORES DE COMUNIDADES

Foi aí que nasceu a ideia do projeto “Quem Conta um Conto… Aumenta um Sonho”. A princípio, era simples: contratar atores profissionais para entrar na casa de pessoas moradoras de comunidades para representar uma história e depois conversar sobre elas.

Teatro bom, bem feito, dentro da sala de uma casa. Com figurino, com cenário portátil, com música. E depois conversa. Bate papo, com uma boa xícara de café, bolachas, biscoito doce. Histórias compartilhadas.

Uma relação de trocas. E também uma inversão da lógica de que tudo que é bom acontece a quilômetros de distância da casa de um morador de comunidade. Existe coisa boa bem pertinho. Dentro de casa, dentro de cada um. 

Claro que foi difícil convencer pessoas da importância de um projeto que entra na casa e na vida de famílias empobrecidas “apenas” para levar teatro e trocar histórias. “E a comida?” “E o dinheiro?” “Vai gastar dinheiro com cultura quando tem gente morrendo nos hospitais?” É uma verdade? Talvez. É justo? Nem tanto 

Saúde não é apenas a ausência de doença; educação não é só escola. Os direitos negligenciados são quase incontáveis.

A arte não é, também, um direito de todos os cidadãos? 

SEM APOIO GOVERNAMENTAL, RESOLVI SEGUIR EM FRENTE E BANCAR A IDEIA

Dando com a cara na porta um monte de vezes, foi ficando difícil.

Aqueles da assistência social não estavam a fim de um projeto que não levava nada “palpável” para as pessoas — e me mandavam bater na porta das secretarias de cultura. Os da cultura também não estavam muito interessados em um conteúdo para pisar no barro; para eles, mais importante era “nutrir a bolha”.

Nessa brincadeira de joão-bobo, resolvi bancar o projeto. Mas pra botar de pé uma iniciativa dessas, nunca dá pra deixar nas costas de um único “maluco” — precisa, pelo menos, de dois. Priscila Tessuto, uma amiga igualmente incomodada, e também atriz, resolveu encarar essa briga comigo

Tínhamos as famílias de uma comunidade que eu já conhecia bem. Tínhamos o repertório das histórias para serem encenadas nas casas. Tínhamos adereços e figurinos colhidos em brechós e bazares da mesma comunidade. E um carro velho e capenga para levá-la – ensaiadinha – para representar as tais histórias na casa das pessoas.

Tudo sem salário, sem cachê. Mas com muita expectativa.

NA PRIMEIRA EXPERIÊNCIA, A REAÇÃO FOI UM BANHO DE ÁGUA FRIA

Me lembro até hoje do primeiro dia. Entramos na casa de uma mulher que eu já conhecia há certo tempo, moradora de um barraco com chão de barro, uma cama de casal num único cômodo com cinco filhos.

Sujo, tudo muito sujo. Muitas intervenções já realizadas e muito atendimento do serviço social. Ela continuava ali, à mercê do mundo, desgrenhada, janelas fechadas pra um horizonte difícil de enxergar.

Escolhi essa primeira família a dedo. Tinha interesse em saber como ela havia chegado até ali, o que havia perdido, que vontade ela ainda tinha, o que gostaria de compartilhar com seus filhos… 

Montamos o pequeno cenário e a atriz começou a fazer a cena: era uma adaptação de um conto do Guimarães Rosa, sobre um pássaro na gaiola. As crianças ficaram atentas, mas a mãe continuava com a expressão atônita, turva como um dia nublado… Emendamos a conversa, tentando falar sobre liberdade; levamos e tomamos café, deixamos todo mundo em roda… Mas não deu em nada. A mulher ficou muda, o papo não rendeu

Fiquei mal, Priscila também. Tínhamos apenas um dia por semana para realizar essa ação.

Tinha separado umas 30 famílias por mês e a ideia era ir repetindo as mesmas durante um tempo, para confirmar se aquilo fazia algum sentido. Em algumas, sucesso. Noutras, silêncio.

O EFEITO DA ARTE. OU: COMO TRANSFORMAR UM LAR E A AUTOESTIMA DAS PESSOAS

Mesmo sem nenhum recurso, continuamos por seis meses. Mas agora eu não ia fazer a cena, ficava na retaguarda.

Eu levava a atriz e o cenário, mas não entrava na casa. Imaginei que minha presença ali – por já ser conhecido na região como o gerente da política social – iria atropelar esse outro lugar que se construiria.

E o projeto seguia: a cada mês, um conto diferente, uma nova cena, mais bolachinhas e conversas.

No último mês, resolvi acompanhar de novo. Fui ansioso pra casa da primeira mulher e, assim que cheguei, me surpreendi. Ela tinha varrido o chão. Tinha aberto espaço para instalar o cenário. Estava com um vestido, o cabelo penteado e amarrado atrás

Os filhos já estavam prontos esperando e ela tinha feito um pão para oferecer junto com nosso café. Havia chamado duas vizinhas que já estavam apontando para nós assim que fomos nos aproximando: “A menina da história chegou!”.

Ficamos duas horas na casa entre contos, cenas, conversas e risadas. Perdi todo meu cronograma e todo o tempo conhecendo pela primeira vez quem era aquela mulher. Como eu adoro perder tempo! 

NOSSA METODOLOGIA VIROU UMA TECNOLOGIA SOCIAL (E RESISTIU À PANDEMIA)

Depois disso, o projeto cresceu — e eu também. Com esse resultado, me nutri da força que precisava para fazer o negócio expandir.

Convenci a Secretaria da Assistência Social de São Paulo a disponibilizar um pequeno recurso para continuar com mais dignidade e contratar um casal de trovadores.

Em 2018, muito mais: um recurso de patrocínio de um fundo estadual para manter o projeto por um ano com uma equipe muito maior: seis atores, equipe de gestão, transportes, figurinos, cenário.

No meio da jornada, enfrentamos a pandemia trazendo os contos para o ambiente virtual e montando “kits sensoriais”, entregues na porta da casa de cada um e preparados para ajudar as famílias a viverem a experiência de forma mais completa

“Quem Conta um Conto… Aumenta um Sonho” virou uma tecnologia social, realizada pela Cia dos Afetos e pela Organização AME, no Jabaquara, São Paulo. Trouxe caras novas, novas vozes, novos olhares. Carlos, Gabriela, Maristela, Will, André, Jussara… Novos atores, novas forças para a mesma luta.  

Hoje, tenho certeza de que esta metodologia faz diferença. E acredito que também pode ser replicada em diversos contextos.

A ideia agora é expandi-la para outros formatos: cabines protegidas dispostas em praças públicas de periferias, visitas em outras comunidades, contos virtuais sendo projetados nas paredes dos barracos, nos muros das unidades de saúde, nos portões das escolas. 

“Quem conta um conto, aumenta um sonho” faz parte de uma cesta mais do que básica. De uma iniciativa que leva a arte e a cultura pro morro e as utiliza para construir uma ponte de diálogos sobre este abismo que nos divide, invadindo e interferindo no cenário destas comunidades que são carentes de recurso, porém abundantes em histórias de vida e de superação. 

 

Plinio Meirelles, 40, é ator, cineasta e consultor de projetos socioculturais. Trabalha há mais de 15 anos com arte e cultura em ambientes comunitários, tendo gerenciado diversos projetos socioculturais no terceiro setor como “Quem Conta um Conto… Aumenta um Sonho”, “O sabor do saber” e “Núcleo de Cinema Comunitário“. Atualmente é superintendente da Organização da Sociedade Civil AME e faz parte do corpo técnico da Associação Cultural Casa das Caldeiras. Como ator, compõe a Cia dos Afetos e a Cia do Sopro

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