Incrustada em pleno pólo nacional da produção de calçados, em Franca (SP), nesta fábrica não entra nem um courinho de boi. Há quatro anos Gabriel Silva, 27, criou a marca de calçados Ahimsa, produzidos em uma fábrica 100% vegana. Mas chegar a este empreendimento não foi fácil, nem óbvio — mesmo. Muitos de nós provavelmente já passamos por isso: às vezes, o caminho a trilhar está bem diante dos nossos olhos, mas não enxergamos. Preferimos olhar para o céu em busca de respostas, em vez de pisar firme nas trilhas que o destino já traçou para nós. Se esse trecho parece “metafórico” demais, calma, tem um motivo: a trajetória de Gabriel começa mesmo pelo ar.
Aos 18 anos ele já era piloto profissional. Aos 21, porém, precisou abandonar a carreira que amava após ser diagnosticado com diabetes mellitus, um tipo da doença que requer aplicações frequentes de insulina. “Com o diagnóstico, num primeiro momento eu não tinha muita certeza do que gostaria de fazer o resto da minha vida ainda, mas ficar no ramo da Aviação sem poder pilotar seria meio traumático. Decidi então retornar para Franca, onde meu pai tinha uma empresa de agenciamento de calçados e acessórios para marcas do mundo todo”, conta.
Ao voltar para a cidade e se envolver com o universo dos calçados, do qual muitas vezes tentou fugir, tomou gosto pela coisa. “Fiquei apaixonado. Parece lenda, mas é verdade: às vezes está na sua cara e você não enxerga.” Ao lado do pai, trabalhou quase dois anos com calçados convencionais, atendendo a marcas que desenvolviam sapatos de couro, entre outros. Mas, paralelamente a isso, um conflito interno crescia. Por causa do diabetes, Gabriel adotou novos hábitos alimentares tornando-se vegetariano estrito (a dieta sem nada de origem animal melhora a qualidade de vida pode reverter alguns indicadores da doença) e, também, vegano. No veganismo, além da alimentação mudar a pessoa também deixa de comprar qualquer produto que tenha algo proveniente de animais (acessórios, vestuários, cosméticos etc). Imagine um vegano trabalhando em uma fábrica em que se processa couro, ou seja, pele animal. Este era Gabriel:
“O pessoal e o profissional não estavam se comunicando bem. Eu não achava produtos veganos, mas demorei para ver que eu poderia produzi-los”
Este incômodo de alguém que trabalha na fabricação de calçados também se reflete em consumidores de forma geral. Um exemplo é que, para muitos veganos, comprar um sapato de material sintético em uma loja que majoritariamente venda peças em couro não faz sentido. E mesmo em se tratando de uma marca que trabalhe apenas com produtos sintéticos, se a fabricação for convencional (ou seja, numa fábrica que produz também para marcas não-veganas), ainda não é o ideal. Era essa a lógica de Gabriel Silva ao decidir criar a própria marca, em 2013. Vale dizer que existem outras marcas veganas de calçados no país, como a Insecta Shoes e a King55 (ambas com produção terceirizada, ainda que vegana).
QUANDO O NOME É A PEÇA QUE FALTAVA
“Decidi criar a marca no exato instante em que conheci o nome ‘Ahimsa’, um termo milenar hindu que significa ‘não fazer mal’. Se uma pessoa que conhece o termo souber que tem uma marca de sapatos com este nome, a mensagem está transmitida instantaneamente. E quem não conhece, por ser um nome tão diferente, vai querer ler mais sobre”, conta Gabriel.
A palavra é bem conhecida entre praticantes de yoga, porque a não-violência (outra tradução de ahimsa) é um dos princípios básicos da filosofia. Gabriel, vale dizer, não é praticante de yoga. “Está na minha listinha , mas os últimos quatro anos voaram”, diz. Embora o tempo passe voando, com o perdão do trocadilho, todo processo de criação da marca envolveu muito trabalho. O investimento inicial na Ahimsa foi de cerca de 50 mil reais, montante que serviu para colocar em prática uma plataforma de vendas, criar a identidade visual e adquirir a primeira tiragem de produtos, que foi feita por uma empresa terceirizada.
Depois, começou a produção própria. E foi unindo os conceitos de “vegano” e “sustentável” que a Ahimsa, para seu fundador, passou a representar um diferencial.
“Quando a gente começou a testar a ideia no mercado, no primeiro mapeamento que fizemos em 2013, não encontramos nenhuma marca de calçados 100% vegana, então achamos que era importante carregar junto ao veganismo a ideia de sustentabilidade”, diz ele. Num primeiro momento, ele decidiu trabalhar apenas com tecido de algodão, por ser o mais fácil de comprar e “provar que não tinha nada de origem animal”. No comecinho de 2014, a marca introduziu uma linha de algodão reciclado e fios de garrafa PET reciclada.
Mas, como assim, a garrafa PET vira… sapato? Isso mesmo! Ele fala do processo: “Para quem só industrializa, como eu, é muito simples. Existem os catadores, que vendem o PET; existe a empresa que compra o PET triturado e o transforma em fio; e existe a empresa que vai tecer. O PET já chega até mim como um tecido comum, eu só preciso conhecer o fornecedor certo”.
O DESAFIO DE SER SUSTENTÁVEL NA RAÇA
Em 2015, ainda seguindo a pegada mais sustentável, Gabriel tentou introduzir o laminado vegetal, que era como se fosse um sintético, porém orgânico, feito com látex de seringueira, mas acabou não dando certo porque, apesar de o visual agradar, a escala de produção tornou o custo inviável. Ele ficou por mais um ano trabalhando só com algodão, inclusive reciclado, até que passou a considerar o laminado sintético, o chamado “vegan leather” ou PU (poliuretano), como mais uma matéria-prima. Isso foi praticamente uma demanda do público da Ahimsa: “Alguns consumidores não querem usar sapatos que se destoem demais do convencional, então o sintético ajuda muito”.
Hoje, a marca trabalha com matérias-primas em algodão, lona reciclada (que, segundo Gabriel, é uma combinação de algodão reciclado com PET reciclado) e sintética, em PU (poliuretano), o também chamado “couro sintético”. Gabriel aponta algo curioso: é comum confundirem o poliuretano com o “couro vegetal”, que apesar do nome ainda continua sendo de origem animal. “O termo couro vegetal só é usado para identificar um curtimento que não usa metais pesados”, diz.
Apesar de trabalhar com sintéticos, a ideia da sustentabilidade não se perde. “Nosso consumo de água é ridículo, eu pago o mínimo do mínimo e todos os dejetos da fábrica são recolhidos, então, olhando esse processo, nós não estamos poluindo nada diretamente”, afirma. E o mais importante é a opção de sustentar uma produção 100% vegana. Isso cobra um preço. Para não abrir mão da filosofia que o motivou a abrir o próprio negócio — ainda mais mantendo o frete gratuito inclusive para vendas internacionais pelo e-commerce — pilotar a Ahimsa exige um esforço que um empreendedor convencional dificilmente toparia:
“O custo não é o melhor que eu poderia ter, a velocidade de produção também não. E há os momentos de turbulências nas vendas”
Gabriel diz que se alguém chegasse para ele querendo montar uma marca, vegana ou não, ele “não recomendaria o caminho que a gente seguiu, a não ser que a pessoa tenha as necessidades tão particulares quanto as nossas”. Para precificar os produtos (além dos sapatos de fabricação própria, há carteiras, mochilas e cintos feitos por terceirizados), ele diz que são considerados os seguintes pontos: disponibilidade de estoque, tipo de matéria-prima e mão-de-obra.
Dentre os modelos que se destacam, estão os calçados unissex da linha Workboot, que saem 296 reais; os femininos da linha Derby (feitos em lona 100% algodão repelente à água, biolátex com cortiça natural, borracha e madeira reconstituída), que custam 246 reais e os modelos Slip-On, (de 70% algodão e 30% fios de garrafa PET reciclada), por 226 reais.
Quanto ao valor do produto final, o empreendedor lida com a transparência para justificá-lo. “Eu questiono um pouco o cliente que fala que nosso produto pode ser considerado caro, então, o trabalho que a gente tem feito é educá-lo quanto ao processo produtivo. É uma troca: na medida em que a gente conseguir vender mais, nosso custo vai ser amortizado numa quantidade cada vez maior, que vai fazer com que ele fique estável. A meta que tenho para os próximos anos é conseguir ter um crescimento que pelo menos freie a inflação que a gente sofre todo ano no Brasil.”
E por falar em inflação, um momento crítico, mas que também serviu de aprendizado para a Ahimsa foi o ano de 2016. Gabriel estava começando a investir no exterior (a marca tem parceria com 15 lojas veganas em outros países, especialmente na Alemanha, onde o veganismo é mais difundido) e isso garantiu que, financeiramente, eles não fossem tão afetados pela crise econômica brasileira. “Se a gente não tivesse, na metade de 2015, traçado o plano de ter vendas internacionais e insistido até que compensasse o investimento, o ano de 2016 não teria sido legal. E foi muita teimosia nossa. A gente insistiu e fez acontecer.” Por receio dos efeitos da crise, ele segurou a produção, mas no final do ano precisou aumentá-la significativamente para atender à demanda, motivada principalmente pela procura de clientes de fora. Deu certo: o faturamento, no ano passado, chegou a 1 milhão de reais.
PARA ANIMAIS E SERES HUMANOS
Hoje em dia a Ahimsa produz, de forma quase artesanal, cerca de 100 pares de sapato por dia. A marca tem 17 funcionários, que o empresário tenta motivar com carga horária diferenciada e salários acima da média:
“Veganismo não pode ser bom só com os animais. Aqui na Ahimsa a ideia é fazer o bem a qualquer ser vivo, obviamente que o ser humano também”
Não houve uma marca que tenha inspirado Gabriel para a criação de seu negócio especificamente, mas para mantê-lo, não faltam opções inspiradoras, como as norte-americanas TOMS, de alpargatas; Patagônia, de roupas e Warby Parker, de óculos: todas com apelo social e sustentável.
Quanto aos próximos passos, o empreendedor espera poder criar outros modelos, baseados em coisas que os consumidores têm pedido. Ter loja física ainda não faz parte dos planos, mas há a ideia de criar um espaço, dentro da fábrica, onde o cliente possa conhecer a produção e experimentar não só os sapatos, mas também tomar um lanche vegano. Já uma parceria com ONGs de proteção aos animais ou instituições assistenciais não está descartada, embora ele ainda não tenha firmado algo, mas a ideia existe. “Não quero fazer as coisas sozinho. O mundo em que vivemos é muito individualista e, independentemente da crença de qualquer um, todo mundo é culpado disso.”
Promover uma marca que prega a não-violência, seja ela a animais, seres humanos ou ao planeta, tem sido transformador para o ex-piloto. “O contato tanto com funcionários como com consumidores me tornou uma pessoa mais humana, estou tentando enxergar tudo com os olhos dos outros.” Se dá para comparar à aviação? “A adrenalina é a mesma de quando eu voava, ou até melhor, porque aqui tenho que arregaçar as mangas e fazer acontecer.”
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