Em defesa da comunicação analógica, ela criou um clube de assinatura de cartas e hoje despeja suas inquietações na máquina de escrever

Dani Rosolen - 21 fev 2024
Mariana Ferrari, jornalista e criadora do projeto Carta por Carta (foto: Rodrigo Zaim).
Dani Rosolen - 21 fev 2024
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Se hoje você abrisse a sua caixa de correio ou passasse na portaria do seu prédio para pegar as correspondências e, entre as contas de luz, água, condomínio etc., encontrasse uma carta, qual seria sua reação?

Num mundo em que as pessoas aceleram mensagens de áudio no WhatsApp para “ganhar tempo” e em que as IAs criam qualquer tipo de texto, a jornalista Mariana Ferrari, 27, resolveu nadar contra a corrente ao criar um clube de assinatura de cartas.

“Eu digo que as cartas são mensagens transgressoras porque para elas o tempo é indeterminado. A partir do momento que você para para escrever ou ler o que foi escrito, você faz o tempo pausar por alguns instantes”

Defensora das formas de comunicação duráveis, Mariana criou o Carta por Carta em dezembro do ano passado e iniciou o disparo em janeiro. “O projeto também tem isso de mostrar que as comunicações não precisam ser tão perecíveis, elas podem perdurar mais tempo”, diz.

Todo mês, os assinantes recebem em casa uma cópia da carta original (escrita por ela na máquina de escrever, envelopada e selada artesanalmente), um conto de sua autoria no formato de livreto — também produzido de forma artesanal e que tem relação com o tema da carta –, um adesivo e um presente surpresa feito à mão.

DO JORNALISMO ELA PARTIU PARA AS CRÔNICAS, QUE DIZIAM SER UM GÊNERO “FADADO À MORTE”

Com colaborações em veículos como El País, Intercept e Le Monde Diplomatique e trabalho nas redações da IstoÉ (onde também foi articulista), Jovem Pan e Ponte Jornalismo, Mariana sempre adorou estar na rua apurando.

“Mas todas as questões que envolviam o ambiente jornalístico, o texto mais quadrado, com uma fórmula, começaram a me mostrar que aquele lugar talvez não fosse pra mim”

Depois de muito refletir e até de receber um conselho de um diretor de redação para que seguisse o caminho literário, ela decidiu sair das redações.

Passou a atuar de forma autônoma com comunicação corporativa e assessoria, ao mesmo tempo em que se dedicava à escrita do seu livro de crônicas sobre São Paulo, Entre o Caos e a Humanidade, publicado em 2021 pela editora Patuá.

“Muitas pessoas acreditam que as crônicas estão fadada à morte, mas com esse gênero a gente consegue aproximar a literatura das pessoas, a partir de um texto que dialoga muito com a rua, com a percepção de mundo de quem lê”

Mariana começou também a postar crônicas nas redes sociais como um experimento, mas se sentiu incomodada, apesar de a recepção ter sido boa. “Nas redes sociais, tudo que a gente publica se acaba muito rápido, se dilui de um dia para o outro.”

Leitora de crônicas de autores como Machado de Assis e Clarice Lispector, ela sabia que as questões abordadas em textos desse gênero de anos atrás ainda faziam sentido — e queria que seus escritos reverberassem por mais tempo do que uma zapeada no feed.

Passou então a escrever uma newsletter. Mas ainda assim se sentia insatisfeita.

“Eu estava saturada de ter essas leituras única e exclusivamente num espaço virtual”

Assim, ela resolveu criar um projeto independente de distribuição de livretos gratuitos em espaços físicos com crônicas de sua autoria.

Declaração de Dias Comuns e Outras Crônicas, com quatro crônicas, teve 800 exemplares distribuídos em livrarias independentes e cafés de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e algumas cidades de Minas Gerais, tudo às custas da autora.

A TROCA DE CORRESPONDÊNCIAS FAZ PARTE DA VIDA E DA MEMÓRIA AFETIVA DE MARIANA

A partir dessa experiência com os livretos, a autora começou a questionar que outras formas de comunicação estariam “fadadas à morte”, como ouvia dizer em relação às crônicas, mas que, apesar desse vaticínio, continuam reverberando dentro dela.

E foi assim que chegou às cartas.

“A gente se comunica muito hoje em dia, mas essas conversas começam e terminam e acabamos esquecendo até mesmo da existência delas. Por outro lado, comecei a pensar como as cartas que eu já escrevi e recebi na minha vida, de alguma forma, ainda ressoam em mim”

As cartas do projeto são escritas na máquina de escrever; os assinantes recebem cópias da original.

Ela diz ter uma memória afetiva muito forte das cartas que mandava quando era criança. “Ia viajar para outra cidade e conhecia meninas e meninos no hotel com quem trocava endereço para escrever.” E também das cartas que recebia dos seus avós ou escrevia — e continua escrevendo — para os pais como uma demonstração de carinho.

AS CARTAS PARTEM DE OBSERVAÇÕES E INQUIETAÇÕES DA AUTORA; A PRIMEIRA ABORDOU O TEMA DA MEMÓRIA

Conversando com amigos, Mariana questionava: quando tinha sido a última vez que eles receberam uma carta? “Alguns se lembravam de ter recebido, outros nunca tiveram essa experiência na vida.”

A partir daí, nasceu a ideia do Carta por Carta, que deseja levar mais do que literatura para as pessoas.

“Hoje em dia, qualquer projeto que a gente possa entregar algum tipo de afeto já é muito grandioso. Chegar em casa e encontrar uma carta que foi feita do início ao fim de forma artesanal é quase um abraço que você recebe ali na sua caixinha de correspondência”

Mariana começou a elaborar e divulgar o projeto em dezembro de 2023. Na hora de escrever, ela diz que se debruça sobre alguma observação e inquietação mais pessoal, direta e sensível sobre algo que está acontecendo na sociedade.

Em 20 de janeiro, a carta inaugural foi enviada aos primeiros assinantes. “Falei sobre memória”, diz Mariana. “O tema nasceu muito de uma angústia minha.”

É bem possível, aliás, que você que está lendo este texto agora também se sinta assim:

“Percebo que a minha memória está cada vez mais afetada, porque a gente está num nível gigantesco de troca de informações e comunicações que se iniciam, terminam — e no dia seguinte a gente já não se lembra mais de nada”

Além do processo criativo de elaborar os textos — que são escritos diretamente na máquina e depois ganham cópias xerocadas —, ela cuida da personalização dos adesivos e presentes (na primeira edição, uma flâmula) e dos envelopes, carimbados e lacrados com cera; exceto pelo envelope, todos os papeis são reciclados.

A segunda carta abordou “Como a dança pode estar presente na nossas revoluções diárias?” e já foi disparada para os assinantes, que hoje se concentram nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e escolhem entre o plano semestral (R$ 30/mês) e o anual (R$ 25/mês).

Quem assina o Carta por Carta, nas palavras de Mariana, ajuda a valorizar a literatura independente e o trabalho manual.

O SONHO É LEVAR O PROJETO A ASILOS E ESCOLAS — E AJUDAR ADOLESCENTES E IDOSOS A LIDAR COM O TEMPO E A SOLIDÃO

Mariana diz que até o momento as pessoas que receberam as cartas contam que se sentiram incentivadas a retomar esse tipo de correspondência.

“Essa também é uma mensagem do projeto: que as pessoas possam ver a importância dessas comunicações duráveis e, quem sabe, resgatar esse tipo de conversa.”

Outro retorno que a escritora vem recebendo dos assinantes é de que as cartas têm sido um momento de pausa na rotina.

“Elas falam que é um respiro abrir um envelope, sentar e conferir tudo que está ali dentro; que se sentem aconchegadas”

Apesar de o projeto só ter dois meses, Mariana já faz planos. Quer, ainda este ano, colocar os exemplares das cartas à venda em livrarias de rua e cafés.

Outra intenção é ampliar a ideia do clube de assinatura, levando as cartas de forma gratuita para asilos. Mas, para isso, ela sonha com interessados em ajudar a bancar os custos de produção.

“Gostaria de enviar as cartas para esses idosos, que muitas vezes estão abandonados ali pelas famílias. Isso seria uma maneira de receberem algum tipo de afeto, mas também ajudaria na questão da memória, do resgate pessoal, de mostrar para essas pessoas que não estão paradas no tempo”

O envelope da carta é customizado com carimbos e selo de cera.

A autora também deseja produzir oficinas ou aulas extracurriculares para adolescentes de escolas públicas (e particulares).

“A ideia seria falar sobre a produção desse tipo de comunicação para que absorvam o tempo das coisas. Isso seria muito importante para melhorar a ansiedade, trabalhar a observação e a escrita crítica”, diz. “O objetivo é eles entenderem que esse tempo da escrita e do envio até a chegada e uma possível resposta não é tão ligeiro quanto uma mensagem do WhatsApp.”

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