Como o empreendedorismo científico pode ajudar a transformar pesquisas em produtos viáveis e acessíveis para a população

Ana Calçado - 10 nov 2021
Ana Calçado, diretora-presidente da Wylinka.
Ana Calçado - 10 nov 2021
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O universo do empreendedorismo e da inovação viveu transformações profundas nos últimos dois anos em decorrência da pandemia.

Dada a situação de urgência vivenciada por toda a sociedade, as soluções, os produtos e os serviços que vimos surgir tiveram seu ciclo de desenvolvimento acelerado para dar conta da demanda, especialmente na área da saúde.

Outro fator importante observado foi o protagonismo da ciência nos mais diversos âmbitos, mas em especial o da inovação.

As vacinas foram desenvolvidas em tempo recorde e toda a população pôde compreender um pouco mais sobre quais são as fases de desenvolvimento de soluções baseadas em ciência, os fatores que impactam nos seus resultados e a necessidade do rigor e da regulação para a segurança dos usuários.

É nesse contexto que vemos as Deep Techs – startups baseadas em ciência e “tecnologia profunda” – ganharem cada vez mais espaço no mercado e no mundo da inovação, uma vez que elas podem oferecer ideias e soluções definitivas para o desfecho de grandes desafios como a pandemia ou as mudanças climáticas

Por outro lado, sabemos que o caminho de transformação da ciência em soluções inovadoras – prontas para usar – pode ser longo e cheio de percalços. Se o tempo é escasso, precisamos entender como encurtar essa jornada.

O QUE FALTA PARA AS SOLUÇÕES CRIADAS EM UNIVERSIDADES VIRAREM, DE FATO, PRODUTOS ACESSÍVEIS

Mapeamentos realizados pela Wylinka (organização sem fins lucrativos que busca mobilizar e desenvolver instituições e ecossistemas para a inovação e o empreendedorismo) analisaram mais de 150 tecnologias em parceria com a iniciativa privada.

Esses estudos tiveram o objetivo de identificar que tipo de soluções as universidades estão desenvolvendo para o combate de doenças crônicas junto à base da pirâmide populacional, tecnologias que democratizam o acesso a diagnósticos e as que podem impulsionar a transição para uma economia de baixo carbono. Observamos que:

1) Uma parcela significativa dessas tecnologias estava em estágio inicial de desenvolvimento. Ou seja, há barreiras para que a pesquisa se transforme em soluções escaláveis;

2) Muitas vezes essas soluções não são projetadas pensando na acessibilidade e democratização, o que pode indicar distanciamento de noções de mercado e viabilidade ou desinteresse do público acadêmico na geração de empreendimentos inovadores;

3) Somada a isso, a geração de soluções escaláveis carece de infraestrutura para teste em ambientes reais, o que evidencia, mais uma vez, o distanciamento entre o conhecimento e a aplicação e prejudica diretamente o timing de entrada no mercado.

Buscando entender os pontos acupunturais para desatar esses nós, listamos quatro frentes que, se bem trabalhadas, podem impactar significativamente no desenvolvimento da inovação de base científica no Brasil.

#FRENTE 1: COMO PREVER BARREIRAS E DRIBLAR A BUROCACIA DESDE O INÍCIO DA PESQUISA

Um dos estágios fundamentais na transformação da pesquisa em produtos e serviços é o teste da sua produção em escala e de sua aplicação em ambiente real.

Porém, esse estágio pode encontrar uma diversidade de barreiras de implementação, como custo, legislação e, até mesmo, a falta dela.

Prever os passos de implementação da tecnologia desde o planejamento das primeiras fases de pesquisa é uma das ações que pode ajudar cientistas que querem empreender, transferir tecnologias ou fazer parcerias com outras empresas a direcionar e acelerar seus resultados

Quanto antes são mapeadas as barreiras e envolvidos os stakeholders interessados, melhor.

Na Wylinka, trabalhamos, por exemplo, com uma metodologia chamada Diligência da Inovação, que ajuda pesquisadores e Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs) de universidades a avaliar esse potencial de aplicação das tecnologias e o mapeamento de barreiras, aumentando as chances de sucesso das transferências ou das aplicações.

Essa metodologia já foi testada em mais de 1.000 tecnologias em todo o Brasil, com redes de NIT como a da Fiocruz e a Rede de Núcleos de Inovação Tecnológica do Ceará (RedeNIT CE).

#FRENTE 2: O PESQUISADOR TAMBÉM PRECISA ENTENDER DE GESTÃO

Observamos que o perfil técnico do pesquisador pode ser tornar uma barreira para o desenvolvimento dos seus empreendimentos.

O recurso recebido muitas vezes não é bem aplicado pelo time, prejudicando a geração dos resultados e o desenvolvimento da solução almejada.

O trabalho de gestão de recurso para o desenvolvimento tecnológico presume lidar com muitas incertezas técnicas, de gestão e de mercado.

Em 2015, no programa Bloom Business Technology (BBT), foi possível ajudar mais de 100 empreendedores de base tecnológica incubados em Minas Gerais a mapear os gaps de gestão dos seus negócios e traçar planos de ação para melhorar o seu posicionamento e direcionar suas estratégias de gestão para um cenário mais eficiente de captação e uso de recursos.

#FRENTE 3: INVESTIMENTO É SEMPRE UM PROBLEMA

Analisando as chamadas de projetos da Wylinka e seus parceiros ao longo dos últimos anos, percebemos que quando elas não alcançam o número ou a qualidade desejáveis de inscrição, elas refletem um cenário de poucas empresas de base científica com alto potencial no Brasil. É um campo que ainda tem muito espaço para crescer.

Para isso, é necessário oferecer investimentos nos ciclos iniciais de desenvolvimento de produtos e serviços, auxiliando o cientista empreendedor a vencer o vale da morte da prova de conceito da sua solução

Essa oferta, por sua vez, implica em preparar a iniciativa privada para conversar com esse novo perfil de empreendedor e validar modelos de aporte que diminuam o risco da inovação.

Gráfico do vale da morte da inovação desenvolvido pela Wylinka.

Os investimentos em ciclos iniciais muitas vezes acontecem por meio de programas de aceleração e desenvolvimento, como é o caso do SBQ Acelera, que promoveu o desenvolvimento de dez soluções entre pesquisadores da Sociedade Brasileira de Química em parceria com as empresas Oxiteno e Rhodia Solvay, ou o In.cube, do InovaHC, núcleo de inovação do Hospital das Clínicas.

Em ambos os projetos, os pesquisadores receberam capacitações e acompanhamento semanal de especialistas para criar as soluções e aproveitaram as conexões com o mercado para buscar parcerias de desenvolvimento e implementação.

No caso do SBQ Acelera, as ganhadoras fecharam uma parceria para os testes clínicos do seu produto.

#FRENTE 4: FOCADOS NA TÉCNICA, MAS DISTANTES DA PRÁTICA

Outro desafio observado é o distanciamento entre a realidade da pesquisa e a realidade das pessoas que usarão as soluções criadas pelas startups de base científica.

O foco no rigor metodológico, tão caro ao desenvolvimento da ciência, precisa ser equilibrado com a visão de mercado e a visão do cliente

Para aproximar os pesquisadores da realidade das pessoas para as quais eles sonham em desenvolver produtos e serviços, é essencial a incorporação de processos de design centrados no ser humano e o desenvolvimento das suas habilidades empreendedoras, como a resiliência, capacidade de correr riscos, mobilização de rede e de recursos, entre outras soft skills.

Essa formação comportamental abre novas perspectivas e formas de fazer, que mudam a maneira como os pesquisadores encaram o seu trabalho.

Da mesma forma, esse trabalho de desenvolvimento humano contribui muito para diminuição do risco do investimento, uma vez que as tecnologias são desenvolvidas em cima de ciclos de validação junto com os usuários e outros stakeholders interessados no projeto.

APESAR DAS BARREIRA,ESTAMOS AVANÇANDO NA FORMAÇÃO DE CIENTISTAS EMPREENDEDORES

É possível deduzir, com as análises realizadas, que existem diversos desafios de empreender em ciência no Brasil, tornar as pesquisas produtos viáveis e principalmente escaláveis para um mercado em constante inovação.

Essas dificuldades variam desde o baixo incentivo público e privado para fomentar o desenvolvimento de base científica e tecnológica no ecossistema de tecnologia brasileiro até o próprio comportamento do cientista empreendedor, que ainda precisa de se habituar com o modus operandi do mercado.

Porém, essas barreiras não são impossíveis de serem superadas e, apesar delas, tem sido possível avançar, um degrau de cada vez, sempre buscando capacitar o mercado e os cientistas empreendedores para esse cenário.

 

Ana Calçado é diretora-presidente da Wylinka, responsável por expandir o impacto da missão da organização. Pós-graduada em Gestão de Negócios pela Fundação Dom Cabral (FDC), com estudos de pós-graduação em Inovação pelo MIT, mestre em Ciências de Alimentos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e graduada em Bioquímica pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).

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