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“Acho que eu entendo mais de gente do que de qualquer outra coisa. E entendendo de gente você acaba entendendo de tudo”

Paulo Vieira - 27 fev 2020
Edison Tamascia, fundador da Febrafar e da Farmarcas (foto: Alexandre Nascimento)
Paulo Vieira - 27 fev 2020
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Na história do capitalismo brasileiro, o associativismo e o cooperativismo ocupam lugar privilegiado, mas num passado remoto. Com raras exceções em segmentos como o do crédito e o do vinho, a junção de pequenos empresários não tem sido capaz de torná-los protagonistas em seus setores.

Mas a Lusitana roda e o cooperativismo, veja só, tornou-se um modelo disruptivo em ao menos um setor da economia: o varejo farmacêutico. É o que mostra a Febrafar — Federação Brasileira das Redes Associativistas e Independentes de Farmácias. Criada há 20 anos, a entidade teve performance notável em 2019: crescimento de 14,89%, praticamente o dobro da taxa de todo o mercado, que engloba grandes players como Raia-Drogasil (RD), Pacheco-São Paulo e Pague Menos.

Fundador e presidente da Febrafar, Edison Tamascia, 58, é uma daquelas pessoas que não tiveram tempo para planejar uma carreira. Paulista de Paranapuã, ele “já ia para a roça” aos 7 anos, como diz. Abandonou os estudos ainda no ciclo primário (hoje, “fundamental 1”) para ajudar os pais na lavoura de subsistência — e precisou aproveitar cada instante de sua vida profissional para ampliar seu saber.

Nos anos 1970, depois que seus pais deixaram a lida, Edison empregou-se numa vaga regra 3 da única farmácia da cidade. Mais tarde, vivendo na vizinha (e maior) São José do Rio Preto, galgou posições na Drogasil, passando por todos os setores.

A Febrafar congrega 57 redes de farmácias de tamanhos variados — a menor, a Farma 100, com 15 lojas; a maior, a Augefarma, com 1 173. Elas têm presença importante em cidades pequenas, médias e também nas periferias das capitais.

A lógica do associativismo que as move é muito parecida com aquilo que mais tarde seria conhecido empresarialmente por “sinergia”. Sistematização de procedimentos, controle de duplicidades e desperdícios, redução dos custos fixos… Além disso, a junção dos pequenos permite negociações muito mais vantajosas com os fornecedores.

Edison ainda preside uma segunda associação de farmácias, a Farmarcas. Surgida em 2012, ela é uma Febrafar com sistemas de gestão mais exigentes, marketing centralizado e política ainda mais agressiva de preços para o consumidor.

Hoje, a Farmarcas tem sob sua administração 11 redes com 1 100 lojas em 24 estados. O faturamento de 2,93 bilhões de reais de 2019 significou um crescimento de 44,8% em relação a 2018, colocando o conjunto de redes da Farmarcas no quarto lugar do ranking geral do setor no Brasil, segundo dados próprios.

O empreendedor viaja o país inteiro para ver e opinar sobre as farmácias dos associados que vão ingressando no sistema. Para esta entrevista, porém, ele recebeu o Draft em seu escritório da Avenida Paulista — de onde, segundo ele, “não é possível entender o Brasil”.

 

A Farmarcas cresceu 44% ano passado, e as associadas da Febrafar tiveram um desempenho muito superior às grandes redes em 2019. Qual é a mágica?
Não tem mágica. O mercado passa por um processo de profissionalização, e a disponibilidade da melhor oferta passou a ser um fator muito importante. Quem nos financia é o consumidor. A partir de parcerias com a indústria, ajudamos as farmácias a comprar melhor. Além disso, focamos em como o empresário deve olhar o custo de forma efetiva, olhar o dia a dia, melhorar a experiência do cliente e até fazê-lo entender que a própria remuneração tem de ter limites. Mas o foco no preço do consumidor fez a diferença.

As redes da Febrafar e da Farmarcas têm presença forte no interior, mais do que nas grandes capitais. Por quê?
Os grandes centros já estão consolidados. Capitais como São Paulo têm forte presença das grandes redes, é onde acontece a consolidação dos grandes players. É no interior que a gente vê possibilidades de crescimento, é lá que as grandes redes têm mais dificuldades para estar — seja porque o volume de vendas é menor, seja porque elas enfrentam um alto nível de competitividade.

Mas é bom dizer que as [nossas] farmácias que estão no interior não são pequenas, elas têm bom nível de serviço, são estruturadas, mas têm uma expectativa de venda adequada às localidades onde estão.

É quase uma platitude defender a educação, mas o seu exemplo mostra que para empreender, e mais ainda, ser bem sucedido, não é preciso estudar. Estou certo?
Não. Acho que sou uma exceção, e mais exceção ainda quando você olha o ambiente em que eu fui criado.

A educação é necessária, muito necessária. Esse caminho que fiz não vai acontecer para qualquer pessoa… Talvez eu tenha tido algumas experiências diferentes, estado no lugar certo na hora certa

Eu acho que a gente não deve pegar a exceção e transformar em regra, dizer que dá pra viver sem educação. Educação é extremamente importante.

O que foi capital no sucesso de sua carreira? A partir dela, muito resumidamente, o que diria ser necessário para empreender?
Minha questão no empreendedorismo passa pelo fato de eu querer desenvolver algo que contemple muito mais gente da sociedade do que propriamente o meu enriquecimento pessoal. Estar no associativismo foi o que me permitiu criar um modelo de negócio.

Se fosse para empreender sozinho, acho que haveria muito mais gente melhor. A característica da Febrafar é o empreendedorismo social, que permite que mais gente venha junto. Isso me atrai muito, me deixa muito feliz

Também acho que cada um tem suas características inatas, como as minhas, de liderança. O fato de ter sido gerente da Drogasil muito jovem e ter tido uma experiência de gestão diferenciada também foi muito importante para o que eu faço hoje.

Que conhecimentos obtidos ao longo da carreira lhe permitiram chegar aonde chegou?
Na farmácia eu passei por todas as etapas, comecei lavando seringas, que eram de vidro, uma atividade que não existe mais hoje; depois fui balconista, comprador – na época chamavam de estoquista –, subgerente, gerente, passei pela distribuição.

Acho que aproveitei muito bem todas as etapas, foram aprendizados diferentes. Creio que gostar de aprender, gostar de aprender sempre, seja um fator do sucesso. Eu não fiz cursos, sou autodidata.

E por estar onde estou eu tenho de entender de vários assuntos — tributação, por exemplo. Eu já era presidente da Febrafar quando, em 2002, houve mudanças importantes na tributação dos medicamentos no Brasil. Como entidade, eu participava das discussões, e não daria para ir para Brasília discutir esse tema sem entendê-lo.

Quanto a entender de tecnologia, ela vai sendo inserida dentro do dia a dia, e a gente acaba aprendendo. Mas eu acho que eu entendo mais de gente do que de qualquer outra coisa. E entendendo de gente você acaba entendendo de tudo.

E qual seu estilo de liderança? Você centraliza muito, ou dá mais liberdade…?
Rapaz, a gestão sobretudo da Farmarcas é centralizada, porque se você deixar a coisa solta num conjunto de mais de 1 000 farmácias, cada uma faz de um jeito diferente.

Obviamente a gente tem um modelo que passa por uma diretoria com executivos vindos do mercado, que têm competência e toda a liberdade para implementar os processos. Temos um plano estratégico muito bem alinhado e definido — e para implementá-lo, cada diretor atua sem minha interferência.

Mas minha liderança não é só com meus diretores. De modo geral, a indústria me aciona muito porque eu sou um estudioso do varejo, tenho bastante assertividade no que falo

Nesta semana [a entrevista foi concedida no fim de janeiro], por exemplo, faço palestras em convenções de quatro indústrias farmacêuticas. Ali você tem todo o staff da indústria, seus representantes. Nesses eventos eu coloco minha opinião sobre o que está acontecendo, o que deve acontecer, e ela acaba se disseminando de alguma forma.

Isso me dá relevância, e a partir do momento em que se adquire essa relevância, tudo o que acontece vai sendo passado para você, a informação começa a chegar de muitas fontes.

Sua intuição nunca falhou? Você nunca cometeu erros?
Obviamente algum erro a gente comete, mas acho que não há um grande erro que marca minha carreira. Talvez algumas estratégias de marketing na Farmavip [rede de farmácias de Piracicaba da qual Edison é sócio] que acabaram não dando certo, mas que serviram de aprendizado…

Desde que comecei, minha assertividade é muito grande. A Farmarcas é um modelo único, não só no nosso, como em qualquer segmento. E que do zero se tornou a quarta maior empresa do seu setor num período tão curto.

No Brasil há muitos segmentos que ainda são pouco concentrados, especialmente no interior, onde vocês atuam. Não há outros setores em que o modelo associativista poderia ter sucesso?
Somos muito procurados por quem de alguma forma tenta criar o mesmo modelo, ajudei inclusive na fundação da Febramat, rede associativista das lojas de material de construção. Porém sempre se esbarra na mesma coisa, a gente não vê uma liderança ali como a da Febrafar. Existe esse desejo de outros segmentos de levar o modelo, mas na hora da implementação volta o paternalismo, cada um quer dar seu palpite.

A tomada de decisão coletiva é difícil em todo agrupamento, do condomínio ao clube de lazer. Na Farmarcas o processo é inverso. Ainda que seja uma associação, a decisão é centralizada e profissionalizada. Isso é o que fez a gente chegar aonde chegou

Como a Febrafar e a Farmarcas são vistas pelos players do mercado farmacêutico, como a líder Raia-Drogasil?
A RD [empresa resultante da fusão da Drogasil e Droga Raia] é um sucesso, a Drogasil foi para a bolsa ainda nos anos 1970, mas acho que ela transita num ambiente em que as grandes redes concorrentes atuam com um nível de competência menor.

Somos concorrentes, é natural, a gente convive, mas não existe interação, até porque cada empresa tem seu formato. Grandes redes como a RD são representadas pela Abrafarma, e nos assuntos governamentais às vezes temos posições semelhantes, às vezes não.

Uma bandeira deles, por exemplo, é a atenção farmacêutica, em que o atendente da farmácia vira agente de saúde. A Abrafarma quer que ele possa fazer determinados processos que hoje a legislação não permite. É uma defesa que acho legítima, mas que para a gente não faz diferença. Em grande parte de nossa rede, os empresários já são farmacêuticos. A farmácia de bairro e do interior de alguma forma já é mais assistencialista.

As grandes têm outras questões, elas têm centro de distribuição, e mesmo ali há desejos diferentes. Talvez o desejo da RD não seja o mesmo da Farmaponte.

Qual a importância do e-commerce para vocês? E, ainda falando do mundo virtual, como lidam com as redes sociais de seus associados?
No nosso segmento, a importância do comércio eletrônico é próxima de zero, se não for zero.

A venda online não se aplica para medicamentos. Primeiro pela urgência: o comércio eletrônico, tirando o de comida, que é um modelo com frete muito caro, não é para a venda de urgência. E há também aqueles remédios que exigem receita, e como não existe aqui prescrição eletrônica, [a compra] tem de ser presencial. Sobra pouco para o online

Além disso, a farmácia está sempre a no máximo 200 metros do consumidor. Outro dia fui comprar pela internet capinha de celular, tinha de esperar 40 dias, mas para mim isso não era problema, eu podia esperar. Isso vale para roupa de mergulho, vinho…

Falam muito do sucesso [do e-commerce] da Magalu, mas as lojas deles antes não eram pontos de venda física, eram showrooms, você não entrava lá e saía com uma geladeira, com uma TV nas costas.

Quanto às redes sociais, a gente tem de monitorar para evitar algum desastre. As pessoas confundem muito vida pessoal e negócio. O sujeito pode publicar uma foto bebendo com os amigos na festa do Peão de Barretos na rede social da farmácia. Por isso a gente proíbe o uso e controla o movimento daqui [do escritório de São Paulo].

É sabido que a indústria farmacêutica usa incentivos para que os médicos receitem este ou aquele medicamento, o que nem sempre pode ser bom para o paciente. Como presidente de uma grande rede de farmácias, como vê essa questão?Algumas coisas em relação à saúde passam pela educação, acho que o médico não receita muito, o que tem é muita automedicação. Se você olhar estrutura de saúde do Brasil, ver como ela foi desenhada, vê que a universalidade [atendimento gratuito para todos] que está na Constituição não se sustenta.

Em São Paulo, no Corujão [programa de consultas noturnas implementado pela prefeitura em 2017, na gestão de João Doria], mais de 30% dos pacientes não voltavam para retirar seus exames. Se eu for a um médico no Brasil, e ele não me pedir exame, passo a não acreditar no médico. Já começa aí o erro.

Algo que acho primordial e que resolveria 90% dos problemas da saúde do Brasil — e não está tão distante — é a integração do prontuário médico. Se houvesse a possibilidade de o médico consultar os exames já feitos, os medicamentos tomados, diminuiria em 50% a necessidade de novos exames

Pode parecer que eu estou falando besteira, mas no Brasil é muito fácil conseguir uma consulta médica com um especialista. No Canadá, um dos países mais desenvolvidos do mundo, você só consegue ver um especialista seis meses depois.

A gente vive um momento em que o discurso anticientífico está em alta, e no Brasil há ainda severas restrições orçamentárias para o desenvolvimento da ciência. Isso preocupa o seu setor?
Não preocupa porque o nosso desenvolvimento de fármacos já é muito baixo. É preciso muita estrutura de capital, por isso os grandes investidores em pesquisa de saúde são empresas mundiais. E elas, via de regra, desenvolvem produtos para doenças de alto custo, não para doenças tropicais, que são as do terceiro mundo.

Não tem nada de inovador há anos para a malária, por exemplo. Não é prioridade. Mas para diabetes tem inovação, você vê que surge uma insulina de nível mais elevado, uma outra forma de aplicação… É nisso que a indústria mundial investe.

Não é frustrante constatar que somos donos de um rico manancial de princípios ativos que não vai chegar ao mercado?Mas aí passa por outro problema.

A Anvisa tem um processo muito lento de liberação de novos fármacos. Nem os que são vendidos no mundo inteiro, como a melatonina [hormônio natural que ajuda na indução do sono], você consegue registrar no Brasil

Talvez o suplemento de melatonina diminuísse enormemente o número de pessoas que precisam pegar uma receita com o médico. Aprovar um fármaco no Brasil é muito mais difícil do que nos Estados Unidos.

 

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