Quando se pensa nas organizações sociais presentes nas favelas e comunidades do Brasil, é praticamente incontornável mencionar a Central Única das Favelas (Cufa), a Gerando Falcões e o G10 Favelas. E, por tabela, seus líderes, “dealmakers” e eventuais fundadores, Preto Zezé, Edu Lyra e Gilson Rodrigues, respectivamente.
Com muito espaço na mídia e trânsito entre financiadores, essas lideranças se tornaram ubíquas nos últimos anos, captando recursos, participando de eventos governamentais e, talvez mais importante, tornando-se os grandes porta-vozes brasileiros do tema favela. Desde 2023, contudo, uma outra organização se alevantou.
É a Confluência das Favelas, projeto de um carioca do Jacaré, Thiago Nascimento, e de um paulistano do Grajaú, Jairo Malta, este também fundador da Corre, consultoria de captação de recursos e de letramento para essa finalidade, voltada especificamente para organizações sociais periféricas.
A CONFLUÊNCIA TRABALHA EM REDE COM 35 ORGANIZAÇÕES PERIFÉRICAS
Jairo diz que, à diferença das três grandes entidades citadas, a Confluência opera de maneira horizontal, sem “fincar bandeiras”, capacitando lideranças e criando comitês de governança dentro das organizações por ela apoiadas.
A Confluência surgiu no Rio, seus líderes são do Sudeste, mas a entidade tem atuação em todo o Brasil, em particular nas regiões mais economicamente desfavorecidas, o Norte e Nordeste.
“Nossa premissa é fomentar quem está lá [nas comunidades], e não ir ao lugar em que as pessoas moram há ‘mil anos’ e indicar o que fazer. Não é nosso lance chegar e dizer: ‘Essa casa agora é da Confluência’. A gente não é colonizador. Criamos uma rede e por meio dela fazemos chegar aos territórios insumos financeiros e educacionais”
A Confluência trabalha em rede com 35 organizações periféricas, mas tem mapeadas alguns milhares delas em todo o Brasil.
Como a Visão Coop, da Baixada Fluminense, que atua para mitigar os impactos das mudanças climáticas em Queimados, na região metropolitana do Rio. A partir de dados abertos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a Visão Coop foi capaz de prever inundações e, segundo Jairo, mobilizar planos de contingência junto ao governo fluminense para evacuação da população de áreas de Queimados antes que o pior acontecesse.
Outra instituição abrigada no hub da Confluência é a Decodifica, de geração e consolidação de dados. Como a Decodifica mesmo explica em suas redes sociais, seu trabalho visa “preencher a lacuna de dados que moldam políticas públicas, muitas vezes distantes da realidade das periferias (…) Essa desconexão leva a decisões ineficazes e oportunidades perdidas para melhorar a vida nessas comunidades”.
Foi com a informação sistematizada pela Decodifica que a Confluência montou um documento que, segundo Jairo, impressionou a cúpula da Secretaria Nacional de Periferias do ministério das Cidades nas reuniões preparatórias para o G20 Social, a contraparte “periférica” do encontro dos líderes mundiais que aconteceu no Rio, no final do ano passado.
Soluções pensadas em comunidades de um determinado estado e mapeadas pelo Decodifica mostraram-se perfeitamente replicáveis em outras quebradas. As mazelas históricas, afinal, são comuns; os diagnósticos, muito semelhantes.
“A grana com que trabalhamos não é esmola, ela é trocada por muita informação, estrutura, uma grande base de conhecimento dos problemas das periferias”
As reuniões para o G20 renderam e, por fim, durante o encontro formal dos líderes, no Rio, a delegação da África do Sul, país que agora ocupa a liderança rotativa do conjunto de nações, esteve no encontro da Confluência, um churrasco ao largo da programação oficial. Também ali compareceram executivos do BNDES e de companhias como a Vale. A Cufa também se mobilizou, fazendo summits internacionais preparatórios, três deles em países africanos.
Nos dois últimos anos, a Confluência se voltou exclusivamente para a mobilização periférica por justiça climática, problemática que agora serve de filtro para a seleção das entidades a ser acolhidas.
A ideia é estabelecer um “foro permanente” de discussão em sustentabilidade para “incidir sobre políticas públicas”. Trata-se ainda de capacitar as organizações para receber os recursos que irrigam projetos dessa temática e que vêm chegando ao Brasil com certa força por conta da liderança do país e da organização da COP30, a Conferência das Partes, em Belém, em novembro.
Jairo vem falando bastante do “Pequeno Manual de Justiça Climática”, projeto apoiado pelo Consulado Geral dos Estados Unidos em São Paulo que objetiva criar material didático e promover curso básico sobre o tema para que os “primeiros a ser afetados” – os habitantes das periferias – e suas lideranças “compreendam, participem e busquem fomento” para seus projetos.
Ele costuma dizer que a temperatura média em Paraisópolis, a grande comunidade da região do Morumbi, em São Paulo, chega a ser até nove graus maior do que a temperatura do entorno, uma das áreas mais densamente arborizadas da capital paulista.
“Nos últimos anos a Conferência captou 500 mil dólares junto à Open Society [fundação do investidor e benemérito George Soros] e 400 mil reais com o Instituto Itausa. Este ano vai ser maluquice. Clima nem é uma pauta que me agrade, não sou ativista climático, mas eu tenho a mesma pele das pessoas que têm suas casas afundando na lama, que morrem com calor ou com as águas das enchentes”
Mesmo graduando-se nos protocolos e na etiqueta das solenidades e cerimônias internacionais de doação de recursos, Jairo não consegue deglutir muito bem alguns desses eventos, notadamente aqueles em que sua presença parece ajudar o anfitrião a pagar de amigo da diversidade.
Recentemente, um encontro em Nova York levou-o, ato contínuo, ao LinkedIn: “Esses jantares finos em São Paulo, Nova York ou Dubai, em que 99% dos convidados são brancos, ricos e bem alinhados, captam dólares para pagar cozinheiras igualmente brancas e ricas. É dinheiro girando para o mesmo lugar, com a mesma gente. Enquanto isso, Paraisópolis, Baixada Fluminense, qualquer favela que você pensar, está desmoronando. (…) Vendem a ideia de sustentabilidade em discursos e selfies, mas, na prática, o dinheiro continua indo pro mesmo lugar — pro ralo de ouro de algum hotel cinco estrelas.”
A ligação de Jairo, ex-designer do portal Glamurama e da revista Poder e ex-repórter do caderno Ilustrada, da Folha de S.Paulo – ele ainda mantém uma coluna no diário, a “Sons da Perifa” –, com as quebradas do Brasil se deu de maneira um tanto casual, depois que ele visitou Belém e o festival de música Psica. Em 2025 o evento vai para seu 13ª ano.
Seduzido pela grandiosidade e variedade do que viu e ouviu, e talvez ainda mais pela história dos irmãos fundadores do Psica, Jeft e Gerson Dias, moradores de uma comunidade de Ananindeua, cidade-dormitório de Belém, ele se apresentou ao duo para dizer que tinha vontade de trabalhar com eles. Não sabia o que propor, mas confiava na sua capacidade de relacionamento e acabou por conseguir mandato para captar recursos para o evento, não obstante jamais ter feito isso na vida.
Para encurtar a história: Jairão conseguiu fazer de Ambev, Nubank e Petrobras patrocinadores-masters do Psica, levantou cerca de 10 milhões de reais e ajudou o festival a se expandir. O evento, que acontece no Mangueirão, principal estádio de futebol de Belém, distribui-se agora por 16 palcos simultâneos.
Nos corres que se seguiram a essas primeiras conversas no Pará, ele se surpreendeu com a dificuldade, quando não a total ignorância, de atores importantes do ecossistema, perfeitamente elegíveis a recursos de patrocínio e renúncia fiscal, de acessarem o cascalho.
“Eu estava numa mesa com o KondZilla e eu perguntei por que ele não colocava os artistas dele em editais. E o Kond me perguntou: ‘Edital é esse negócio de concurso público?’ Bicho, se nem o Kondzilla sabe como isso funciona, imagina por aí”
Mais do que nunca, ele viu que era importante fazer o letramento nas quebradas, para que os recursos pudessem chegar lá, e não, como gosta de dizer Jairo, “para levar outro show do Caetano Veloso para gente branca.”
Em 2025 Jairo ainda toca dois projetos de peso com a Ambev, ambos de inclusão produtiva, abrigados dentro do hub que a transacional brasileira chama de Bora. Os projetos preveem capacitação em empreendedorismo para 6 mil pessoas no Ceará e o triplo disso no Paraná.
A Corre ficou responsável por mapear as comunidades, implementar as ações, fazer o trânsito burocrático e ainda coordenar os comitês gestores nos dois estados. No Ceará, com trabalhadores ligados à produção de fécula de mandioca; no Paraná, com costureiras em atividades ligadas à economia circular.
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