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Há luz no fim do túnel para o Centro de São Paulo? Com retrofit de prédios antigos, ele quer atrair novos moradores à região

Maisa Infante - 17 jul 2024
Marcelo Falcão, fundador da Somauma.
Maisa Infante - 17 jul 2024
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Fascínio e espanto se misturam numa visita ao Centro de São Paulo. O fascínio vem dos prédios históricos e lugares icônicos como o Theatro Municipal e o Pateo do Collegio. O espanto decorre da degradação que há décadas marca a região, repleta de moradores de rua, usuários de drogas e prédios desocupados. 

É tentador olhar para a região, servida por diversas estações de metrô, e imaginar como seria se mais pessoas morassem no Centro, se houvesse uma requalificação do espaço.

Para Marcelo Falcão, 38, fundador da Somauma, incorporadora que faz retrofit em prédios antigos no Centro, mais moradores é a solução para que a região volte a ser pulsante. 

“Partimos do princípio de que a partir de uma intervenção em um edifício vamos ajudar a requalificar e revitalizar o entorno. Gente na rua é cenário de segurança. Esse é o nosso grande objetivo”

Criado entre a Barra Funda e a Santa Cecília, bairros da região central, Marcelo sempre circulou pelo Centro e acompanhou de perto o processo de degradação que começou ainda nos anos 1970. 

“Na minha infância já havia muitos lugares em que não podíamos ir porque era perigoso. O Minhocão era um deles. Aos poucos as pessoas foram se mudando do Centro. Meus pais eram funcionários públicos e chegaram a trabalhar no Wilton Paes de Almeida [edifício que pegou fogo e desabou em 2018], mas a administração saiu do Centro eles foram para a Lapa. Então, tudo mudou”. 

Agora, ao lado dos sócios Pedro Ichimura, Nilton Vargas e Vitor Penha, Marcelo quer ser parte da solução. Desde 2019, a Somaúma já entregou dois prédios que passaram pelo retrofit — RBS 700 e GAL 703 — comprados e administrados por um fundo de investimentos. Agora, está executando a obra do primeiro edifício como incorporadora, o Virginia, localizado na Rua Martins Fontes. 

O Edifício Virgínia, pré-retrofit.

Obra dos anos 1950, o prédio era parte do espólio da família Matarazzo e levou dois anos para ser comprado. Os 47 apartamentos de 161 a 182 metros quadrados estão sendo transformados em 121 unidades de 26 a 182 m². A obra deve ser entregue em 2025 e 80% das unidades já foram vendidas pela Refúgios Urbanos. O custo ficará em torno de 60 milhões de reais e o VGV é de 110 milhões de reais. 

O próximo lançamento será o edifício Misericórdia, no largo de mesmo nome (próximo à Casa de Francisca), que deve ter apartamentos enquadrados no projeto Minha Casa, Minha Vida. E a Somauma já está negociando mais dois edifícios.

Na entrevista a seguir, Marcelo fala sobre os desafios do retrofit, gentrificação, Cracolândia e sustentabilidade:

 

Como surgiu a ideia de trabalhar com retrofit no Centro de São Paulo?
Eu já trabalhava como corretor de imóveis quando fui morar em Boston, nos Estados Unidos, por influência da minha esposa, que na época era namorada. Ficamos em um edifício “retrofitado” e foi aí que me deu o clique. 

Quando voltei, fui estudar arquitetura. Depois, fiquei dois anos em Vancouver, no Canadá, e, na volta, abri uma imobiliária para trabalhar com imóveis históricos

Comecei a mapear o Centro e falar com todos os proprietários desses prédios vazios. A partir disso nasceu a Open 11, com o objetivo de ativar espaços desses imóveis subutilizados para mostrar a região para as pessoas. 

Nessa época, mandei uma mensagem para o Pedro [Ichimura], que foi meu colega de escola, pedindo uma indicação de arquiteto para entrar comigo no risco de fazer um projeto. E ele quis entrar. 

Naquele momento, a dificuldade era que o incorporador não queria mexer no patrimônio construído. 

A primeira desculpa era que não tinha vaga de garagem; isso começa a mudar com a chegada dos aplicativos e a tendência dos jovens de não querer mais ter carro. A outra desculpa era o custo

Por amigos em comum, eu e Pedro encontramos os nossos sócios de hoje, que tinham experiência com o patrimônio construído, prestação de serviços, recuperação de grandes estruturas, restauro de patrimônio. Então, foi complementar. A partir daí, começa a nascer a Somauma.

Como foi colocar de pé esse primeiro empreendimento, o RBS 700?
A gente nasce com esse primeiro projeto nos Campos Elíseos. Alocamos lá os recursos que nós tínhamos [700 mil reais] e veio a pandemia. 

Eu e o Pedro achamos que iríamos quebrar. Já tínhamos dado o sinal para os vendedores e contratado os projetistas. Mas os investidores saíram do negócio e foi aquela pressão. 

Eu ainda estava com a minha esposa grávida, foi uma loucura… Mas a gente conseguiu aditar o contrato, ganhar uns meses e, no final, vendemos o prédio para um fundo de investimento

O empreendimento foi concebido para fazermos um lançamento e vender os apartamentos, mas o fundo quis comprar e fazer um empreendimento para renda. Vendemos, fizemos a obra e entregamos o prédio pronto para operação. 

Depois disso, esse mesmo fundo comprou um prédio na Rua General Jardim e nos procurou para fazer o desenvolvimento. Então, entramos como um developer fazendo todo o processo do GAL 703.

Com o Virginia vocês recuperaram o modelo pensado lá no início, de comprar o prédio, fazer o retrofit e colocar os apartamentos para venda?
A gente compra o prédio e depois traz o investidor para entrar com equity, porque quando falamos em real estate sempre tem um uma exposição de caixa mais alta.

Quem são os investidores e o que os leva a investir esse capital de risco no retrofit?
Normalmente são fundos ou investidores que já são do mercado imobiliário. No Virginia, por exemplo, temos como sócio um family office que constroi e faz retrofit em prédios próprios, majoritariamente comerciais, para locação. Mas  eles gostaram dos números e do projeto e resolveram entrar conosco aportando capital.

A Somaúma atua no Centro de São Paulo, região que tem um sério problema chamado Cracolândia. Qual o impacto disso no seu negócio?
Acho que São Paulo tem vários centros. Tem um que sai no jornal, esse chamado de Cracolândia, que é um problema de saúde pública e social, e tem o Centro real, gigante, que muda a cada quarteirão. 

No Virginia, o valor médio de venda do metro quadrado é 12.200 reais, mas se você for duas quadras para dentro muda o comportamento de ponto, muda o público, muda o perfil. 

Já vendemos aproximadamente 80% em quatro meses. Quando a gente falava disso com o investidor para captar dinheiro nos chamavam de malucos, diziam que não iríamos conseguir de jeito nenhum, justamente por causa dessa imagem da Cracolândia

E, no fundo, estamos completamente distantes da Cracolândia. Mas o Centro é o lugar da cidade onde tem mais gente circulando, é o lugar que tem mais assistência social. Portanto, temos mais pessoas em situação de vulnerabilidade. Então, é preciso entender bem qual é o produto imobiliário que você vai desenhar para cada quadra. 

Acho que a grande dificuldade dos gestores de fundo é entender o Centro de São Paulo. Porque a Cracolândia é um recorte pequeno. E à medida que você vai trazendo mais pessoas para morar aqui, vai trazendo mais segurança.

Vocês levaram dois anos para concluir a compra do Virginia por causa dos problemas de inventário, impostos etc. Imagino que no Centro existam muitos prédios com problemas como este. Isso acaba trazendo alguma vantagem para quem quer comprar, como preços mais atrativos?
O Centro está na mão de poucas famílias, normalmente em terceira e quarta geração. São pessoas que falam que o Centro vai valer muito e querem resolver a vida num negócio só. 

Lá atrás, quando comecei a mapear, o proprietário pedia 10 mil reais no metro, algo que não fazia sentido. Para eles entenderem, fazemos uma conta de trás para frente com custo de reforma, projeto e remuneração dos investidores. O metro vai valer 10 mil reais depois que estiver pronto, não agora. 

Hoje, vejo que muita coisa mudou. Os proprietários estão mais confiantes, tem mais empresas fazendo retrofit, tem bastante vontade política, independente de partido

Então, os proprietários estão começando a olhar como se olha para um terreno em uma zona de eixo, por exemplo. Já estão mais dispostos a falar em permuta, o que antes era impossível. Ainda tem um spread grande entre a realidade de mercado versus a expectativa, mas melhorou.

A Somauma paga no máximo 2 mil reais pelo metro quadrado e o preço de venda do Virginia, por exemplo, é de 12 mil reais o m². Você acha que isso estimula a gentrificação? Existe a intenção de trabalhar também com preços mais populares?
A gente acredita que o Centro não tem que ser só Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação de Mercado Popular (HMP). Tem que ter uso misto em tudo e queremos produzir tanto para as classes mais altas quanto para as classes mais baixas. 

Então, temos desenhado coisas para HIS e HMP, mas esse tipo de habitação não tem margem se não for subsidiada pelo governo. Quando você vê habitação de interesse social saindo em larga escala é programa do governo federal, principalmente. 

O incorporador grande não quer olhar o Centro porque não tem a escala que ele precisa. Por outro lado, o incorporador pequeno tem mais dificuldade de acessar crédito e negociar com o proprietário. Ou seja: quem tem crédito não quer fazer e quem quer fazer não tem crédito

Hoje, o m² para se produzir habitação no Centro custa cerca de 7 mil reais. Então, um apartamento de 30 metros vai custar 210 mil reais, o que não é tão acessível. Tem que ser entre 150 mil e 180 mil reais. 

Mas como se produz isso sem subsídio? Talvez a melhor maneira seja pegar os prédios públicos, transformar em habitação, o governo ceder esses imóveis e você entrar só com o custo de produção. É um assunto muito mais complexo. 

Projeto para o terraço do Edifício Virginia.

Além disso, a legislação e o direcionamento para crédito foram pensados para a incorporação tradicional. Então, quando a gente vai falar com a Caixa para produzir HIS, HMP e Retrofit não tem nada desenhado. 

No Misericordia, tentamos aprovar como empreendimento de Habitação no Mercado Popular, mas não conseguimos porque a legislação prevê que é preciso ter um mínimo de área de lazer para se enquadrar no HMP. E não consigo fazer isso num prédio que já existe. 

No fundo, é um trabalho de construção de políticas públicas e de crédito, além da intenção.

A Somauma está enquadrada no Requalifica Centro? Como esse programa ajuda vocês?
O Requalifica tem alguns incentivos, dentre eles a isenção de ITBI na aquisição do imóvel, a remissão da dívida do IPTU, mais a isenção durante o período de obras e depois da entrega. 

Os moradores também se beneficiam disso durante três anos, e depois ele entra num progressivo. Então, o proprietário só vai começar a pagar o IPTU integral a partir do 9º ano. Tem uma redução da líquida de ISS de 5% para 2%. 

Além disso tem a subvenção, que é um empréstimo da prefeitura a fundo perdido para ajudar nas obras. Essa subvenção tem suas complexidades porque, no fundo, eles trabalham com um custo-obra mais baixo

O Virgínia foi um dos eleitos a receber a subvenção e o nosso custo-obra hoje é de aproximadamente 40 milhões de reais. 

Pela subvenção fazendo esse mesmo cálculo de tudo que a gente está colocando na obra pela NBR (normas técnicas da ABNT) dá 27 milhões de reais. 

Fomos classificados para receber 10% desse custo-obra, ou seja, 2,7 milhões de reais, aproximadamente. Na prática, isso é 6% do custo-obra de verdade.

Um dos chamarizes do retrofit é a sustentabilidade. Onde esse conceito entra no negócio de vocês?
O retrofit, por si só, é a coisa mais sustentável que a gente faz, pensando em toda a infra da cidade, em trazer mais pessoas para morar no Centro, evitar o deslocamento e a emissão de CO2. O prédio mais verde que existe é aquele que já existe, né? 

E aí trazemos outras coisas. Temos uma área de P&D muito forte, que busca esses novos materiais. 

Nas nossas obras, substituímos os produtos que fazem mal aos trabalhadores, são alérgicos ou altamente inflamáveis. Um desses é a lã de garrafa pet, que substitui a lã de rocha, altamente nociva ao meio ambiente e aos trabalhadores 

Além disso, a indústria está olhando pra gente como uma empresa de impacto. Então, estamos conseguindo negociar bem os preços para entregar produtos melhores com preços de entrada ou muito próximos aos produtos de entrada. 

Desde as questões de biofilia, de colocar mais vegetação, e, portanto, ter que fazer um pouco mais de reforço em algum lugar, a substituir a lã de rocha pela lã de garrafa pet, a produzir o granilite e ladrilho hidráulico com resíduos da própria obra, tudo isso tem um impacto menor que 2% no custo-obra.

Você mora no Centro?
Agora não. Mas é temporário. Quando me casei fui morar na [rua] Major Quedinho, bem perto do Estadão, o bar famoso pelo lanche de pernil. 

Saí por uma questão de logística. Minha esposa foi trabalhar no Morumbi e a gente precisava achar o meio do caminho entre a escola das crianças e o trabalho dos dois.

O nome Somauma tem relação com a árvore sumaúma?
A gente queria algo que remetesse à natureza e ao reencontro da natureza com a cidade. Então, fomos buscar essa referência – e a sumaúma, que é uma das árvores mais importantes da região amazônica, tem uma simbologia muito forte. 

As raízes dela são profundas, robustas e atingem até 300 metros de distância; no fundo, ela distribui água para o entorno. Partimos do princípio de que com uma intervenção em um edifício, a gente também ajuda a requalificar e revitalizar o entorno 

E o “soma” vem da soma das expertises por um propósito comum.

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