O mercado editorial brasileiro vive uma contradição. Os eventos literários são sucesso de público, vide a Bienal do Livro (no Rio e em São Paulo), a Feira do Livro (na capital paulista) e, claro, a Festa Literária Internacional de Paraty – a 23ª edição da Flip começa hoje, dia 30/7. Por outro lado, a pesquisa Retratos da Leitura revela um recuo desolador do número de leitores no país.
Há 34 anos à frente da Agência Riff, referência em agenciamento literário no Brasil, Lucia Riff, 70, representa quase 180 escritores: desde gente que já faz parte do cânone nacional, como Erico Verissimo, Ariano Suassuna e Lygia Fagundes Telles, até autores contemporâneos badalados, incluindo Carla Madeira, Sueli Carneiro, Stênio Gardel e Socorro Acioli.
Lucia entrou nesse universo meio por acaso. Recém-formada em Psicologia e com um filho pequeno, conseguiu na década de 1980 um emprego com a célebre agente literária espanhola Carmen Balcells (1930-2015):
“Fiquei bem fascinada, não só com o ângulo do agente, mas com a coisa de lidar com o autor, propostas de contrato e negociação com o pessoal de fora também”
Depois de passar por editoras como Nova Fronteira e José Olympio, Lucia foi convidada por Carmen para fundar uma agência, a BMSR. Em 2004, com a saída da sócia, ela passou a tocar sozinha o negócio, que virou a Agência Riff.
Hoje, a equipe tem 14 pessoas, incluindo Laura e João Paulo, filhos de Lucia, que representam escritores estrangeiros (aqui e no mercado português). Ela, por sua vez, cuida pessoalmente dos autores brasileiros. E diz que enxerga um setor aquecido e instigante: ultimamente, vem conseguindo vender mais títulos nacionais lá fora, desde Tudo É Rio, de Carla Madeira, a Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva, que ganhou impulso com a vitória no Oscar.
Na conversa com o Draft, Lucia fala sobre as incertezas da carreira de escritor no Brasil, a realidade do mercado frente às mudanças trazidas pela Amazon e pela inteligência artificial, e os desafios de representar tantos autores num país onde agentes literários ainda são raridade:
Em mais de 30 anos da Agência Riff, imagino que a atividade tenha mudado bastante. Hoje, o que significa ser agente literário no Brasil?
A atividade mudou completamente, a internet forçou essa mudança. Claro que, basicamente, a gente continua como era no início, cuidando da carreira de autores, ajudando a assinar contratos melhores, cuidar das obras de uma maneira eficiente.
Fazemos todo esse relacionamento do autor com as editoras e outros mercados, como o audiovisual, o teatro, os contratos para o exterior, e também ajudamos desde o início da ideia do livro…
A gente trabalha muito com herdeiros, como a Alessandra, filha da Marina Colasanti [falecida em janeiro deste ano], minha primeira autora. Estou nesse momento delicado de ajudá-la a gerenciar a obra da mãe. São obras prontas mas nunca fechadas, porque você reorganiza, pensa outras formas de publicar
Então, estamos sempre nesse papel duplo da escuta e também pensando junto, trazendo ideias. Mas, de fato, mudou tudo. Quando comecei a agência, só tinha uma máquina de escrever elétrica e um fax.
Quais funções vocês agregam hoje como agência, representando um número expressivo de autores no Brasil e também clientes estrangeiros?
Os autores brasileiros são quase 180. A gente cuida deles para teatro, cinema, venda para o exterior, renovações de contrato. A parte da Laura e do João Paulo é cuidar dos autores estrangeiros.
A gente conhece vários, porque eles vêm ao Brasil, mas nosso cliente é o editor e o agente literário estrangeiro desse autor. Então, se o editor para de trabalhar com ele, eu não tenho contato direto. Em alguns casos, também temos representação para Portugal.
Temos fenômenos literários como Carla Madeira, Raphael Montes, Itamar Vieira Jr., mas dá para contar nos dedos autores brasileiros que conseguem viver de literatura. Como essa incerteza impacta o setor no Brasil?
O próprio Luis Fernando Verissimo sempre deixou isso claro. Ele tinha o trabalho dele como jornalista. Muitos autores, além de terem outro emprego, participam de eventos literários remunerados e fazem trabalhos editoriais variados.
É muito comum o autor estar cercado de convites. Outro dia, uma autora nossa foi convidada a escrever um prefácio ensaístico sobre uma escritora clássica. E aí você para, lê, estuda e faz esse trabalho.
Viver exclusivamente de direito autoral é uma coisa complicada. A curto prazo, até pode, se você está com um livro bombando. Mas tem que pensar a longo prazo, porque afeta até sua aposentadoria
E como é o seu padrão de vida? A gente sabe que tem momentos de muitas vendas e outros em que o autor continua com um nome forte, mas já não vende tanto…
Direito autoral é a coisa mais instável do mundo. Temos uma situação estranha agora, em que algumas obras ganham relevância e outras param de ser publicadas, porque causam estranhamento. Então, nem toda obra vira um clássico que pode ser vendida a longo prazo.
O próprio Verissimo entendeu que uma parte do humor era eterna e outra, não.
É muito diferente lidar com as obras de autores mais estabelecidos, como Luis Fernando Verissimo, Ariano Suassuna, Rubem Fonseca?
O autor já estabelecido tem toda uma responsabilidade. Em geral, você tem muitos contratos e obras.
Estava acompanhando agora com a Alessandra Colasanti. Tem muita coisa vendendo bem, reimprimindo, e outras que é preciso cuidar. Manter isso tudo funcionando é um desafio e tanto. A gente está sempre buscando novas oportunidades para aquela obra. Tem pedido na Itália, na Argentina, nos EUA.
Não pode deixar a peteca cair, é importante manter esse interesse. O autor continua vivo em cada grupo de teatro que faz uma nova versão do “Auto da Compadecida”, em curta-metragens, não é só na lista de mais vendidos. O Caio Fernando Abreu é muito procurado, isso é superbonito.
Agora, para o autor iniciante, é todo um outro desafio de apresentá-lo ao mercado, reduzir os ruídos e frustrações. Eles estão naturalmente mais tensos, com um desafio enorme, que é abraçar essa carreira de escritor num país como o Brasil
A pessoa tem de estar sempre ligada, formando relacionamento com os pares, indo a eventos. Isso é muito cansativo.
A gente vê em outros países, nos EUA e Europa, um mercado literário que parece mais profissionalizado, com a própria atividade do agente literário também mais presente. Como tem sido essa realidade por aqui?
Não dá para dizer que o mercado editorial brasileiro é menos profissionalizado. Tem essa coisa de que a Argentina tem mais livrarias que o Brasil, mas hoje, apesar de eu fazer questão de comprar livro em livraria, dou boas-vindas a um aumento das vendas pela internet.
Se você não comprar pela internet numa cidade que não tem livraria, vai comprar onde?
As editoras brasileiras são bem profissionais. Hoje em dia, não é raro que a capa brasileira seja a mais bonita dentre todas. Os editores estrangeiros querem muito vender para o Brasil porque sabem que o livro vai ser bem traduzido, com uma qualidade editorial boa. Então somos muito exigidos, no bom sentido
Claro que é difícil comparar os números da Alemanha ou Inglaterra com o Brasil. Mas a força do mercado, a rapidez da resposta, a simpatia dos editores, a presença em Frankfurt são muito fortes.
Tenho orgulho de representar esse mercado lá fora. Tirando essas diferenças de volume, a gente não tem do que reclamar. É claro que tem problemas aqui e ali, isso tem pelo mundo todo.
Quanto aos agentes literários, na França praticamente não existem; quem faz esse papel são as editoras. Já nos EUA e Espanha, não existe autor sem agente. No Brasil, temos uma coisa híbrida: muitos autores sem agente e muitos com agente
Acho que tem a ver com todas as nossas crises econômicas. Ter uma agência no Brasil com essa instabilidade do mercado é um desafio para poucos. Não é fácil.
Quais os caminhos para descobrir novos talentos literários promissores?
Na maioria das vezes, o autor é indicado por outro autor ou editor. Ou a gente se encanta com alguma obra e abre essa conversa. E tem autores que a gente não conhece, mas que nos procuram de uma maneira tão calorosa que a coisa acaba dando certo.
A questão é que, com o número de autores que a gente já representa, o espaço para trazer novos é muito pequeno. E a prioridade número um é o autor que eu já represento. Eventualmente, a gente acaba se apaixonando e abre um espaço. Mas não estamos em busca de novos nomes atualmente, seria loucura da nossa parte.
Apesar dos eventos literários cada vez mais bem-sucedidos, como a Feira do Livro em São Paulo, a Bienal e a Flip, existe uma preocupação com a queda de leitores. Quais as perspectivas da literatura e da leitura no Brasil?
Confesso que, às vezes, fico meio intrigada. Todo dia eu recebo quatro ou cinco convites para autores nossos participarem de feiras nos lugares mais remotos. Isso mostra que é um mercado muito vivo, pulsante e interessante.
Outro dia, eu participei de um clube do livro com a Carla Madeira no CCBB lotado, com 200 pessoas. Foram duas horas de conversa, mais os autógrafos, em um dia de semana, terminando super tarde
A gente vê esse entusiasmo nas redes sociais, clubes de livros por todo lado… E aí [em contrapartida] tem uma pesquisa como a Retratos da Leitura, que diz que o número de leitores está diminuindo… Não estou dizendo que essas pesquisas não estejam certas, óbvio que estão.
É assustador ver também o quanto para as editoras ficou difícil, porque o preço do livro caiu.
A percepção do público é que um livro de 100 reais é caríssimo. Mas, uns tempos atrás, se você desse como presente uma camisa polo de 50 reais, era uma coisa compatível. Hoje, o livro está 100 reais e a camisa, 200
Os preços de tudo aumentam, mas o livro não pode passar de 100 reais, porque aí é um absurdo. Na verdade, não é caro – mas a percepção é [de] que é. Claro que, dependendo das suas prioridades e dificuldades, o livro realmente não cabe. E temos poucas bibliotecas, dificuldade de acesso por outras formas.
Você tinha falado da importância da Amazon para fazer o livro chegar a vários lugares. Mas ela tem esse impacto de descontos agressivos que ajudam a reduzir o valor do livro…
Isso é um problema, e eu sou super a favor do preço único, mas não sei quando [a Lei Cortez] vai ser implementada.
A ideia é que, durante o primeiro ano, o livro tem que ser vendido por um preço estabelecido pela editora, e os descontos não podem passar de 10%. É justamente para proteger as editoras e pequenas livrarias.
Hoje a pessoa vê o livro na livraria, abre o celular e compra na Amazon. As pessoas não têm essa visão de proteger o mercado. Se as editoras estão precisando de vendas, que o governo compre com mais regularidade, que tenha mais bibliotecas – esse movimento todo precisa acontecer
Por outro lado, tem um número enorme de livrarias e editoras surgindo, editoras pequenas fazendo um trabalho brilhante. Então, não sinto que o mercado está encolhendo, mas [sim] que podia ser ainda melhor.
Na década de 1980, quando entrei na Nova Fronteira, era comum ter uma primeira tiragem de 5 mil exemplares, porque você tinha uma venda garantida para as livrarias. Hoje não tem mais isso, mas eu vejo as tiragens voltando a aumentar, de mil ou 2 mil para uns 3 mil exemplares.
Existe algum medo em relação a como a inteligência artificial vai impactar esse mercado?
Outro dia alguém me falou que a primeira revisão de um livro estava sendo feita por IA, tem capa sendo feita por IA… Isso é um pesadelo.
Quando a gente recebe um catálogo estrangeiro, o Google traduz na mesma hora. Essa tradução automática é prática. Agora, como substituto, pelo amor de Deus, não.
O [escritor e jornalista] Sérgio Rodrigues está lançando um livro sobre isso, e tem um capítulo maravilhoso sobre IA. Ele fala que escrever é humano. Uma coisa é uma ferramenta, um quebra-galho, outra é substituir o profissional.
Me parece que a literatura brasileira tem conseguido mais espaço e visibilidade fora do país. Isso de fato acontece?
Sim, estou conseguindo vender mais para fora. Poder enviar os livros em PDF facilitou muitíssimo.
Quando comecei, a gente tinha que mandar um livro pelo correio. Antes da internet, quem vendia melhor para o exterior era quem tinha poder econômico, essas grandes editoras. Ficou mais democrático
Aqui na agência, estou investindo muito em vendas para o exterior. Então, a Júlia [Wähmann, agente literária e escritora] vai às feiras, faz os catálogos, as newsletters e amplia a base de contatos. A gente tem vendido bem mais do que antes. Uma novidade boa é que a gente vende bastante para Portugal, coisa que não acontecia.
Tem muita coisa maravilhosa que a gente não consegue vender, e é desesperador. O Ainda Estou Aqui está indo para a sétima ou oitava venda; a última foi para Taiwan. Mas na Alemanha, um país difícil de entrar, ainda estamos batalhando. A Carla [Madeira], já vendemos para vários também. Pelas obras e o nosso empenho, podia ser mais, mas é um work in progress.
Quais os principais desafios que a Riff enfrenta hoje no mercado brasileiro?
Um é dar conta das leituras e de todo esse universo. É muita coisa, fico meio desesperada às vezes. Eu vendo um autor para Itália, Alemanha, França, e aí penso: mas ainda não vendi para os EUA, a Espanha.
A gente está sempre se cobrando. Quando um prato está girando bem, você tem que cuidar do outro que está quase caindo: um livro fora de mercado, uma editora que fechou, um editor que não está pagando.
A IA também assusta, e essa crise com os EUA não é bem-vinda. A gente planeja uma viagem para Frankfurt com medo de ter uma guerra do lado. Não temos serenidade para planejar o futuro
Quando eu era jovem, meus pais diziam que o futuro era de quem estava ali trabalhando, que ia dar tudo certo. Hoje, temos um olhar mais sofrido…
Mas tem coisas lindas que empolgam a gente. Eu sinto muito orgulho não só da agência, mas de tudo: dos colegas, editores, autores. Acho que a gente está fazendo bonito.
Professor da Universidade de Toronto, Rafael Grohmann leciona cursos com foco em plataforma e dados. Em entrevista ao Draft, ele fala sobre IA, precarização do trabalho e a necessidade de políticas públicas para apoiar a economia solidária.
Daniel Lameira vinha de um burnout pensando em largar o mercado editorial. Até que um papo com Adriano Fromer levou os dois a fundarem a Seiva, uma escola e editora para inspirar pessoas a se reconectarem com elas mesmas pela via da arte.