Mais de 5,5 milhões de pessoas no Brasil vivem sem banheiro. Conheça o engenheiro que decidiu lutar contra essa trágica realidade

Luiz Fazio - 22 dez 2023
Luiz Fazio durante atividade de educação ambiental da ONG Biosaneamento em uma escola pública de Cajamar (SP).
Luiz Fazio - 22 dez 2023
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Para começar, preciso destacar que o curso de engenharia fazia parte dos meus sonhos ainda jovem. E mais do que isso, todos ao meu redor diziam que eu seria engenheiro. Os professores falavam que eu era bom em matemática e meu pai também queria que eu seguisse essa profissão. 

Quando eu ainda era criança, não havia televisão em casa, por opção dos meus pais (fazia parte da educação que eles queriam passar para a gente).

Então, eu sempre usava a criatividade para saber das coisas. Por exemplo, teve uma fase que eu fazia balão, pipa e montava radinhos.

Saía de casa e comprava vários componentes para montar o aparelho. E essa ideia de trabalhar com montagem e cálculos foi crescendo dentro de mim, até me inscrever no vestibular de engenharia

Minha primeira opção não era engenharia civil, mas foi neste curso que eu consegui passar na Universidade de São Paulo.

A minha ideia era, ao entrar na USP, migrar para mecatrônica. Por quê? Bom, naquela época, nem eu sabia ao certo. Todos estavam de olho nesse curso e eu queria estar no embalo.

Acabei permanecendo na graduação de engenharia civil pela Escola Politécnica da USP. E entendi, aos poucos, o quanto a formação que escolhi foi de fato feita para mim.

DURANTE UM TRABALHO VOLUNTÁRIO NA ONG TETO FIQUEI IMPACTADO COM O PROBLEMA DO SANEAMENTO NAS COMUNIDADES

Ainda enquanto estudava, e pensando em como seria minha carreira pós-formação, decidi fundar a Klar Engenharia junto com outros sócios. Logo após a formação, busquei especialização na indústria do petróleo pelo Instituto Tecnológico de Buenos Aires (ITBA).

Toda minha experiência na Klar foi importante para o que eu faria mais tarde, à frente da ONG Biosaneamento. Até chegar à fundação desta organização, pavimentei outros caminhos. Mas a área do saneamento básico esteve presente na minha carreira direta ou indiretamente e sempre acreditei tratar-se de um direito fundamental e urgente.

Tudo começou quando eu estava com 40 anos, passando um fim de semana como voluntário numa construção da ONG TETO na favela Vila Beiramar, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense

Saí de lá com a ideia fixa de que deveria fazer algo para resolver o problema do saneamento, que é caótico naquele local, pois entendia a gravidade daquela situação e seus impactos correlacionados.

Afinal, o acesso inadequado a serviços de saneamento básico, como água potável e esgoto sanitário, está diretamente relacionado a doenças transmitidas pela água, como cólera, diarreia e hepatite A. O saneamento adequado reduz a incidência dessas doenças, promovendo a saúde pública e reduzindo a carga sobre o sistema de saúde.

ALÉM DA QUESTÃO DA SAÚDE, A FALTA DE SANEAMENTO ESTÁ DIRETAMENTE ASSOCIADA A PROBLEMAS AMBIENTAIS

A falta de saneamento básico também está associada a altas taxas de mortalidade infantil. Água contaminada e más condições de saneamento contribuem para a propagação de doenças que podem ser fatais para crianças, tornando o saneamento uma questão crítica para a proteção da saúde infantil.

Esses fatores impactam diretamente a vida diária das pessoas, proporcionando condições mais seguras e dignas. Portanto, investimentos em saneamento básico também têm implicações econômicas. A redução da incidência de doenças relacionadas à falta de saneamento pode resultar em uma força de trabalho mais saudável e produtiva. 

Fora isso, a gestão inadequada dos resíduos sólidos e líquidos pode causar sérios danos ambientais. O descarte incorreto de esgoto, por exemplo, pode contaminar rios e solos, prejudicando ecossistemas locais

O saneamento básico é um componente fundamental dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. Atender a metas relacionadas ao acesso à água potável e ao saneamento é crucial para o desenvolvimento sustentável e a redução das desigualdades.

APOSTAMOS EM BIODIGESTORES PARA LEVAR TRATAMENTO DE ESGOTO — E DIGNIDADE — ÀS PESSOAS ATENDIDAS PELO PROJETO

Entendi, no entanto, que não era só ali na favela Vila Beiramar que as pessoas não tinham uma estrutura de saneamento básico, sequer um banheiro em casa, e, no entorno, um mínimo de água tratada.

No Brasil, o número de residências sem acesso a banheiro é de 1,6 milhão, segundo dados do Trata Brasil divulgados em 2022. Se considerarmos a média de 3,5 pessoas por residência no país, são mais de 5,5 milhões de pessoas que vivem em locais sem um banheiro.

Diante dessa inquietação e desses números, comecei a formular a semente do que viria a ser a ONG Biosaneamento, fundada oficialmente em 2018 e que hoje executa projetos de saneamento básico gratuitos para famílias de baixa renda.

Como projeto inicial e carro-chefe a ser aplicado primeiramente na Vila Beiramar, eu e Guilherme Castagna, que chamei para essa empreitada, desenvolvemos biodigestores

Os biodigestores são capazes de realizar o tratamento do esgoto em até 70%, atendendo, cada um, aproximadamente três famílias. Esse tratamento, que ocorre de forma anaeróbica, ainda produz um biogás que pode ser utilizado como biocombustível e também um lodo que serve como biofertilizante.

E, como principal pilar, temos o protagonismo dos moradores e moradoras, que são capacitados pela Biosaneamento para executarem, eles próprios, o projeto.

SUPERAMOS DIVERSAS BARREIRAS. UMA DELAS FOI ACHAR UM MODELO ECONOMICAMENTE SUSTENTÁVEL PARA NOSSAS AÇÕES

No início, a principal dificuldade foi encontrar maneiras de atuar nesse mercado, que é operado de maneira exclusiva por grandes companhias de saneamento.

Achar modelos economicamente sustentáveis, escaláveis e resilientes para contribuirmos com a solução do problema foi um desafio.

Outras dificuldades foram conseguir abrir várias frentes de ações ao mesmo tempo, adquirir conhecimento do setor, ganhar alguma relevância para sermos ouvidos e ter oportunidade de trabalhar junto aos grandes players do mercado

Às vezes, fazíamos as ações durante os fins de semana e eu tinha que trabalhar em outro negócio para o meu sustento. Os voluntários e amigos foram fundamentais nessa fase. Passamos dois anos fazendo ações com voluntários e crowdfunding. 

Apesar das adversidades, sempre acreditamos que como o saneamento básico é fundamental para a dignidade humana, ele precisa ser atendido de forma incondicional e emergencial.

Quem não tem água saudável ou se contamina com esgotos não pode esperar uma regularização fundiária ou qualquer outro pré-requisito que sirva de justificativa para ter negado esse direito fundamental.

ALÉM DE AÇÕES EM COMUNIDADES, A BIOSANEAMENTO REALIZA ATIVIDADES DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL EM ESCOLAS PÚBLICAS

A comunidade indígena Tekoa Pindó Mirim, instalada em um território de 532 hectares, no Pico do Jaraguá, em São Paulo, foi uma das que receberam projetos da Biosaneamento.

Em parceria com a Mosaic Fertilizantes, construímos uma cozinha com banheiro e um biodigestor que produz gás a partir do esgoto e lixo orgânico, além de um banheiro coletivo separado com esgoto tratado com um vermifiltro 

Com nosso trabalho, já impactamos mais de 10 mil pessoas em São Paulo e nos estados do Rio de Janeiro e Acre.

A ONG Biosaneamento também elaborou projetos teóricos e práticos para escolas públicas de São Paulo. O objetivo é criar futuras gerações mais preocupadas e conscientes em relação às consequências de ações individuais e coletivas com o meio ambiente.

As ações ocorrem em escolas públicas do município de Cajamar, região metropolitana de São Paulo, onde realizamos atividades prático-pedagógicas de educação ambiental, adaptadas à realidade de cada colégio.

O projeto incentiva a implantação de uma horta ou jardim sensorial para que a escola tenha um espaço pedagógico de conscientização ambiental e de aproximação das crianças e adolescentes com a natureza 

Separamos o projeto em três atividades, com carga horária de 12 horas no total. A primeira tem como intuito apresentar aos diretores a ação e aproveitar para conhecer o espaço disponível para a realização da metodologia.

A segunda atividade consiste na instalação do biodigestor e no desenvolvimento de uma oficina de plantio de mudas para montar um canteiro agroecológico na horta ou um jardim sensorial no espaço disponibilizado pela escola. Os alunos conhecem as mudas e pensam em como colocá-las no lugar disponível. 

Após a implantação dos sistemas, a ONG faz aulas para conceituar as práticas realizadas e conscientizar sobre a importância e relevância da circularidade, do cuidado ambiental e sanitário, além de orientar sobre o modo de operação do sistema implantado.  

AS PARCERIAS SÃO FUNDAMENTAIS PARA ESCALAR O NOSSO IMPACTO

Depois de quatro acelerações e três anos de atuação em favelas do Brasil, acreditamos que as soluções para o saneamento precisam ser adequadas às diferentes realidades de cada uma delas.

Há milhares de comunidades no Brasil com graves problemas por falta de saneamento. Assim, defendemos que o primeiro passo é um conhecimento profundo de cada local através de um diagnóstico que integre aspectos territoriais, ambientais, sociais e de infraestruturas já existentes, além da determinação das diretrizes do projeto de transformação da realidade. 

Ao longo desse processo, também contamos com parcerias privadas e outras feitas com a administração pública que foram de extrema importância no alcance dos objetivos da Biosaneamento e na maximização do impacto de nossas atividades. 

Entre essas parcerias, posso citar as feitas com empresas de saneamento como Sabesp e Iguá, com outras ONGs como a Gerando Falcões e a própria TETO, e com patrocinadores importantes como a Unipar, Scania, Amazon e prefeituras

Através das parcerias, conseguimos escalar o projeto, acessando comunidades remotas que possibilitaram a troca de conhecimentos e experiências. Essas parcerias abriram portas para novos mercados e oportunidades de financiamento. 

PARA EFETIVAR A MUDANÇA, PRECISAMOS ENVOLVER MAIS GENTE, FORTALECER POLÍTICAS PÚBLICAS E ACELERAR TECNOLOGIAS

Nossa proposta sempre será universalizar o saneamento básico para todos. Ou seja, garantir que todas as pessoas tenham acesso a serviços adequados de água potável, coleta e tratamento de esgoto, coleta e disposição adequada de resíduos sólidos, além de higiene e educação sanitária.

Mas para além das ações de ONGs como a nossa, também é preciso incentivar a participação ativa da comunidade no planejamento, implementação e monitoramento de projetos de saneamento básico.

Essa participação ativa pode aumentar a aceitação local, promover a sustentabilidade dos projetos e garantir a eficácia a longo prazo. Em outras palavras, a conscientização é crucial para assegurar a adoção de práticas sustentáveis ​​pelos moradores.

Além disso, é necessário implementar e reforçar políticas públicas que promovam o acesso universal ao saneamento básico. Isso pode incluir regulamentações rigorosas, incentivos fiscais para investimentos privados e políticas de subsídios para comunidades de baixa renda

É preciso ainda explorar tecnologias inovadoras e soluções sustentáveis para melhorar a eficiência e a acessibilidade desses serviços. 

A universalização do saneamento básico é um desafio complexo, mas nós, da ONG Biosaneamento, estamos empenhados em mudar esse quadro. E eu, enquanto presidente, estou certo de que ainda vamos conseguir transformar muitas vidas, para melhor. 

 

Luiz Fazio é engenheiro civil, sócio da Klar Construtora e fundador e presidente da ONG BioSaneamento, que atua com infraestruturas modulares e de fácil execução em qualquer tipo de terreno, além de tratar esgoto sem adição química.

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