Milhões de pessoas no país não sabem o que vão comer hoje. Conheça empreendedores que lutam para mudar essa realidade

Dani Rosolen - 7 fev 2022
A partir da esq.: Murilo Ambrogi, Lucas Infante e Fernando Henrique dos Reis, três dos sócios da Food to Save (Foto: Jefferson de Souza).
Dani Rosolen - 7 fev 2022
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Se você é o responsável por fazer as compras na sua casa, sabe que é comum encontrar frutas e legumes amassadinhos e que serão rejeitados por você e por outros clientes.

Também é frequente ver produtos em promoção por estarem próximos do prazo de validade ou com embalagens danificadas e que, mesmo ainda bons para o consumo, serão evitados por muitos consumidores.

Sabe o que acontece na maioria dos casos com esses alimentos? Lixo!

Sim, em um país que voltou a figurar no Mapa da Fome da FAO em 2018 (quatro anos depois de ter saído) e que tinha mais de 19 milhões de pessoas passando fome e 55% dos lares convivendo com a insegurança alimentar em 2020 (segundo pesquisa Rede Penssan), desperdiçar alimentos deveria ser um crime.

Mas é isso que fazemos em nossas casas e que grandes redes do varejo, indústrias e restaurantes praticam diariamente. Não só no Brasil. Um terço dos alimentos produzidos no mundo são desperdiçados.

Como cidadãos, dá para mudar isso de forma relativamente simples, tentando reaproveitar os alimentos na íntegra e planejando as compras.

Já para transformar a maneira como os maiores desperdiçadores atuam, foodtechs e negócios de impacto social como a Connecting Food, a Restin e a Food to Save estão trabalhando com essa missão. Confira a seguir o que fazem essas empresas para ajudar o Brasil a evitar o desperdício.

CONNECTING FOOD

A engenheira de alimentos Alcione Silva fez carreiras em grandes empresas como Diageo e C&A, atuando nas áreas de logística e supply chain, entre outras.

Em 2015, decidiu largar o mundo corporativo. “Tive aquele incomodo de pensar que todo meu conhecimento e aprendizado poderiam ser utilizado para algo que trouxesse mais impacto para o mundo, mas ainda não sabia como.”

Em 2016, ela começou ao encontrar esse caminho ao participar de um processo de formação de empreendedores de impacto social, o Social Good Brasil. Foi lá que nasceu o conceito da Connecting Food, um negócio de gestão inteligente de doação de alimentos.

Na prática, o que a iniciativa faz é usar tecnologia para conectar estabelecimentos com alimentos saudáveis sem valor comercial a organizações sociais, evitando assim o desperdício. Alcione explica:

“A gente organiza esse excedente diariamente, identificando cada loja com produtos para doar, e conectamos com as ONGs do entorno interessadas em coletar esses alimentos”

Em 2017, Alcione investiu cerca de 500 mil reais no negócio e começou a rodar o primeiro piloto com três lojas do Grupo GPA, no litoral e na capital paulista. Hoje, mais de 400 lojas da empresa estão envolvidas com a Connecting Food, que atua em quatro estados (Bahia, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo), totalizando mais de 150 cidades.

Além do Grupo GPA, o negócio social tem dois grandes clientes: a rede Assai e o iFood. Os clientes pagam uma taxa mensal para que a Connecting Food cuide do monitoramento e da gestão das doações. O valor varia de acordo com o tamanho da empresa e a complexidade envolvida na operação. E o que as empresas ganham com isso?

“Ganham um retorno indireto, de imagem, de marca, de posicionamento, além da redução de custos que teriam com o descarte correto do excedente”

Equipe da Connecting Food (com Alcione à frente, no chão).

Cerca de 350 organizações sociais, previamente auditadas e visitadas pela Connecting Food, coletam os alimentos doados pelos clientes do negócio, entre elas: Videira, Eu me Importo; Núcleo Assistencial Fraterno; Frutos do Amanhã; Mãos Unidas; Casa Cristo do Bem; e NEAC.

Em 2021, o negócio de Alcione gerenciou mais de 3 mil toneladas de alimentos, evitando que 5 milhões de refeições fossem para o lixo.

O grande volume de itens doados pelos clientes é de frutas, legumes e verduras. “São produtos frescos e perecíveis, que se já estão um pouco murchos ou amassados não são comprados. Mas qualquer tipo de alimento pode ser doado, como pão, macarrão, feijão, que estejam com a embalagem danificada, por exemplo”, conta a empreendedora.

 “O que fazemos não vai resolver o problema da fome, que é muito mais estrutural e sistêmico, mas minimizar o impacto de algo que já está sendo produzido”

Alcione mergulhou tão fundo no assunto que se tornou consultora técnica da FAO no Brasil e do Ministério do Desenvolvimento Social (hoje, Ministério da Cidadania). Ela foi também a responsável por trazer para o Brasil a rede Save Food, projeto que, com o apoio da FAO, busca formar uma rede de atores atuantes no combate a perdas e desperdícios de alimentos.

Mesmo com tanta experiência, ela ainda enfrenta resistência na hora de vender seu serviço. A empreendedora acredita que as empresas e a sociedade civil estão mais conscientes sobre o tema, principalmente por conta do impacto trazido pela pandemia para a mesa de milhares de brasileiros. “Estamos numa situação emergencial e vamos ficar assim por alguns anos ainda.”

Em parte, uma barreira importante na hora de captar as doações foi quebrada apenas recentemente, em 2020, quando o governo sancionou a lei 14.016 que permite a doação de alimentos por estabelecimentos.

“Essa lei foi extremamente importante porque isentou a responsabilidade civil e legal dos doadores. É importante dizer que doar alimentos nunca foi proibido. Bancos de alimentos, o Programa Mesa Brasil, colheitas urbanas já fazem isso há mais de 30 anos, mas não tinha uma lei que ‘permitia’, digamos assim”, afirma Alcione.

“Muitas empresas deixavam de doar por acharem que era proibido ou por medo de serem punidas caso alguém passasse mal. Então, essa lei ajudou muito no nosso discurso de convencimento” 

Para o futuro, a empreendedora deseja que a Connecting Food consiga fazer com que todos os alimentos que são produzidos alcancem os pratos das pessoas e planeja expandir a atuação do negócio para todo o Brasil. Só em 2022, a empresa deve chegar a mais 15 estados.

FOOD TO SAVE

À frente de uma franquia do Carrefour, na Espanha, Lucas Infante começou a ficar incomodado com a quantidade de alimentos que eram perdidos no supermercado.

Em outubro de 2020, ele passou a pesquisar sobre o assunto e a entender melhor o modelo da To Good To Go, um negócio muito conhecido na Europa de combate ao desperdício de alimentos.

“Eles são a maior referência no mundo nesta área. Mais do que um negócio, o que impressiona é como eles criam um movimento de pessoas engajadas na luta contra o desperdício”, diz o empreendedor.

Lucas decidiu adaptar essa solução para o Brasil e veio passar um mês aqui (em meio à pandemia e à gestação de sua filha). O objetivo era entender esse mercado e começar a desenvolver o que é hoje a Food to Save, uma foodtech que ajuda estabelecimentos — como hortifrutis, padarias e restaurantes — a vender, com até 70% de desconto, alimentos bons para o consumo, mas que não foram vendidos no dia, têm algum “defeito” estético ou estão próximos do prazo de validade.

Um detalhe importante: os produtos são vendidos em sacolas fechadas e o comprador não sabe o que encontrará lá dentro, apenas se é um pacote doce, salgado ou misto.

“Por conta desse efeito ‘surpresa’ já fomos chamados por uma usuária de ‘Kinder Ovo da fase adulta’”

A ideia foi testada, em novembro, junto ao sócio e CMO Murilo Ambrogi, profissional da área de marketing com passagem pelo iFood; ele e Lucas se conheceram quando ambos trabalhavam na Ultragaz. Por meio de stories em um perfil criado no Instagram, a dupla anunciava os excedentes de seis estabelecimentos de São Paulo que toparam participar do piloto. No primeiro mês, venderam 170 sacolas.

Depois, para melhorar a experiência de compras e gerar dados, vieram o site e um aplicativo, que já conta com 100 mil downloads. Nesta fase, outro sócio se uniu à dupla, Fernando Henrique dos Reis, amigo de longa data de Lucas, que assumiu como COO. Mais recentemente se juntou ao time o CTO Guido Bruzadin, que participou do nascimento do iFood.

Em operação oficial desde maio de 2021, a Food to Save investiu cerca de 700 mil reais do negócios, entre aporte dos sócios e de investidores-anjos, e já ajudou a evitar o desperdício de 40 toneladas de alimentos, com quase 50 mil sacolas resgatadas.

Hoje, os valores das sacolas são de R$ 10,99 (o preço original seria de R$ 30), R$ 15,99 (preço real de R$ 45) e R$ 20,99 (R$ 60, se os produtos fossem vendidos fora deste esquema). Elas podem vir com uma média de quatro produtos. Mas se o resgate da sacola for feito de uma hortifruti, por exemplo, o número de itens tende a ser bem maior, com a sacola chegando a pesar 5 quilos, de acordo com Lucas.

Na prática, os responsáveis pelos estabelecimentos separam seu excedente quando acaba o dia, ao fim do horário de refeição (como acontece nos restaurantes) ou no período de reposição da vitrine (caso de cafeterias e padarias), analisam se os produtos estão aptos para o consumo, montam uma sacola e sobem no site já com o valor do desconto.  Lucas explica o processo:

“Sempre pedimos empatia na hora dessa análise. Você consumiria esse produto, daria para o seu filho, por exemplo?”

O consumidor entra no site, cadastra seu endereço e consegue ver quais estabelecimentos próximos estão com ofertas de sacola. Ao comprar, ele pode optar por retirar a sacola no local ou receber por delivery, arcando com os custos da entrega. Segundo Lucas, o tempo médio de venda das sacolas é de 10 minutos no site.

Os estabelecimentos ficam com 60% do preço pago pelos consumidores e a Food to Save, 40%. Segundo empreendedor, há lojas que chegam a conseguir até 5 mil reais de reembolso por mês com o que seria uma perda de produtos.

Atualmente, mais de 300 estabelecimentos do ABC paulista, São Paulo e Campinas estão registrados na plataforma, entre eles o Grupo Manai Gastronomia, com 18 restaurantes, a padaria Bela Vista e a rede Rei do Mate. Interessados em se tornar parceiros podem se cadastrar aqui.

Além do negócio em si, a Food to Save tem uma frente educacional, com compartilhamento de conteúdos sobre reaproveitamento de alimentos e combate ao desperdício em suas redes sociais.

“Não quero que as pessoas apenas resgatem sacolas, mas entendam este ato e seu impacto. Não adianta chegar em casa e jogar alguns itens no lixo. Tem que dar um jeito de reaproveitar, seja doando na vizinhança, levando para o café da empresa, fazendo um molho com o tomate amassado”

Para impulsionar este pilar de conscientização, a foodtech planeja lançar ainda no primeiro trimestre deste ano o Instituo Joquinha (nome do mascote da marca). “Nosso objetivo é entrar em escolas levando material didático e educacional para combater o desperdício”, afirma Lucas.

RESTIN
Um nutricionista está por trás da Restin. Luciano Almeida trabalhou por mais de dez anos no Grupo GRSA, até ficar insatisfeito com o impacto negativo que gerava. “Dentro de uma empresa, a gente acaba ficando no senso comum. E não dá para transformar o mundo do jeito que desejamos”, diz.

Após assistir à série Chef’s Table, ele ficou encantado com as inciativas do chef italiano Massimo Bottura, idealizador de dois programas sem fins lucrativos, o Refettorio Ambrosiano e o Food for Soul, que reúnem chefs estrelados na preparação de refeições para sem-teto e pessoas em vulnerabilidade social usando alimentos recuperados e produtos fora do padrão estético do mercado. “Quando assisti àquele episódio, eu chorei! E pensei: é isso que quero fazer!”

Durante dois anos, Luciano começou a se preparar para deixar o emprego; em paralelo, abriu sua clínica de nutrição, em Santa Barbara d’Oeste (SP), onde construiu uma cozinha para ensinar seus pacientes a cozinhar alimentos saudáveis e evitar o desperdício.

Até que finalmente pediu as contas na empresa e, com a rescisão, foi passar três meses na Europa, onde conheceu de perto os projetos de Bottura. Voltou ao Brasil, no fim de 2019, decidido a trabalhar com o combate ao desperdício.

Começou a fazer isso conectando seus pacientes a pequenos produtores rurais do interior paulista com alimentos que não chamariam atenção nos supermercado (pela aparência). Ainda naquele ano, Luciano conheceu a proposta da To Good To Go (a mesma que inspirou a Food to Save) e decidiu fazer algo semelhante.

 “Eu não sabia nada do que era startup… Passei o final de 2019 e começo de 2020 desenhando o projeto, chamando pessoas para ajudar, mas aí veio a pandemia…”

A crise fez o consultório de Luciano fechar e sua renda cair consideravelmente nos dois primeiros meses da quarentena. Ele aproveitou esse período para estruturar o que seria seu novo empreendimento, até lançar em setembro de 2020 a Restin, junto com as sócias-fundadoras Mariah Possobom, CTO do negócio e amiga da infância de Luciano, e a irmã dele, Franciele Barbosa, hoje CMO da empresa. Depois, que o negócio começou a rodar, um cliente fiel se juntou ao time, o CCO Rafael Esposito.

Equipe da Restin, com Luciano ao centro.

O primeiro modelo de negócio da empresa é o B2C. Funciona assim: a Restin compra produtos próximos ao vencimento dos estabelecimentos e verduras, legumes e frutas com pequenos defeitos de 11 pequenos produtores rurais. Os alimentos são vendidos com desconto aos consumidores de Santa Barbara d’Oeste e Americana pela plataforma online da startup.

Depois dessa primeira tentativa de fazer o negócio rodar, Luciano começou a estudar mais sobre o ecossistema empreendedor, fez um curso de João Kepler (confira a nossa entrevista com o investidor) e entrou em contato com Nelson Andreatta, CEO da Eats for You, que virou seu mentor em novembro de 2020 e, posteriormente, investidor e advisor da startup.

No começo de 2021, Luciano partiu para uma nova etapa: buscar aportes, já que tinha começado a empresa sem nenhum investimento. Conseguiu o apoio da FEA Angels, da venture builder Seven7 e de investidores independentes, como Carol Paiffer, jurada do programa Shark Tank Brasil, Hugo Bethlem (presidente do instituto Capitalismo Consciente) e Rafael Szarf, COO do Zé Delivery. Desta forma, a startup conseguiu captar 270 mil reais.

A partir da mentoria e do contato com esses empreendedores e investidores veio a ideia de ampliar o modelo de negócio para o B2B, focando na indústria de alimentos.

“Entre outubro e dezembro do ano passado, trabalhamos nessa nova formatação para conectar alimentos da indústria próximos ao vencimento — que podem chegar a ter 70% de desconto — ao food service, ou seja, restaurantes, cozinhas industriais e também as solidárias, que muitas vezes têm como gargalo a falta de matéria-prima”

A Restin já começou a rodar um piloto em janeiro, mas ainda não pode revelar o nome da indústria. Já os clientes do food service são a Eats for You, a Gastromotiva e dois restaurantes.

Luciano alerta que quando se fala em produtos próximos ao vencimento não significa que o item irá estragar amanhã.

“A indústria trabalha com shelf life de 70% da vida útil. Assim que atinge esse taxa, eles já começam repassar os produtos e baixar o preço, levando em conta o planejamento logístico para que o alimento chegue ao estabelecimento próprio para o consumo; do contrário, só estaríamos remanejando o desperdício”

Outro modelo de negócio que será implementado é o B2B2C, ou seja, a Restin comprará os produtos próximos da validade do varejo e fará a ponte com o consumidor em sua plataforma, ficando com uma taxa de transação.

A foodtech começou a calcular seu impacto apenas no meio de 2021. Em relação ao penúltimo trimestre do ano, conseguiu “salvar” 2,3 toneladas de alimentos. Os dados do último trimestre do ano ainda estão sendo levantados, de acordo com o empreendedor.

Além de implementar os novos modelos de negócios, a meta de Luciano é consolidar ainda mais os conteúdos que a empresa produz nas redes sobre combate ao desperdício. Entre esses materiais educativos estão lives e vídeos curtos com receitas, muitas vezes criadas por chefs e influenciadores, ensinando a fazer um prato com o que tem na geladeira.

“Falamos muito sobre a importância de consumir o ‘restin’ de ontem, de usar o produto na sua forma integral… Se as pessoas entenderem como evitar o desperdício em suas casas, vão acabar levando isso adiante e teremos uma ação coletiva.”

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