No momento em que escrevo este artigo, estamos num sofá na Austrália, com um cachorro no tapete e uma cobra ao nosso lado – calma, ela está fechada num terrário.
Semana passada, cortamos madeira e cuidamos do jardim numa pousada na Nova Zelândia. No início do ano, apresentamos nossa certidão de casamento para dormirmos juntos no Kuwait. Ano passado, cruzamos dezenas de fronteiras terrestres e aquáticas na África.
É inusitado pensar que nosso endereço é o mundo desde novembro de 2022 – e que, meses antes, chorávamos por causa do trabalho
Somos Faraó e Pati – oficialmente, Wesley Klimpel e Patricia Pamplona –, um casal que se conheceu em 2010 no curso de jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Quando me formei, me mudei de cidade – outra vez, já que sou de Campo Grande e fui para a terra da Pati para estudar. Agora, o destino era São Paulo, onde passei a trabalhar num grande jornal. Anos depois, a Pati se juntou a mim.
Assim como muitos jovens e ingênuos – um pleonasmo? – jornalistas, queríamos escrever grandes reportagens, cobrir importantes acontecimentos e, quem sabe, mudar o mundo. A realidade logo nos mostrou que não é bem assim. Confesso que a frustração chegou a mim já no primeiro ano de carreira, enquanto a Pati foi mais resistente.
Num rompante de mudar de vida, em 2015, quando o assunto ainda não aparecia a cada cinco posts nas redes sociais, sugeri à Pati para deixarmos o trabalho e iniciarmos uma longa viagem sem data para acabar. Quem nunca criou planos mirabolantes em uma crise existencial?
Ela adorou a ideia – mas, ponderada, iniciou negociações por datas. Assim, chegamos ao acordo de três anos. Por ser mais nova e com menos tempo de profissão, queria vivenciar mais o jornalismo.
Passamos a debater rotas, nos informar com notícias e livros e acompanhar viajantes nas redes sociais.
Vivenciávamos tanto o assunto que nosso casamento, em 2017, envolveu viagem. Em vez de convites, passaportes; no topo do bolo, representações das nossas mochilas; nos votos, referências a cair na estrada. Só não percebeu quem não quis.
Presentes foram remanejados para investimentos financeiros, assim como parte do nosso salário e economias que já tínhamos. Também diminuímos as idas a restaurantes e bares mirando nossa volta ao mundo, que começaria em outubro de 2020
Sim, tivemos essa mesma reação que você está tendo. A Covid chegou, ceifou milhares de vidas e fechou fronteiras. Nos restou nos precaver e continuarmos no trabalho, aumentando o pé de meia. A mistura de confinamento e frustração resultou em um burnout na Pati, e o rompimento do meu tendão de Aquiles não ajudou no estado de espírito.
Com vacinas e fronteiras reabertas, estabelecemos uma nova data: novembro de 2022. Assim, começou a contagem regressiva e aquele frio na barriga que havia anos não sentíamos.
Na reta final, vendemos tudo que tínhamos e, sem casa ou carro, nos tornamos oficialmente o Sem Chaves!
A ideia inicial era visitar o maior número possível de países em três anos, sem pausas. Porém, as saudades de casa e questões com vistos e passaportes nos motivavam a voltar para o Brasil.
Desse modo, dividimos a viagem em três temporadas: na primeira, iríamos para África e Oriente Médio; na segunda, Ásia e Oceania; e, na última, América e Europa.
Isso é muito bonito no papel, mas a estrada nos ensinou que planos mudam constantemente. Guerras, burocracias e altos custos nos fizeram abdicar de alguns destinos
Ainda assim, demos quase uma volta completa por terra na África. Iniciamos na Tunísia rumo ao oeste: Argélia e Marrocos. De lá, descemos a costa oeste até a África do Sul, e só não rodamos tudo por transporte terrestre e marítimo porque não conseguimos o visto da Nigéria. Em contraposição à famosa Cape to Cairo, fizemos a rota Tunis to Cape.
De lá, subimos por terra pela costa leste até o Quênia e, com alguns voos, visitamos Madagascar, Etiópia e Egito. Na reta final, aderimos a aviões por causa da guerra civil no Sudão, que afetou a região, e também porque já estávamos cansados dos perrengues.
Ouvi um “quero história de viagem”? Só no quesito “estrada”, atravessamos a fronteira entre Guiné-Bissau e Guiné em três numa moto, com nossos mochilões, no meio da floresta. Negociamos arduamente, em francês e em inglês, por espaços apertados dentro de carros que fazem trajetos internacionais, mas também viajamos apertados em muitas vans e ônibus.
Criamos a rotina de visitar embaixadas com inúmeras cópias de documentos para pleitear vistos e chegamos a correr pelas ruas da capital do Benim em busca da permissão de entrar no Gabão, que havia deixado de ser cobrada semanas antes – visitamos o lugar a poucos meses do golpe.
Descobrimos em alguns países que nossos cartões não operavam e apelamos a alternativas para conseguir dinheiro. Barganhamos melhores cotações com cambistas em diversas fronteiras e quase sofremos dois golpes. Tomamos banho de caneca em hotéis a 30 dólares e escovamos os dentes com água mineral comprada no bordel vizinho
Só história ruim? Tivemos duas semanas de extremo conforto com uma família brasileira no Gabão, indicação de um casal viajante que nunca havíamos visto ao vivo. No Camarões, ficamos dez dias com uma francesa, num convite após 15 minutos de papo.
Passeamos pela capital do Senegal com um professor que queria saber qual idioma falávamos. Nadamos por praias ou andamos por cidades das quais nunca ouvíramos falar e vimos, cara a cara, gorilas-das-montanhas, leões, elefantes, pinguins, desertos e lagos.
Como nosso tour pela África estava chegando ao fim (foram 36 países em 12,5 meses), traçamos a rota pelo Oriente Médio. Um dia antes do conflito envolvendo Israel começar. A partir daí, acompanhamos diariamente as notícias para entender a segurança da região
Evitamos alguns destinos e passamos dois meses entre sete nações. Antes de voltar ao Brasil, ficamos três semanas na Suécia, trocando hospedagem pelo cuidado de três cachorros.
Lá, finalizamos nosso livro sobre a primeira temporada, o Aventuras Sem Chaves. Ele foi baseado no nosso blog, o semchaves.com, onde compartilhamos informações sobre vistos, travessia de fronteiras e os lugares que visitamos.
Nos dois meses em que passamos no Brasil, nos dividimos entre rever famílias e amigos, refazer documentos e lançar o livro, numa correria danada. Quando percebemos, estávamos iniciando a segunda temporada, já com pedreira.
Viajamos pelo interior da Rússia na Transmongoliana, trem que interliga Rússia, Mongólia e China. Isso num momento em que os russos são alvos de sanções econômicas pela guerra na Ucrânia. Tivemos que circular com dinheiro vivo suficiente para um mês e obter informações que estão restritas fora do território
Viajamos à China com uma permissão de trânsito, já que o visto no Brasil demorou mais tempo do que tínhamos. Ao menos pudemos andar pela inesquecível Muralha da China e até descemos numa espécie de carrinho de rolimã. Semanas depois, passamos momentos sensacionais no Japão.
Pretendíamos, agora, estar no Sudeste Asiático, mas, pelas monções, mudamos mais uma vez os planos. Pulamos direto para a Oceania, onde estreamos no mundo das viagens em campervans e das permutas de habilidades por cama e comida.
Essa troca que fizemos, de trabalho na Nova Zelândia e de cuidado de animais aqui na Austrália, é uma alternativa para diminuir as despesas de uma viagem dessas. No planejamento, estimamos gastar 75 dólares, diariamente. Temos desembolsado mais do que isso…
Para início de conversa, apesar da crença geral, é caro viajar pela África. Como lá não há turismo em larga escala, as hospedagens ou têm preços exorbitantes ou são baratas e de baixa qualidade – às vezes, os dois combinados. Os países da Península Arábica também não são os mais em conta… Ainda entra na equação o alto custo de passagens aéreas.
É possível, sim, ter uma viagem de longa duração mais econômica, já que a questão é estabelecer prioridades. Menos deslocamentos e hospedagens ou destinos baratos fazem o dinheiro render mais.
Sem falar que muita gente trabalha na estrada. Conhecemos brasileiros que batem o cartão (virtual), fazem frilas online ou vivem de suas redes sociais. A Pati chegou a dar aulas de português à distância, mas a conexão de internet era nossa constante inimiga.
Atualmente, oferecemos consultoria de viagem e roteiros personalizados, escrevemos uma newsletter paga semanal e ainda temos a venda do livro. Apesar desses serviços, nossa renda vem, em grande parte, de economias e investimentos. Mas quem sabe um dia a gente consiga viver apenas dessa experiência de volta ao mundo?
E, por falar nisso, uma das principais dúvidas, principalmente de família e amigos, envolve nosso futuro. Uma certeza é que não pisaremos mais em uma redação. Partimos cientes de que esse ciclo tinha se fechado e que há um livro em branco quando finalizarmos nossa volta ao mundo
Por ora, essa indefinição não nos aflige. Temos ainda muitas fronteiras e choques culturais para nos preocuparmos.
Wesley Klimpel é jornalista e cofundador do Sem Chaves.
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